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A reforma da Previdência (PEC 103) e a competência delegada: ofensa à Constituição (III)

A Constituição determina, claramente, a necessidade de a República brasileira promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização, a fim de reduzir as desigualdades sociais.

25/11/2019

Embora já tenhamos escrito artigos sobre o tema, agora, por conta da promulgação da reforma Previdenciária, retomamos a questão. Pretendemos advertir as incongruências na específica (e pouca comentada) modificação contida na EC da reforma Previdenciária (PEC 103), a respeito das ações contra e a favor da Previdência Social, quando os segurados têm domicílio no interior.

A nosso ver, infelizmente, alguns governantes burocratizam o Judiciário, mediante expedientes duvidosos e, possivelmente, contrários aos interesses e necessidades sociais. Antes da reforma previdenciária, por força da Constituição Federal, as ações de natureza previdenciária (aposentadorias, pensões, auxílios-doença etc), propostas no interior dos Estados,  contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), poderiam ser processadas e julgadas perante o juiz de direito (Justiça Estadual), ou seja, no local do domicílio do autor da ação, e não perante juiz federal (Justiça Federal), na medida em que, conforme se sabe, a Justiça Estadual detém o maior número de comarcas no interior dos estados-membros, motivo pelo qual as ações quase sempre são propostas no local do domicílio do autor da ação. Facilita-se a propositura da ação, ganha-se tempo e atende-se aos reclamos das partes e das testemunhas, que serão ouvidas no local em que residem etc.

No entanto, a reforma previdenciária, ao modificar o texto da Constituição, remete à lei autorizar essa espécie de ação. Dispõe: ‘§ 3º lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal.’

O que era obrigatório, por força do texto original da Constituição, tornou-se, com a PEC, faculdade do legislador. Assim, resta verificar o que determina a lei, atualmente, a respeito desse tema tão importante. Com efeito, a lei 5.010/66 [Organização da Justiça Federal] determina ao juiz estadual julgar as causas de natureza previdenciária, quando não houver juiz federal nas localidades do interior. Até aí, parece que estamos bem, na medida em que coincide com o texto original da Constituição [antes da reforma previdenciária]!

No entanto, a recente lei 13.876, de 20, de setembro de 2019, ao modificar artigo da mesma lei [5.010], tem a seguinte redação: ‘“Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual: III - as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município sede de Vara Federal.

Detalhe: essa situação ocorrerá a partir de 2020 [vigência do artigo da lei]. Dessa maneira, em 2019, as ações previdenciárias do interior, que não tiverem Vara Federal no local de domicílio do autor, poderão ser propostas e julgadas na Justiça Estadual (Juiz de Direito); porém, a partir de 2020, esse caso somente poderá ocorrer se o local de domicílio do segurado estiver situado até 70 km da sede da Justiça Federal – caso contrário, a ação deverá ser proposta perante o Juiz Federal. Aliás, compete aos Tribunais Federais indicarem quais as comarcas que estarão abrangidas nessa distância.

Evidentemente, a situação, a partir de 1º de janeiro de 2020, poderá proporcionar dificuldades aos segurados, às testemunhas, enfim, na produção de provas, em detrimento dos autores das ações previdenciárias: possivelmente, veremos pessoas se deslocando de suas cidades para serem ouvidas noutra localidade; ou a expedição de cartas precatórias – dos juízos federais para os estaduais, na forma do artigo 237, parágrafo único, do Código de Processo Civil -  , a fim de ouvir testemunhas, burocratizando-se, ainda mais, o Poder Judiciário, aumentando-se, portanto, as delongas do processo.  Advogados e partes terão de deslocar-se para conversar com os magistrados da causa; quem pagará a conta?. Enfim, criaram uma situação realmente burocrática e desnecessária.

Também haverá discussão, a partir do ano que vem, para responder à pergunta se as atuais ações em tramitação nas varas estaduais, localizadas no interior, serão remetidas, ou não, às varas federais (art.43, do CPC: perpetuatio jurisdictiones). Em princípio sim, pois parece ter havido supressão de órgão do judiciário [juiz estadual] e modificação na competência absoluta de jurisdição, situações que, em tese, autorizam a cessação imediata (2020) da competência da Justiça estadual, com a remessa do processo à Federal. Outros poderão dizer, ainda, que não houve nem uma ou outra, devido ao fato de o juiz estadual atuar apenas numa competência delegada [da federal]. A entender-se daquela outra forma, por cuidar-se de matéria de ordem pública, magistrados estaduais devem remeter, de ofício, os processos para a Justiça Federal. E, se isso realmente ocorrer, haverá burocracia e demora nas decisões dos magistrados: redistribuição e remessa de autos físicos à Justiça Federal; ou, no sistema informatizado, a redistribuição dos processos na Federal, e demais atos e procedimentos burocráticos...! Enfim, delongas e delongas.

A modificação na lei já era inconstitucional, ante o texto original da Constituição; com a promulgação  da reforma previdenciária, pode-se dizer, o artigo  15, da lei 5.010/66, está parcialmente revogado [a modificação na lei 5.010 ocorreu antes da promulgação da PEC 103]: fere o acesso à jurisdição (Poder Judiciário); o devido processo legal (foro competente e natural para a ação); a dignidade da pessoa humana (fundamento da República); atenta contra pautas de razoabilidade e proporcionalidade (70 quilômetros?; qual o critério justificador dessa distância...??). Também o princípio da celeridade processual (direito fundamental). Todos com previsão expressa na Constituição Federal, como valores que devem ser preservados.

Há autorização constitucional para a lei beneficiar o segurado (finalidade da norma); não há permissão constitucional para o legislador limitar o direito de o segurado ingressar com ação judicial; houve verdadeira limitação de direitos individuais [do segurado], acima referidos, numa afronta à antiga e à nova redação da Constituição. Pois, não se pode interpretar norma jurídica em detrimento de sua finalidade, de sua coerência normativa; bem assim, direitos fundamentais nunca podem sofrer limitações; apenas delimitações.

Uma minoria, com certeza a mais necessitada, será afetada pela lei; mais uma ação estatal contra os ajustes sociais, que tanto proclamam nas redes sociais, na imprensa, nos púlpitos! A Constituição determina, claramente, a necessidade de a República brasileira promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização, a fim de reduzir as desigualdades sociais (art.3º, III e IV), numa identificação perfeita à dignidade da pessoa, fundamento da República (art.1º, parágrafo único, III). Ora, se pode complicar, para quê facilitar?

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*Heraldo Garcia Vitta é juiz federal aposentado. Ex-promotor de Justiça. Árbitro da Cames. Advogado. Consultor jurídico. Especialista (Direito Privado), mestre e doutor (Direito Público). Professor de Direito.

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