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A nova técnica de edição genética CRISPR impõe debate sobre limites nas modificações da espécie

Se o Direito não é capaz de conter o apetite da ciência, faz-se necessário fomentar o debate sobre este desafiante tema, com coragem e profundidade.

7/11/2019

Quais são os limites para a modificação genética? Com os avanços da técnica de edição genética CRISPR, as discussões sobre as fronteiras éticas para alteração de genes de seres vivos estão cada vez mais acaloradas. Por um lado, há diversos benefícios obtidos com CRISPR como aqueles aplicados ao agronegócio – o de mais intensa exploração desta tecnologia do Brasil – na obtenção de plantas geneticamente modificadas para aumento de produtividade. No entanto, a alteração das células humanas, sobretudo das células germinativas, ou seja, as que são passíveis de transmissão a descendentes e, portanto, capazes de provocar alterações na espécie humana, constitui questão complexa tanto sob o prisma filosófico quanto jurídico, merecendo debate e endereçamento.

Sabe-se que o direito caminha sempre a reboque do avanço da ciência. A realidade da edição genética em humanos deixou de ser ficção ou projeção futurista. Em novembro do ano passado, o pesquisador chinês He Jiankui chocou a comunidade científica ao anunciar que alterou os embriões que deram origem às gêmeas Lulu e Nana, nascidas naquele mês, conferindo-lhes uma configuração genética que lhes tornaria resistentes à contração do HIV. Até então, jamais tinha sido declarada publicamente a edição genética de humanos.

Em março deste ano, um grupo de cientistas — entre eles Eric Lander, Françoise Baylis, Feng Zhang, Emmanuelle Charpentier, Paul Berg e especialistas de sete países — levantaram a bandeira da necessidade de uma estrutura de governança internacional sobre o tema - um tipo de acordo global para determinar os limites da edição genética. Uma das principais preocupações do grupo consiste na construção de critérios para a mudança do DNA hereditário, contido nas células germinativas — espermatozoides e óvulos — para não gerar crianças geneticamente modificadas.

A sedução que este enorme horizonte de possibilidades exerce na comunidade científica indica a dificuldade de contenção das práticas de manipulação genética. Se, no passado, as discussões éticas giravam em torno da seleção e clonagem de embriões e, consequentemente de seres humanos, hoje a questão abriu-se num leque mais complexo de potenciais aplicações, desde a manipulação de características simples – por exemplo, ligadas à anatomia e estética – até a evolução das capacidades cognitivas e de sobrevivência dos seres geneticamente editados.

A criação de seres humanos mais evoluídos e adaptados, como explorado na ficção de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, da década de 30, aproxima-se da realidade, agora sob os dilemas de uma sociedade em que tal nova espécie, melhorada, contrapõe-se a uma massa de seres humanos que se tornarão economicamente irrelevantes, por força da tecnologia e da automatização dos processos, como abordado por Yuval Harari em seus best sellers “Sapiens, uma breve história da humanidade” e “Homo Deus – uma breve história do amanhã”.

É fato que a ciência e a tecnologia avançam muito mais rapidamente que os mecanismos jurídicos de regulação. Vivemos recentemente esta realidade em matéria de privacidade e proteção de dados, observando a regulação do tema na União Europeia e em outras legislações, incluindo o Brasil, depois de já derramado o leite dos escândalos ligados à Cambridge Analytics e seu impacto no Brexit e na manipulação de processos políticos eleitorais diversos.

Na questão da edição genética de humanos, a regulamentação global visa a responder à importante preocupação decorrente da possibilidade de se criar seres humanos com características físicas e morfológicas mais vantajosas que outros não modificados, como imunidade a doenças e ausência da pré-disposição para contraí-las. Tal interferência direta e racional na definição da espécie pode alterar características das gerações futuras, favorecendo geneticamente àqueles que tivessem condições econômicas de acesso a esta tecnologia. 

Os debates mundiais mostram-se incipientes no que se refere ao estabelecimento de fronteiras harmônicas e hegemônicas de conduta que orientem os pesquisadores e que tracem parâmetros legais e éticos para o uso de CRISPR. Os tratados internacionais multilaterais neste tema remontam ao Código de Nuremberg, criado após a Segunda Guerra Mundial para estabelecer um conjunto de princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos, fruto da trágica constatação dos experimentos médicos nazistas realizados com humanos nos campos de concentração.

Cerca de meio século depois, em 2003, entrou em vigor o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que visa a assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados (OVMs) resultantes da biotecnologia moderna.

CRISPR é uma ferramenta que, ao que tudo indica, permite atingir resultados finais já conhecidos — organismos geneticamente modificados — de forma mais rápida, simples e a um custo menor comparado aos demais processos de edição genética conhecidos até hoje. Isso poderia abrir um flanco de experimentos e com muito mais possibilidades do que se poderia imaginar à época da grande guerra. Na ausência de regulamentações globais, as legislações, normativas e os tratados internacionais existentes oferecem meros indicativos de como abordar o tema legalmente. 

No Brasil, a lei de Biossegurança (11.105, de 24 de março de 2005) proíbe a manipulação e a modificação genética em embriões humanos e também a clonagem humana, exceto para fins de pesquisa e terapia, desde que observados os limites impostos pela Lei. Aqui, as instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizam pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas devem submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. Ainda, no caso da modificação genética em plantas, as pesquisas e projetos que adotam tecnologias de alteração genética precisam ser aprovadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que avalia a segurança biológica dos organismos transgênicos em relação aos demais seres vivos e meio ambiente como um todo.

Na esfera da alteração genética humana, o debate ainda precisa ser bastante aprofundado. Se o Direito não é capaz de conter o apetite da ciência, faz-se necessário fomentar o debate sobre este desafiante tema, com coragem e profundidade.

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*Laetitia d'Hanens é sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.







*Mariana Zanardo Dessotti é advogada do escritório 
Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.







*Guilherme Keppe Zanini é especialista de patentes do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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