Introdução
Acredita-se que o tema da probidade nunca esteve tão em voga quanto neste momento histórico pelo qual passa o Brasil. Reconhecido é por todos o fato de o novo governo empossado em janeiro de 2019, ter tido sua campanha eleitoral pautada pelo combate à corrupção. Com efeito, a probidade administrativa está na ordem do dia e a agenda governamental também vem sendo estruturada com essa preocupação. Tanto é verdade, que nunca se discutiu tanto na mídia a organização administrativa de um órgão tal qual ocorreu com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, quanto à proposta do governo de anexar o COAF à sua estrutura. O COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras - é um órgão administrativo que foi criado pela lei 9.613/98, durante as reformas econômicas feitas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Uma das primeiras medidas do atual governo foi editar uma medida provisória para retirar o COAF do Ministério da Economia e o anexar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.1 Contra a vontade do atual governo, o COAF acabou, depois de muita discussão no Congresso Nacional, sendo anexado ao Banco Central e mudou seu nome para UIF – Unidade de Inteligência Financeira.
Há uma promessa política de se implantar políticas públicas visando ao controle e à fiscalização da probidade administrativa, entendendo-se que essa política pública seria capaz de prevenir e combater a corrupção no Brasil.
Assim, o tema da probidade administrativa vem sendo estudado e discutido também pela classe acadêmica, fato que tem estimulado a produção de muitos artigos científicos recentemente. Com o presente artigo, espera-se contribuir com esse compêndio de iniciativas, incitar a reflexão crítica e trocar experiências com os leitores.
Considerando todo esse contexto atual, o objetivo desse trabalho é apresentar um estudo sobre a responsabilidade civil dos cartórios e sua necessária relação com o dever de probidade. Assevera-se que existe uma relação intrínseca entre os estudos da responsabilidade civil e da improbidade administrativa. Os cartórios, ou serventias extrajudiciais, são o objeto deste estudo e o ambiente dentro do qual se dão as relações jurídicas controladas sob o manto da probidade administrativa.
Foi dedicado, ainda, um espaço especial para o estudo dos cartórios, posto que se entende necessário ao desenvolvimento do tema. Nesta seara, serão analisados os aspectos normativos, funcionais e práticos que envolvem a atividade notarial e registral. Por fim, este artigo traz uma breve análise da aplicação das diversas espécies de responsabilidade e sua relação com os atos de improbidade dos cartórios.
1 - Panorama legal dos cartórios
Nos termos do art. 1º da lei 8.935/94, serviços notariais e de registro, tecnicamente intitulados serventias extrajudiciais, mas popularmente conhecidos simplesmente como cartórios, são aqueles serviços de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. De acordo com o disposto no art. 3º da mesma lei, notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do Direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Por serem os notários e registradores profissionais dotados de fé pública, ocupantes de cargos criados por lei e providos mediante concurso público de provas e títulos, estão sujeitos à fiscalização disciplinar do Poder Judiciário e só perdem essa condição mediante processo administrativo ou sentença judicial transitada em julgado. A atividade é remunerada por emolumentos, que têm natureza jurídica de taxa, cuja fixação tem seus parâmetros previstos em lei federal regulamentada por leis estaduais2. Por fim, é consenso na doutrina e na jurisprudência que os agentes delegatários, notários e registradores, equiparam-se a agentes públicos.
Hely Lopes Meirelles situa os tabeliães e registradores entre os agentes públicos delegados, ao lado dos concessionários e permissionários de obras e de serviços públicos, dos leiloeiros e dos tradutores, caracterizando-os como particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante, constituindo uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público3.
No mesmo sentido, é o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello4; e, ainda, o de Toshio Mukai, que os inclui entre os agentes privados em cooperação com o Poder Público5. A orientação doutrinária foi reiteradamente confirmada pela jurisprudência do STF, que, ainda sob a égide da Constituição de 1969, considerava estarem os notários e oficiais de registro incluídos na expressão “funcionários”, constante de seu art. 1076, expressão que abrange todo e qualquer agente que atue em nome do Estado7.
Já há muito tempo, na vigência da Carta de 1988, o Pleno do STF extinguiu todas as dúvidas imagináveis a respeito da natureza da atuação dos notários e registradores, na apreciação do RE 178.236/RJ, relator min. Octávio Gallotti, DJ de 11/4/97. Neste precedente, com base na investigação da natureza das funções desempenhadas pelos notários e registradores e das condições da prestação do serviço, anotou o min. Celso de Mello em seu voto que: “(...) Os emolumentos, na realidade, representam modalidade de remuneração de serviços estatais prestados por agentes públicos (os Tabeliães e os oficiais registradores), no desempenho de delegação outorgada pelo Poder Público, com fundamento no texto constitucional (art. 236).”8.
Impõe-se enfatizar que as serventias extrajudiciais, instituídas pelo Poder Público para o desempenho de funções técnico-administrativas e destinadas “a garantir a publicidade, eficácia e segurança dos atos jurídicos” (lei 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos. Não se pode desconsiderar, nesse ponto, a communis opinio doctorum, que classifica os serventuários entre os servidores públicos, eis que – conforme adverte Aguiar Dias – “(...) só por supersticioso apego a essa tradição abandonada (a da atribuição dos cartórios a título de propriedade), continuaríamos a negar ao serventuário de Justiça a condição de funcionário público.”9.
Vale transcrever a decisão do STF sobre o tema: “(...) O Pleno do STF, refletindo em seu magistério jurisprudencial esse entendimento, deixou positivado que os notários públicos e os oficiais registradores “são órgãos da fé pública instituídos pelo Estado” desempenham, nesse contexto, “função eminentemente pública”, qualificando-se, em consequência, “como servidores públicos”10.
Pelo próprio exame do vigente texto constitucional, permite-se concluir pela estatalidade dos serviços notariais e registrais, autorizando-se, ainda, o reconhecimento de que os serventuários incumbidos do desempenho dessas relevantes funções qualificam-se como típicos servidores públicos, pois: só podem exercer as atividades em questão por delegação do Poder Público (CF, art. 236, caput); estão sujeitos, no desempenho de suas atribuições funcionais, à permanente fiscalização do Poder Judiciário (CF, art. 236, § 1º); e dependem, para o ingresso na atividade notarial e de registro, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos (CF, Art. 236, § 3º).
Os serviços notariais e de registro, sobretudo por sua relevante função social de formalizar e conferir autenticidade a instrumentos que consubstanciam atos jurídicos extrajudiciais dos interesses dos solicitantes, bem como de assentar títulos de interesse privado ou público para garantir oponibilidade a todos os terceiros, podem, eventualmente, causar danos a terceiros particulares e ao Poder Público11 .
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1 - Medida Provisória nº 893/2019.
2 - Emolumentos – natureza jurídica de taxa. Representação de inconstitucionalidade. Custas e emolumentos judiciais e extrajudiciais. Sua natureza jurídica. Decreto n. 16.685, de 26 de fevereiro de 1981, do governo do Estado de São Paulo. – não sendo as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais preços públicos, mas, sim, taxas, não podem eles ter seus valores fixados por decreto, sujeitos que estão ao princípio constitucional da legalidade (par. 29 do artigo 153 da emenda constitucional n. 1/69), garantia essa que não pode ser ladeada mediante delegação legislativa. Representação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto 16.685, de 26 de fevereiro de 1981, do governo do Estado de São Paulo. STF, Rp 1094-SP, j. 8.8.1984, Rel. Min. Soares Munoz. Relator para acórdão Min. Moreira Alves. Pleno.
3 - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
4 - MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 232-233.
5 - MUKAI, Toshio. Direito Administrativo sistematizado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 153.
6 - Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, no caso de culpa ou dolo.
7 - STF, RE 175.739-6/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 26/2/1999.
13 CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 54.
8 - CEJ, Brasília, n. 30, p. 87-93, jul./set. 2005 .
9 - DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 2.
10 - RTJ 67/327, Rel. Min. Djaci Falcão.
11 - DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 155.
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*Mariângela Ariosi é titular de cartório em SP.