Introdução
O Brasil passa por uma crise de identidade entre seus poderes, em especial quando o Judiciário invade área de competência do Executivo, principalmente do Legislativo, o que aflora a necessidade de uma revisão dos conceitos basilares dos limites de atuação, mormente quanto à supressão de direitos, conforme sinalizado pela doutrina na voz de Elival da Silva Ramos:
Em manifestação veiculada por prestigioso órgão de imprensa, o presidente do Senado e do Congresso Nacional expressou o desconforto institucional do Poder Legislativo brasileiro diante de práticas adotadas pelos outros Poderes que lhe ameaçam a primazia no desempenho de uma de suas funções primordiais, a de legislar. De fato, não se ignora que o Congresso se encontra pressionado, de um lado pelo Poder Executivo, mercê da edição desenfreada de medidas provisórias com força de lei, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, e, de outro, por recentes decisões do STF, que teriam transposto os limites da lídima atividade jurisdicional que lhe compete exercer. Daí a exortação que culminou por fazer aquela autoridade em relação a esse último fenômeno, no sentido de que caberia “definir com precisão os limites da intromissão do Judiciário na seara parlamentar”. Entendo que se trata de questão de fundamental importância para os ulteriores desdobramentos do estado Constitucional de Direito e da democracia no Brasil, podendo vir a se constituir, se bem equacionada, em poderoso obstáculo, na hipótese inversa. Por certo a atuação harmônica dos Poderes, preconizada em termos principiológicos pelo Constituinte, depende, em boa medida, de um sábio e prudente exercício das competências constitucionais que lhes foram assinaladas. Entretanto, a precisa identificação dos limites a que se sujeita o Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, dada a natureza eminentemente jurídica dessa função estatal, assume contornos técnicos inafastáveis, razão pela qual avulta a responsabilidade da doutrina constitucional na busca de resposta adequada ao problema posto.1
A par de tais celeumas, a maneira como o Judiciário vem atuandoassusta por determinado aspecto, mas também é importante reconhecer que, em muitos casos, a concretude de direitos fundamentais, deixados de lado pelo legislador ordinário, é efetivada por esse poder, especialmente na área da saúde. Tais paradoxos levam cada dia mais os estudiosos do direito a uma profunda reflexão a respeito dessa nova ordem de interpretação normativa, pautada em princípios, chamada de pós-positivismo.
O jusnaturalismo e o positivismo
O jusnaturalismo, pautado em forte base filosófica, veio ao longo dos séculos sendo sustentado por aqueles que entendiam presentes, em nossa essência, direitos independentes de normatização.
Tal vertente se opõe ao positivismo kelseniano, que dogmatiza o direito somente através das normas, não reconhecendo um direito fora do ordenamento.
Bobbio traz com muita clareza essa concepção:
Não é nossa tarefa ilustrar um problema tão rico e complexo como o do direito natural. Aqui, a corrente do direito natural vem à tona apenas devido ao fato de que há uma tendência geral entre os seus teóricos de reduzir a validade à justiça. Poderíamos definir esta corrente de pensamento jurídico como aquela segundo a qual uma lei para ser lei deve estar de acordo com a justiça. Lei em desacordo com a justiça non est Lex sed corruptio legis. Uma recente e exemplar formulação desta doutrina pode ser lida na seguinte passagem de Gustav Radbruch: “Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça, por exemplo concede arbitrariamente ou refuta os direitos do homem, carece de validade... até mesmo os juristas devem encontrar coragem para refutar-lhes o caráter jurídico”; e em outra parte: “Pode haver leis com tal medida de injustiça e de prejuízo social que seja necessário refutar-lhes o caráter jurídico... tanto há princípios jurídicos fundamentais mais fortes que toda normatividade jurídica, que uma lei que os contrarie carece de validade”; e ainda: “Onde a justiça não é nem mesmo perseguida, onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada em nome do direito positivo, a lei não somente é direito injusto como carece em geral de juridicidade, (Rechtsphilosophie (Filosofia do Direito), 4º Ed., 1950, PP. 336-353)2.
Observe-se que o autor estriba-se na ótica jusnaturalista, com a validade do direito estando somente ligada à justiça. Essa justiça dos naturalistas sempre encontrou muitos críticos, que questionavam a falta de um padrão de fundamento. A falta de uniformidade dos conceitos elementares da teoria, como v.g. de natureza e justiça, levouà decadência. Inobstante esse fato, ela, juntamente com o Iluminismo, trouxe grandes avanços sociais, como a Revolução Francesa (1789) e a Independência Norte-Americana (1776). Diante da falta de concretude e segurança nas relações pautadas no direito natural, nasce a figura do positivismo.
Na definição do ministro Barroso, o positivismo filosófico foi fruto de uma idealização do conhecimento científico, uma crença romântica e onipotente de que os múltiplos domínios da indagação e da atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. O homem chegara à sua maioridade racional e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única moral, até mesmo a única religião. O universo, conforme divulgação por Galileu, teria uma linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem descobertas e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser estendidos às ciências sociais.3
Com essas premissas, o positivismo divorciou-se de valores morais e transcendentes, impondo a soberania da norma pela coação. Talvez seu maior momento tenha ocorrido no positivismo kelseniano através da teoria pura do Direito, obra na qual seu autor procura aproximar ao máximo direito e norma. Em suas palavras:
Essas tendências ideológicas, cujas intenções e efeitos políticos são evidentes, ainda prevalecem na dominação da atual ciência do direito, mesmo na aparente superação da teoria do Direito Natural. É contra ela que se insurge a teoria pura do Direito, a qual apresenta o direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto; ela indaga do real e do possível, então do direito justo. Nesse sentido, é uma Teoria do Direito justo e também uma teoria do Direito radical-realista. Aproxima-se do direito positivo para avaliá-lo. Porta-se como ciência, sem compromisso com nada, como direito positivo, que procura entender sua existência e, através de uma análise, compreender-lhe a estrutura. Procura, principalmente, servir a algum interesse político, fornecer-lhe a ideologia, os meios pelos quais legitima ou desqualifica a atual ordem social. Com isso, entra na mais forte contradição com a ciência do direito tradicional, que – conhecida ou desconhecida, ora mais, ora menos – tem um caráter ideológico. Justamente por sua tendência anti-ideológica é que a Teoria Pura do Direito se manifesta como verdadeira ciência do direito. A ciência tem o conhecimento como aspiração imanente, qual seja, revelar seu objeto.4
O idealizador dessa nova teoria do direito firmou alguns pontos relevantes em sua célebre obra. A primeira delas foi a necessidade de uma aproximação entre o direito e a norma; a segunda, que há necessidade da estabilidade do direito, não podendo ficar à mercê de subjetivismos teóricos; a terceira, que o direito deve ter concretude, não se admitindo lacunas ou omissões; a quarta é a necessidade de um formalismo que valida o conteúdo. Sobre esses pilares, Kelsen edificou sua teoria. Como no jusnaturalismo, o positivismo teve seu ápice e posteriormente a derrocada. Esta fatalmente adveio da queda dos regimes totalitários fascistas e nazistas, que, sob o pálio do direito, promoveram o horror. Os julgamentos de Nuremberg tinham, em quase sua totalidade, a tese da obediência a um sistema jurídico. Diante desses episódios, o positivismo mostrou-se apático para resguardar valores intrínsecos de todos os humanos, como a dignidade e a ética. O passo seguinte foi o surgimento do pós-positivismo.
- Clique aqui para ver a íntegra do artigo.
__________
1 - RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial – Parâmetros Dogmáticos. Saraiva.2010. p. 21
2 - BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariane Bueno Sudatti. 4. ed. Edipro. 2008,p. 55.
3 - BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo:Saraiva. 2010,p. 324
4 - KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Versão condensada pelo autor. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 7. ed. São Paulo: RT. 2011,p. 81-82.
__________
*José Antonio Gomes Ignácio Junior é advogado, professor de Direito (EDUVALE), doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa Luiz de Camões, mestre em Teoria do Direito e do Estado, especialista em Direito Tributário e em Direito Público.