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A edição genética (CRISPR) no centro das atenções da inovação em biotecnologia

Embora seja considerada uma técnica nova, por sua aplicação em organismos complexos, tal tecnologia repousa sobre processos biológicos presentes em um sofisticado sistema de defesa bacteriano, para a proteção contra alguns tipos de vírus, provavelmente já existente há milhares de anos e observado pela primeira vez na década de 80.

1/11/2019

A tecnologia de edição genética denominada CRISPR está revolucionando o campo da biologia molecular devido à sua eficiência e seu grau de precisão. Embora seja considerada uma técnica nova, por sua aplicação em organismos complexos, tal tecnologia repousa sobre processos biológicos presentes em um sofisticado sistema de defesa bacteriano, para a proteção contra alguns tipos de vírus, provavelmente já existente há milhares de anos e observado pela primeira vez na década de 80.

O acrônimo CRISPR, oriundo da expressão em inglês para “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”, refere-se a uma parte da ferramenta que permite editar mais fácil e precisamente sequências genômicas dos organismos vivos. Na prática, esta tecnologia opera como uma “tesoura molecular”, realizando “cortes” em sequências de DNA do genoma do organismo-alvo, possibilitando a sua edição racional.

Edição genética é o nome que se dá à possibilidade de alteração de sequências genéticas, como as de codificação de genes, por meio de deleção de porções do DNA, da inserção de novas sequências de DNA ou até mesmo a substituição de uma sequência por outra, alterando características ou propriedades dos organismos vivos, por escolha e seleção.

Como funciona esta técnica? As células dos organismos superiores, como os fungos, plantas e animais, possuem funções reparadoras, responsáveis pela manutenção da integridade e funcionalidade do genoma. Ao contrário do que se imagina, os genomas dos organismos complexos não são estáticos: estão em constante atividade, replicando-se, codificando proteínas e exercendo funções auto-reparadoras para se manterem íntegros diante dos sucessivos danos causados por fatores externos como a radiação do sol, espécies reativas de oxigênio, compostos presentes nos alimentos e bebidas, dentre outros. Para preservação face a tais fatores, nossas células possuem uma “maquinaria de reparo molecular” que lê continuamente as sequências de DNA do genoma, “consertando” eventuais erros ou danos e, evitando, por exemplo, o surgimento de cânceres ou qualquer mau funcionamento do organismo.

Com a tecnologia CRISPR tornou-se possível guiar as enzimas que clivam (ou “cortam”) o DNA na região de específico interesse para interferência. A clivagem ativa a maquinaria de reparo de DNA e, por meio da engenharia genética, possibilita a modificação de trechos selecionados do código, pela inserção, modificação ou adição de novas sequências de genes  naquela região da cadeia. Tornaram-se, assim, mais fáceis e precisos os processos de inativação de genes indesejados, de deleção integral, de inserção de genes, além do mapeamento e substituição de sequências alélicas, entre muitas outras alternativas. Tais interferências e modificações resultam na manipulação genética dos organismo em aspectos como, por exemplo, sua saúde, longevidade ou enfermidade.

São inúmeras as aplicações desta tecnologia: (i) na pesquisa básica, para a ampliação de conhecimentos sobre a função dos genes nas células, (ii) na medicina personalizada, por meio do estudo e combate a doenças genéticas, (iii) na agricultura, pela geração de novas plantas transgênicas e (iv) na indústria de química fina, pela produção de compostos de interesse, como, por exemplo, medicamentos e biocombustíveis a partir de microrganismos geneticamente modificados.

Não é de se estranhar que uma ferramenta com este potencial tenha se tornado o núcleo de uma guerra de patentes entre a Universidade da Califórnia (UC) e o Instituto Broad (IB), centro de pesquisa genômica vinculado à Universidade Harvard e ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Para entender o que está em jogo, vale relembrar a trajetória da pesquisa científica neste campo, desde a década de 80.

Naquela época, identificou-se que as bactérias conseguem identificar sequências de DNA de vírus que as atacam e fragmentar – ou clivar - tais sequências virais como forma de defesa, antes que o processo de infecção se complete. Por meio deste “corte molecular”, as bactérias incorporam pequenas porções do material genético viral em seu próprio genoma, tornando-se capazes de utilizar estas porções incorporadas como parâmetro de reconhecimento no caso de nova infecção pelo mesmo vírus, para uma defesa mais rápida e eficiente. Assim, por meio deste curioso “sistema imunológico”, as bactérias colecionam sequências genéticas dos vírus que já as invadiram para deles melhor se defenderem no caso de novo ataque.

O interesse por este sistema imunológico, restrito ao meio acadêmico até meados dos anos 2010, ganhou relevância quando a Dra. Jennifer Doudna, pesquisadora do campus de Berkeley da Universidade da California, vislumbrou e desenvolveu, juntamente com seus colaboradores, uma forma de controlar o sistema de clivagem para aplicação direta na edição de sequências de DNA. Sua equipe e ela demonstraram in vitro a aplicabilidade da tecnologia - designada CRISPR - e, perante o grande sucesso, depositaram pedidos de patentes a ela relacionados, sem especificar para qual tipo de célula o método serviria. Já naquele momento, declarações da Dra. Jennifer Doudna indicavam que a aplicabilidade do CRISPR para além dos tubos de ensaio ainda era um desafio a ser enfrentado, sobretudo no que tange à aplicação em células de organismos superiores.

Depois deste marco inicial, Dr. Feng Zhang, do Instituto Broad, centro de pesquisa genômica vinculado à Universidade Harvard e ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), aperfeiçoou o sistema com enfoque na edição de DNA de organismos mais complexos, como plantas, animais e humanos, dotados de células eucarióticas (onde núcleo e citoplasma separam-se por uma membrana), buscando também proteção por patentes. Mas apesar das patentes da Dra. Jennifer terem sido solicitadas primeiro, o Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO) concedeu a patente do Dr. Zhang antes, por força de uma particularidade procedimental de aceleração de exame adotada por ele. 

A Universidade da Califórnia não se conformou em perder o primeiro lugar da corrida e instaurou, em 2015, o chamado “interference proceeding” junto ao USPTO, declarando que tecnologia reivindicada na patente do Instituto Broad era uma decorrência óbvia da sua patente e feria o seu escopo de proteção.

A instância recursal do USPTO não acolheu este argumento e, em 2017, deliberou que, por ser direcionada às células eucarióticas dos organismos complexos, a tecnologia descrita na patente do Instituto Broad difere e não decorre daquela solicitada pela Universidade da California. Não satisfeita, a Universidade da California apelou desta decisão junto a uma Corte Federal norte-americana, mas perdeu novamente em juízo, tendo sido mantido, em 2018, o entendimento do USPTO e a concessão da patente do Instituto Broad.

No entanto, em junho deste ano, o USPTO, por iniciativa própria, instaurou processos de interferência (interfence proceeding) em relação a dez patentes da Universidade da California e a treze patentes e um pedido de patente do Instituto Broad, todos acerca da aplicabilidade do sistema CRISPR em células eucarióticas. Tais iniciativas podem significar que o USPTO mudou de entendimento e vislumbra que haveria relação entre a tecnologia reivindicada pela Universidade da Califórnia com aquela posteriormente solicitada pelo Instituto.

Esta iniciativa do USPTO causou novo rebuliço, e levou a Universidade da California a declarar que o Instituto Broad não estaria autorizado a invocar ser o pioneiro na aplicação da tecnologia para as células eucarióticas. No calor desta acirrada guerra, a Universidade da Califórnia ainda acusou os inventores do Instituto Broad de fazerem declarações mentirosas e materialmente falsas durante o processamento de sua patente, além de terem supostamente omitido dados e contextos não-favoráveis nos documentos enviados ao USPTO. O Instituto Broad negou, evidentemente, todas as acusações feitas.

Logo se vê que esta complexa briga está longe de se encerrar. Mas... amigos ou inimigos, vale a máxima “negócios à parte”. Além de cada um dos cientistas ter constituído empresas próprias, alvos de vultuosos investimentos financeiros, a Dra. Jeniffer Doudna e o Dr. Feng Zhang fundaram uma empresa conjuntamente, chamada Editas Medicine, especializada em desenvolver terapias de edição genética personalizada, que já atingiu valor de mercado aproximado de um bilhão de dólares.

A corrida pela edição genética continua disputada e, hoje, vai além do desenvolvimento do CRISPR.

No último dia 21 de outubro, o Instituto Broad publicou na Nature, uma das mais renomadas revistas científicas do mundo, sua nova tecnologia de edição genética chamada de Prime Editing, que seria ainda mais eficiente e segura que o CRISPR. A equipe de pesquisadores capitaneada pelo dr. Andrew Liu descreve esta nova ferramenta como um “lápis molecular” capaz de apagar e reeditar regiões do genoma humano sem precisar da etapa de clivagem do DNA, o que a tornaria mais segura. Testes desta nova tecnologia em células humanas e de ratos demonstram sua aptidão para corrigir a anemia falciforme e doença de Tay-Sachs, colocando-a na fronteira do conhecimento humano para revolucionar ainda mais as possibilidades de edição genética.

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*Laetitia d'Hanens é sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

*Guilherme Keppe Zanini é especialista de patentes do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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