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O mercado livre de energia elétrica e a segurança jurídica

Eventos recentes colocaram foco sobre a questão da segurança jurídica do mercado livre de energia elétrica e motivaram diversas discussões voltadas à busca de mecanismos de proteção mais adequados, seja a partir do aprimoramento regulatório, seja mediante o estabelecimento de condições contratuais mais sólidas, de modo a desestimular o descumprimento das obrigações entre as partes.

11/12/2019

1.               O ambiente de comercialização livre de energia elétrica

O presente artigo tem como finalidade apresentar algumas considerações sobre a segurança jurídica no âmbito do Ambiente de Contratação Livre – ACL de energia elétrica, com foco nas relações bilaterais nele estabelecidas, sobretudo no tocante aos instrumentos de que dispõem as partes contratantes para proteger-se de eventuais inadimplementos relacionados às obrigações de registro e validação dos montantes comercializados.

Para tanto, convém fazer breve digressão histórica, vez que em 2019 o mercado livre de comercialização de energia elétrica celebra 20 anos de existência, tendo sido longa e desafiadora a jornada até atingir seu ponto de “quase maturidade”/. Com efeito, como anotei anteriormente, a reestruturação do setor elétrico brasileiro iniciada na metade da década de 1990 exigiu a edição de diversas leis, decretos e outros atos normativos, que erigiram um arcabouço jurídico-normativo voltado a implantar e regular complexas inovações, tais como: concessões licitadas e contratadas; pagamento pelo uso de bem público; agência reguladora independente; Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS; mercado atacadista autorregulado; mercado de curto prazo; sistema de garantias; contabilização e liquidação; produtor independente; comercializador; consumidor livre; contratos iniciais; contratação bilateral e multilateral; contratação separada do fio e da energia; livre acesso aos sistemas de transmissão e distribuição, dentre outras (WALTENBERG, 2019, p.53). 

Esse conjunto de institutos criados na esteira do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro – RESEB, parcialmente alterado e complementado alguns anos depois, com a transição para o novo modelo instituído pela lei 10.848/04, constituiu a base para a consolidação do mercado livre de energia elétrica, que não parou de evoluir desde então.

No ano 2000 havia 58 agentes nesse mercado, somando-se geradores, distribuidores, comercializadores e consumidores livres e especiais. Já no ano de 2018, o número de agentes saltou para 7.619, nos termos do relatório anual da CCEE. Segundo dados da CCEE, disponibilizados no relatório InfoMercado 147/19, no mês de setembro de 2019, o consumo de energia no país contabilizou 63.755 MW médios, sendo 44.284 MW médios (69,5%) relativos ao ACR e 19.472 MW médios (30,5%) relativos ao ACL, valendo destacar que o consumo neste será preponderantemente em atividades industriais, como a metalurgia, o segmento químico e o setor de minerais (CÂMARA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA, 2019, p. 5).

Pela perspectiva econômica, a participação no ACL tende a garantir aos consumidores, livres ou especiais, importantes benefícios em comparação com o Ambiente de Contratação Regulada – ACR, como bem observa a economista Debora Nunes Mota (MOTA, 2015, p. 65 a 67), listando as seguintes vantagens:

Todavia, o acelerado crescimento do mercado livre de energia elétrica não significa que esse ambiente esteja isento de percalços. Ao contrário, apesar de vantajosa economicamente, a exposição ao ACL pode acarretar riscos. Eventos recentes como as “quebras” de algumas comercializadoras de energia elétrica que “apostaram” em um cenário hidrológico favorável, por exemplo, colocaram foco sobre a questão da segurança jurídica do mercado livre, dando início a discussões setoriais com objetivo de criar mecanismos de proteção mais adequados.

Contudo, como se verá adiante, as soluções cogitadas até agora, além de ainda estarem em construção, têm como enfoque principal a estabilidade sistêmica do mercado de comercialização de energia elétrica, ou seja, não estão prioritariamente preocupadas com as relações bilaterais individualmente consideradas, as quais, não obstante, merecem atenção, ante os retro citados riscos a que estão submetidas as partes contratantes.

Eis o porquê de o presente artigo focar nos instrumentos contratuais de que dispõem os contratantes para sua proteção no âmbito das respectivas relações bilaterais, valendo asseverar que, em muitos casos, a “quebra” de um contrato de comercialização de energia elétrica por uma parte prejudica a respectiva contraparte inclusive no tocante ao atendimento de outras obrigações assumidas perante terceiros.

Nesse cenário, denota-se a necessidade de avaliar a adequação ou não dos percentuais atribuídos às penalidades de multa em caso de rescisão contratual e ocorrência de danos, às vezes considerados excessivos.     

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*David Waltenberg é advogado em SP.

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