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O ensino, a formação jurídica e a experiência de estudar na Alemanha

A experiência de morar e estudar na Alemanha por um ano para a realização de meu estágio pós-doutoral (realizado em conjunto na PUC/RS) tem sido extremamente agregadora, não só do ponto de vista acadêmico-jurídico e pelo acesso à língua e à cultura alemãs, mas ainda para provocar-me ponderações reflexivas sobre o ensino, formação e desenvolvimento da cultura jurídica no Brasil

9/12/2019

Quando decidi realizar pesquisa pós-doutoral na tradicional Universidade de Heidelberg (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg)1 na Alemanha pelo período de um ano, sabia que certamente seria uma valiosa experiência acadêmica e cultural. Estava ciente também do desafio que seria estudar a difícil língua alemã (embora esteja escrevendo o artigo pós-doutoral em inglês), em razão da complexidade do idioma. Mas tinha a convicção de que o domínio razoável da língua iria me possibilitar o acesso tanto a bibliografias clássicas quanto a obras recentes inovadoras na minha área de pesquisa. Em função disso, empenhei-me em estudar o alemão já antes do início efetivo das atividades do pós-doutorado, bem como ao longo de todo o período da pesquisa.

Porém, o que me surpreendeu, além das descobertas e reflexões que as leituras das obras clássicas e emblemáticas germânicas me proporcionaram, foi o método pragmático de ensino e formação jurídica empregados desde a graduação nas universidades alemãs. Considerei oportuno, além de todas as atividades diárias relativas ao estudo da língua e à pesquisa científica, também frequentar aulas da graduação em Direito da Universidade de Heidelberg.

Naturalmente, selecionei disciplinas de Processo Civil, especialmente de Processo de Execução, cuja semelhança com os institutos e procedimentos brasileiros me surpreenderam, mas também participei da chamada “Arbeitsgemeinschaft”, espécie de aula paralela voltada exclusivamente à resolução de casos concretos, de certa complexidade, a partir do raciocínio e trabalho em grupo, aplicando um “procedimento padrão”, o denominado estilo de parecer (“Gutachtenstil”), a partir da legislação aplicável (no caso, Direito Civil – BGB). A eficiência do método me impressionou positivamente, pois considerei uma prática didática, dinâmica e de grande valia para a preparação prático-profissional. Além disso, percebe-se o incentivo a uma certa independência de estudo, pois o aluno pode escolher as disciplinas que pretende cursar, sem muita rigidez curricular ao longo do curso de graduação, porém desenvolvendo a necessária autodisciplina que os estágios seguintes da formação jurídica irão exigir.

Nesse particular, cabe destacar que, após concluir a faculdade de Direito (quase todas públicas e gratuitas), o estudante se submete ao ertes Staatsexamen (primeiro exame estatal), organizado pelos Länder (Estados), no qual são testados conhecimentos sobre o direito material alemão em diferentes áreas através do formato de resolução de casos praticado durante a graduação. Aprovado neste primeiro exame, o estudante cumpre o período de dois anos de estágio obrigatório, chamado de Referendariat. Após, o estudante submete-se ao zweites Staatsexamen (segundo exame estatal), com maior ênfase na prática do direito (civil, penal e público).

O ingresso em algumas carreiras, como na magistratura e na advocacia, depende da aprovação no segundo Staatsexamen. A admissão para a advocacia autoriza o advogado a atuar em todos os tribunais alemães e não apenas na circunscrição da Rechtsanwaltskammer (espécie de ordem dos advogados/ órgão de classe) a que ele pertence, mas não perante o Bundesgerichtshof (BGH – Tribunal Federal alemão equivalente ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro)2.

A atuação perante o BGH exige autorização específica (atualmente há 42 advogados habilitados3), cujos requisitos são idade superior a 35 anos, mínimo de 5 anos de prática forense ininterrupta (§ 166 (3) BRAO - Bundesrechtsanwaltsordnung) e ter escritório de advocacia na cidade de Karlsruhe (sede do BGH). O advogado pode associar-se a um único outro advogado igualmente habilitado perante o BGH e o exercício da advocacia pode ser desempenhado somente perante os tribunais superiores.

Em suma, a experiência de morar e estudar na Alemanha por um ano para a realização de meu estágio pós-doutoral (realizado em conjunto na PUC/RS) tem sido extremamente agregadora, não só do ponto de vista acadêmico-jurídico e pelo acesso à língua e à cultura alemãs, mas ainda para provocar-me ponderações reflexivas sobre o ensino, formação e desenvolvimento da cultura jurídica no Brasil. Como resultado final das minhas pesquisas, apresentarei estudo intitulado “O papel do BGH e do STJ como cortes formadoras de precedentes judiciais e a unidade do direito na Alemanha e no Brasil (“Die Rolle des BGH und des STJ als Präzedenzfälle festlegende Gerichte und die Rechtseinheit in Deutschland und Brasilien”)”, com o objetivo de contribuir com o debate do tema, a partir da análise comparada, mas também com novas perspectivas, ideias e horizontes para o desempenho da minha atividade acadêmico-profissional, com a certeza de que a Alemanha ainda muito tem a nos oferecer.

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1 Fundada ainda na Idade Média, mais precisamente em 1386, a instituição é a mais antiga em território alemão.

2 Na Corte de Revisão alemã não se verifica uma carga de trabalho excessiva. O número de casos recebidos em 2018 foi de 6.117. Em comparação com 2017, este é um ligeiro declínio de 3,1 %. No entanto, é preciso levar em consideração que ocorreu um salto em 2012, que continuou desde então; o número atual ainda está bem acima dos níveis de 2011. O número de julgamentos em 2018, em 6.204, excedeu mais uma vez o número de novos pedidos. (Fonte Tradução livre do site do Bundesgerichtshof: Clique aqui,  Acesso em 27/11/19). Ainda foi realizada visita ao Tribunal, incluindo a participação em sessão de julgamento de um Senado Cível (Zivilsenate) para verificação do método de julgamento.

3 Consulta realizada no site do BGH em Novembro de 2019.

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*Gisele Mazzoni Welsch é Visiting Scholar na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Doutora e Mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC-RS. Especialista em Direito Público pela PUC-RS. Professora de cursos de pós-graduação “lato sensu” em Processo Civil. Autora de diversas publicações, dentre elas, o livro “Legitimação Democrática do Poder Judiciário no Novo CPC” pela editora Revista dos Tribunais e o livro “O Reexame Necessário e a Efetividade da Tutela Jurisdicional” pela editora Livraria do Advogado, bem como capítulos de livros e artigos jurídicos em periódicos de circulação nacional. Advogada.

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