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Da constitucionalidade da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras

No final de junho de 2006 o Supremo Tribunal Federal decidiu que os bancos estão sujeitos às regras do Código de Defesa do Consumidor na relação com seus clientes. Após quatro anos da interposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade em desfavor do Parágrafo 2º do Artigo 3º do CDC, os ministros entenderam, por maioria, à constitucionalidade do referido parágrafo. O parágrafo em questão define o que é “serviço” para efeitos do Código de Defesa do Consumidor: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

17/10/2006


Da constitucionalidade da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras

 

Felipe Monteiro de Albuquerque*

No final de junho de 2006 o Supremo Tribunal Federal decidiu que os bancos estão sujeitos às regras do Código de Defesa do Consumidor na relação com seus clientes. Após quatro anos da interposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade em desfavor do Parágrafo 2º do Artigo 3º do CDC, os ministros entenderam, por maioria, à constitucionalidade do referido parágrafo.

 

O parágrafo em questão define o que é “serviço” para efeitos do Código de Defesa do Consumidor: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

 

Depois que a Confederação Nacional de Instituições Financeiras ingressou com a ADIN em 2001, visto o quão complexa é a matéria, o seu julgamento ficou marcado pela celeuma, onde a partir de abril de 2002 os ministros começaram a proferir os seus votos, contudo apenas em junho de 2006 foi declarada a constitucionalidade da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às Instituições Financeiras.

 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade tem o escopo de formalizar declarada a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 3º do CDC, por conseqüência do artigo 192 da Constituição Federal de 1988, que dispõe acerca da necessidade de o Sistema Financeiro Nacional ser regulado por Lei Complementar: “o Sistema Financeiro Nacional estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõe, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.

 

Senão Vejamos:

 

O artigo 192 da Constituição Federal dispõe, ainda, que a regulamentação do sistema financeiro nacional deverá respeitar os seguintes preceitos:

• o sistema financeiro nacional deverá ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país;

 

• a regulamentação do sistema financeiro nacional deverá ter como meta principal servir aos interesses da coletividade;

 

• por expressa determinação constitucional, a previsão do artigo 192 da Constituição Federal aplica-se também às cooperativas de crédito; e

 

• a regulamentação do sistema financeiro nacional deverá especificar a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

Nos termos do revogado § 3º do artigo 192, da redação original, as taxas de juros reais não poderiam ser superiores a 12% (doze por cento) ao ano, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações diretas ou indiretamente referidas à concessão de crédito. Previa, ainda, o texto constitucional que a cobrança superior a este limite deveria ser tipificada como crime de usura. Acontece, apesar disso, que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser norma constitucional de eficácia limitada, dependendo, para tanto, de edição de Lei Complementar, prevista no caput do citado artigo 192.

 

Na época houve a intenção de edição de Lei Complementar que regulamentasse todo o Sistema Financeiro Nacional, deixando de outorgar a aplicabilidade à taxa anual de juros.

 

Todavia, a fim de evitar maiores discussões jurídicas a respeito da possibilidade de redação de Lei Complementar excetuando o referido § 3º, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 40/03 (clique aqui), que revogou todos os incisos e parágrafos do supracitado artigo.

 

Contudo, com a nova redação dada ao artigo 192 da Constituição Federal, pela referida Emenda, concedeu ao congresso nacional maior liberdade para a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional, porquanto extinguiu a exigência da observância, por parte da Lei Complementar, de diversos preceitos previstos pela redação original do artigo 192. Desta feita, houve uma verdadeira desconstitucionalização do conteúdo básico da matéria referente ao Sistema Financeiro Nacional.

 

A controvérsia, agora, circunda a possibilidade da aplicabilidade da Lei Ordinária nº 8.078/90 (clique aqui) - trivialmente chamado de Código de Defesa do Consumidor – às Instituições Financeiras.

 

Resta, claramente, evidenciado, por outro lado, que as atividades desempenhadas pelas instituições financeiras, quer nas prestações de serviços a seus clientes – como cobrança de contas, expedição de extratos e outros serviços – quer na concessão de mútuos ou financiamentos para aquisição de bens, inserem-se igualmente no conceito amplo de “serviços”.

 

Ressalta-se, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor é bastante claro, quando fala em atividade de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, incluindo-se, por fim, os planos de previdência privadas e os seguros propriamente ditos.

 

Nélson Nery Jr.1 leciona que serviços bancários caracterizam relação de consumo em decorrência de quatro circunstâncias, a saber: (a) por serem remunerados; (b) por serem oferecidos de modo amplo e geral, despersonalizado; (c) por serem vulneráveis os tomadores de tais serviços, na nomenclatura própria do CDC e (d) pela habitualidade e profissionalismo na sua prestação.

 

Para Fabio Ulhôa Coelho2: “Considera-se bancário o contrato cuja função econômica se relaciona com o conceito jurídico de atividade bancária, preceituado no art. 17 da Lei nº 4.595/64 (clique aqui). Por atividade bancária, entenda-se a coleta, intermediação em moeda nacional e estrangeira. Esse conceito abarca uma gama considerável de operações econômicas, ligadas direta ou indiretamente à concessão, circulação ou administração do crédito. Estabelecendo-se paralelo entre atividade bancária e a industrial, pode-se afirmar que a matéria-prima do banco e o produto que ele oferece ao mercado é o crédito, ou seja, a instituição financeira dedica-se a captar recursos junto a clientes (operações passivas) para emprestá-los a outros clientes (operações ativas).”

 

Ainda esclarece Fabio Ulhôa Coelho3: “O contrato bancário pode ou não se sujeitar ao Código de Defesa do Consumidor, dependendo da natureza do vinculo obrigacional subjacente. O mútuo, por exemplo, será mercantil se o mutuário for exercente de atividade econômica, e os recursos obtidos a partir dele forem empregados na empresa. E será mútuo ao consumidor se o mutuário utilizar-se dos recursos emprestados para finalidades particulares, como destinatário final. No desenvolvimento das operações atípicas, isto é, não relacionadas especificamente com o conceito de atividade bancária, como cobrança de títulos e recebimentos de tarifas e impostos, o banco age como prestador de serviços não somente para o cliente credor, mas direcionado a todos que procuram a agência simplesmente para realizar o pagamento. Em relação às operações típicas, como aceitação de dinheiro em depósito, concessão de empréstimo bancário, aplicação financeira e outras, o banco presta serviço a clientes seus, podendo classificá-lo (de acordo com conceitos próprios da atividade bancária, como o da reciprocidade) para fins de liberar tratamento preferencial ou atendimento especial a certas categorias de consumidores.”

 

É necessário ressaltar, ainda, o entendimento de José Reinaldo da Lima Lopes4: “É fora de dúvida que os serviços financeiros, bancários e securitários encontram-se sob as regras do Código de Defesa do Consumidor. Não só existe disposição expressa na Lei nº 8.078/90 (clique aqui) sobre o assunto (art.3º, § 2º), como a história da defesa do consumidor o confirma, quando verificamos que a proteção aos tomadores de crédito ao consumo foi das primeiras a ser criada. De outro lado, nas relações das instituições financeiras com seus ‘clientes’ podem-se ver duas categorias de agentes: os tomadores de empréstimos (mutuários) e os investidores (depositante)”.

 

Dando uma nova idéia aos preceitos retro relacionados, e, mormente a epistemologia do Código de Defesa do Consumidor, sintetizados no artigo 4º, notavelmente a expressamente reconhecida Hipossuficiência dos consumidores na relação com os fornecedores, como também faz referencia a harmonização dos interesses de um e do outro, educação recíproca e a ordem econômica como propósito constitucional, afora conter os abusos, incluindo entre os concorrentes. Geraldo de Camargo Vidigal5 leciona que: “Os direitos do consumidor estão afirmados e reservados, no artigo 170 da CF – mas ao lado dos princípios da livre iniciativa, dos valores sociais do trabalho, do princípio da liberdade de concorrência. Mas não se elencaram direitos do consumidor entre os fundamentos da República e do Estado de Democrático de Direito, entre os objetivos fundamentais da república, consagrados nos arts. 1º e 3º da CF”.

 

Ainda continuou, quando se reportou a contratos bancários: “Quem quer que celebre qualquer desses contratos não é consumidor de coisa alguma, nem os contratos importam em consumo de bens ou na fruição de serviços relativos a necessidades humanas. E por maior que seja a extensão que se possa dar aos vocábulos consumo e consumidor a eles não se podem assimilar os contratos bancários. Aplicar a lei de defesa do consumidor a quem celebra contratos bancários soaria tão estranho como aplicação do Código Penal a crianças. O Código Penal é inaplicável à criança porque os menores impúberes não podem infringir suas normas. O Código de Defesa do Consumidor não tem aplicação aos agentes de operações bancárias porque estas não cuidam do consumo e não envolvem consumidores”

 

Observa-se, portanto, que estas ponderações não só resistem ao próprio Código de Defesa do Consumidor, que expressamente dispõe acerca das atividades bancárias como sendo serviços e, por isso, está sujeito a sua aplicação, como também as atividades econômicas e a relação de consumo, compõem basicamente em: “concessão de crédito, cujo produto é o “dinheiro”, e assim é tratado além de apregoado pelos responsáveis pelas instituições financeiras; e prestação de serviços aos consumidores, quer no recolhimento de tributos ou outros pagamentos a crédito de terceiros, quer no próprio exercício de sua atividade precípua.”6

 

Em vista disso, constata-se como é complexa a matéria que nos apresenta, já que envolve a própria política de produção-distribuição-circulação-consumo, constantes no Título VII da Constituição Federal, que dispõe sobre a ordem econômica e financeira, principalmente, em seu artigo 170, conforme anteriormente dito, se funda na valorização do trabalho humano, na livre iniciativa e, por fim, assegura a todos a existência digna, elencando, expressamente, a observância do princípio da defesa do consumidor.

 

Importante, ainda, deter-se na capacidade bancária de multiplicação da moeda circulante em escritural, exercido pelos bancos de modo a receber juros considerando, materialmente, o mesmo dinheiro. O volume de moeda adicional “criado” pelo banco corresponde a moeda escritural, ou melhor, moeda bancária.

 

Segundo leciona Eugênio Gundin7: “só se concretiza nos livros dos bancos, através de algarismos que passam de um a outros livros ou de uma a outra coluna. Esses algarismos são animados pela vontade das partes mas não saem dos estabelecimentos de crédito, onde nascem, circulam e desaparecem”. Desta forma, se um banco recebe um quantum depositado por alguém, ele empresta a mesma quantia para, às vezes, mais de três pessoas, por exemplo, depositam R$ 100,00 (cem reais) em um determinado banco, este banco empresta esses mesmos R$ 100,00 (cem reais) a três pessoas, ou seja, em cima dos mesmos R$ 100,00 (cem reais) ele poderá lucrar, com os juros 03 (três) vezes mais com a moeda escritural.

 

Essa monumental multiplicação de moeda produzida pelos bancos tem como conseqüência; quando a taxa de juros é elevada, como ocorre entre nós, efeitos extremamente exacerbados. Ora, esta poderosa capacidade de geração de riquezas abstratas de modo algum poderá ficar sujeita ao plano microeconômico, sob pena de comprometimento do artigo 192 da Constituição Federal, que tende para o desenvolvimento equilibrado do país e a satisfação do interesse da coletividade.

 

Convém considerar, ainda, a desproporção existente nos contratos de financiamentos, onde os bancos impõem taxas altíssimas aos seus clientes. Ressaltando, apenas, que está desproporção não se deve somente quando se tratar de pessoas físicas, mas também quando se tratar de pequenas, médias e grandes empresas. Pois nestas contratações, muitas vezes, installare autênticas situações de dependência econômica.

 

Os clientes dos bancos figuram na relação como dominados, pois ficam claramente obrigados a depositar seus dinheiros nestas instituições, uma vez que não o fazendo ocorrerá a desvalorização. Daí porque tenho que o § 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor há de ser interpretado em coerência com a Constituição Federal, inclusive, e, repito ainda, não só em benesse dos clientes pessoas físicas, mas, também, em especial das empresas, em relação às quais a dependência econômica pode estar francamente caracterizada. Se faz mister não desprender a atenção do oligopólio bancário, que mediante a multiplicação de moeda circulante em moeda escritura, produz, desta maneira, bem público, diga-se dinheiro.

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1NERY JUNIOR, Nelson, PELLEGRINE GRINOVER, Ada, BRITO FILOMENO, José Geraldo e et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, ed. 7, p.470.

 

2COELHO, Fabio Ulhôa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994, p.174.

 

3op. Cit. p.174.

 

4LOPES, José Reinaldo da Lima. Consumidor e sistema financeiro. in Revista Direito do Consumidor, n. 19.

 

5VIDIGAL, Geraldo de Camargo. “Tarifas bancárias” in Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n. 17, p. 127-143.

 

6FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, ed. 7, p.47.

 

7GUDIN, Eugênio. Princípios de Economia Monetária. Rio de Janeiro: Agir, 1979, ed. 9.
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*Advogado do escritório Martorelli e Gouveia Advogados









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