Migalhas de Peso

A liberdade econômica, as debêntures e a síndrome de Estocolmo jurídica

O texto da “MP da Liberdade Econômica”, depois de ser amplamente discutido no Congresso Nacional, foi sancionado pelo presidente da República e convertido na lei 13.874/19. A tramitação seguiu o caminho normal que toda medida provisória deveria seguir. Mas o problema, está relacionado ao conteúdo do que se discutiu. Aí está nossa “Síndrome de Estocolmo Legislativa”.

31/10/2019

Em 20 de agosto de 2019 estava em Estocolmo, a trabalho. Depois de concluir as duas reuniões agendadas para o dia, resolvi dar uma caminhada pela cidade. Cheguei à Praça Norrmalmstorg, onde ficava, durante a década de 1970, a sede do então Sveriges Kreditbank, um banco comercial sueco que mais tarde se fundiu com o Postbank. O prédio onde o banco estava sediado é muito bonito e hoje abriga um luxuoso hotel. Lá, em agosto de 1973, aconteceu famoso e fracassado assalto que se transformou em sequestro. Durante tal acontecimento, alguns dos reféns acabaram por desenvolver afeição pelos sequestradores. Esta é a origem da expressão “síndrome de Estocolmo”.

Muito recentemente, mais precisamente no dia 20 de setembro de 2019, o texto medida provisória 881, de 30 de abril de 2019, também conhecido como “MP da Liberdade Econômica”, depois de ser amplamente discutido no Congresso Nacional, foi sancionado pelo presidente da República e, finalmente, convertido em lei, de número 13.874/19. Até aí, nada demais, pois a tramitação seguiu o caminho normal que toda medida provisória deveria seguir. O problema, na verdade, está relacionado ao conteúdo do que se discutiu. Aí está nossa “Síndrome de Estocolmo Legislativa”.

Em primeiro lugar, precisamos de uma lei (antes, uma medida provisória) para assegurar algo que a própria Constituição Federal, em seu artigo 170, já o faz de maneira ampla, que é proteger a liberdade econômica. Em segundo lugar, o fato de a iniciativa de tal diploma legal ser do Poder Executivo – novamente, por meio de medida provisória - e não do próprio Poder Legislativo. O Congresso Nacional deveria estar mais próximo dos anseios da população e legislar de maneira adequada (para fomentar a geração de empregos, o aumento da riqueza e o conforto da população em geral), e não simplesmente para defender os interesses da própria classe política ou agir de maneira populista, como se vê há décadas.

De fato, cada vez mais o Congresso Nacional nos torna reféns de regras sem qualquer fundamento econômico e que somente prejudicam a celebração de contratos e o fechamento de negócios em território nacional. Boa parte das regras aprovadas pelo Congresso Nacional servem para aumentar “direitos sociais” que, verdadeiramente, criam enormes barreiras à geração de emprego, aumento da remuneração real dos trabalhadores, à criação de riqueza e aumento efetivo do conforto das famílias. Mas, depois de tanto ouvirmos argumento falaciosos, achamos que isso que o Congresso Nacional corriqueiramente faz é o natural e passamos a nos afeiçoar por isso tudo. Nós, os reféns, nos afeiçoamos pelo péssimo resultado do trabalho de um Congresso Nacional que nos prende e nos vilipendia diariamente, mas que faz de conta que trabalha a nosso favor.

Note-se que a nossa síndrome de Estocolmo vai além disso. De fato, nossa mentalidade legislativa e mesmo de nossa capacidade de interpretação legal são frutos de décadas de verdadeira lavagem cerebral que prejudica, em muito, na aplicação correta do direito dos negócios no Brasil.

Quando verificamos a possibilidade jurídica de celebrar determinado negócio jurídico, é muito comum que busquemos a norma que nos permita fazê-lo. Os entes públicos (sujeitos, portanto, às normas de direito público) são assim regidos. A análise jurídica, no entanto, deve ter outro foco, que é o de verificar se há uma regra existente, válida e eficaz (não inexistente, revogada e ineficaz) que não nos permita fazer tal negócio. É assim que deve ser aplicado o direito privado. Infelizmente, com o viés interpretativo incutido em nossas cabeças (que até mesmo tem fundamento ideológico, mesmo que não percebamos), vemos (e experimentamos) limitações jurídicas inexistentes em todos os lugares que olhamos.

Vamos analisar um exemplo específico do que se discutiu durante a tramitação da MP da Liberdade Econômica: uma das emendas propostas ao texto original da MP previa a possibilidade de as sociedades limitadas emitirem debêntures. Como se sabe, as debêntures são valores mobiliários que representam dívida de seu emissor. Em outras palavras, as debêntures servem para documentar uma dívida que a sociedade emissora tem perante terceiros. Tais terceiros, em algum momento e de acordo com o título emitido, poderão cobrar a dívida da sociedade. A questão é bem simples e a ideia por detrás das debêntures também o é. São instrumentos que podem facilitar, em muito a atividade empresarial (e trazer consigo todos os benefícios que ela corriqueiramente tem). Tais títulos, por serem valores mobiliários, podem ser circular livremente e são muito úteis para as empresas, notadamente as mais novas também conhecidas como startups.

A previsão legal expressa acerca de tais títulos é encontrada tão-somente nas Lei das Sociedades por Ações. Em decorrência disso, abundam teses de que, por falta de previsão legal específica, estariam as sociedades limitadas proibidas de emitir tais títulos. Alguns dizem até mesmo que as debêntures são incompatíveis com o regime das sociedades limitadas, sem apontar exatamente qual seriam as incompatibilidades. Mais uma vez, interpreta-se o direito privado como se direito público fosse. Várias Juntas Comerciais até mesmo se negam a registrar tais títulos com base em interpretação de direito público a instituto jurídico que é claramente de direito privado.

Então, supostamente, precisaríamos de uma lei que as sociedades limitadas possam emitir debêntures, o que, por qualquer metodologia de interpretação jurídica, é errado afirmar. Por isso que, durante os debates legislativos que culminaram com a conversão da MP da Liberdade Econômica em lei, ventilou-se incluir no texto legal uma permissão para que as sociedades limitadas possam emitir as debêntures. Tal ideia até mesmo foi celebrada por alguns. Isso deixa claro que, infelizmente, estamos afeiçoados por nossos “sequestradores”.

O viés ideológico incutida em nossas cabeças afeta sobremaneira – e de maneira absolutamente deletéria - a interpretação de normas legais no Brasil. Se temos qualquer pretensão de nos tornarmos um país verdadeiramente desenvolvido e com crescimento econômico adequado, devemos nos atentar a isso e nos livramos desta verdadeira síndrome de Estocolmo jurídica em que vivemos.

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*Marcelo Godke é sócio de Godke Advogados, mestre em direito pela Columbia Law School (EUA), mestre em direito pela Universiteit Leiden (Holanda), professor do Insper, da FAAP e do CEU Law School.

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