A Procuradoria Geral da República ajuizou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF-618) perante o Supremo Tribunal Federal visando assegurar às pessoas que professam a religião Testemunhas de Jeová, desde que sejam maiores e capazes, o direito de não se submeterem a transfusões de sangue, por motivo de convicção pessoal. Os seguidores desta fé não aceitam o referido procedimento médico que irá considerá-los pessoas impuras e indignas do reino de Deus. O fulcro da questão reside no fato da comunidade religiosa aceitar métodos alternativos à transfusão de sangue. Na impossibilidade, a recusa é o demonstrativo inequívoco da convicção religiosa.
A medida judicial visa, desta forma, impedir a obrigação dos médicos de realizarem o procedimento quando encontrarem pela frente a recusa terminativa do paciente. A opção religiosa, nesta formatação, abarca, a um só tempo, os direitos de personalidade proclamados na Constituição Federal. A obrigatoriedade terá lugar, no entanto, quando o paciente for menor e o tratamento for indispensável para salvar a vida da criança, mesmo com a oposição dos responsáveis.
Uma das questões que, reiteradamente, traz à baila um consistente debate jurídico reside na recusa do paciente da crença já referida de se submeter à transfusão de sangue. O debate também chegou à Suprema Corte por meio do RE 1212.272, que já reconheceu repercussão geral do tema, via plenário virtual. Trata-se de um caso em que a paciente, por motivo religioso, apesar de ter assinado o Termo de Consentimento Informado, negou-se a assinar o termo referente à autorização prévia de eventual transfusão sanguínea na cirurgia de substituição de válvula aórtica, realizada em rede pública de saúde, por ser incompatível com a fé processada. Justifica que se trata de uma ofensa à sua dignidade e ao acesso à saúde, contestando a nítida interferência estatal.
O princípio da autonomia da vontade, viga mestra do Código de Ética Médica (resolução 2217/18 do Conselho Federal de Medicina), outorga ao paciente o direito de se manifestar a respeito de eventual tratamento proposto pelo médico, demonstrando, de forma transparente, que sua vontade é de vital importância para se chegar à uniformidade de pensamento. Na realidade, pelo recorte feito no referido código deontológico, a relação médico-paciente deve retratar uma verdadeira sintonia, na medida em que ambos dividem responsabilidades paritárias a respeito do conteúdo terapêutico. A autorização do paciente se faz necessária em razão do ato compartilhado, consistente na prática de propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico. Seria uma aquiescência ou permissão que o paciente entrega ao médico para que realize o procedimento discutido e ajustado anteriormente.
Tem-se que, por outro lado, a vida humana representa um bem indisponível, com tutela integral da Constituição Federal que a erigiu como o bem maior do homem, distinguindo-a com inúmeros direitos fundamentais. Assim, nesta linha de pensamento, há ativa participação estatal na preservação da vida, conforme se constata pela resolução 1021/80 do Conselho Federal de Medicina no sentido de que, havendo iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. Assim como, pelos dizeres do art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal, é possível a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Tais dispositivos deixam claro que a recusa impeditiva do paciente não impede a transfusão de sangue.
O mesmo Conselho Federal de Medicina, na recente resolução 2232/19, abrandou a norma da resolução 1021/80, e assim dispôs em seu artigo 3º: “Em situações de risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros”. Quer dizer, a contrario sensu, se o paciente for maior e capaz, em caso de risco relevante à saúde, o médico deve aceitar a recusa terapêutica.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente decisão, assim proclamou: “Em que pesem as referidas convicções religiosas da apelante que, não obstante lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que a vida deve prevalecer acima de qualquer liberdade de crença religiosa”.1
O mesmo Tribunal, em decisão liminar, ainda sem apreciação do colegiado, decidiu: "A priori, vislumbro legitimidade na recusa do agravante de se submeter às transfusões de sangue, visto que tal procedimento, para ele, implicaria em tratamento degradante por afrontar as suas crenças".2 Não prevalece, sob esse prisma, a medicina de intervenção obrigatória conflitando com o princípio da autonomia da vontade do paciente que recusa os cuidados oferecidos. É de se observar ainda que a autonomia não fica adstrita à recusa em razão de convicção religiosa. Pode ser também por opção pessoal do paciente.
Resta, finalmente, apontados os caminhos a serem trilhados, aguardar a decisão que será proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
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