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Desjudicialização da execução civil: mito ou realidade

A desjudicialização da execução era uma tendência, principalmente na Europa, até mesmo em razão da recomendação de 17 de 9/9/03 do Conselho da Comunidade Europeia.

18/10/2019

Durante meus estudos de mestrado na PUC/SP, concluído em 2008, era natural a eleição de um tema voltado para a então recente lei 11.232/05 – que estabeleceu o sincretismo processual, ou seja, o cumprimento de sentença em continuação ao processo de conhecimento. Pesquisando direito estrangeiro para o mestrado, então, tomei conhecimento que a desjudicialização da execução era uma tendência, principalmente na Europa, até mesmo em razão da recomendação de 17 de 9/9/03 do Conselho da Comunidade Europeia, que orientava os Estados-membros a promoverem a eficácia da execução por meio de agentes de execução.

Fui buscar da experiência estrangeira o que havia de diferente ou de novo e conclui que a grande maioria dos países realiza a execução extrajudicialmente, ainda que em diferentes escalas e métodos. No modelo alemão e italiano, o agente de execução é um funcionário público, mas autônomo e independente (Gvz e ufficiale giudiziario); no modelo francês, é um agente privado (Huissier); no modelo espanhol, apesar de ainda inserido dentro do Poder Judiciário, o secretário tem autonomia para todos os passos da execução – o juiz apenas recebe a petição inicial. Os embargos do devedor são mantidos em todos os casos. Há o modelo administrativo sueco, no qual o próprio Estado cobra as obrigações. Já nos EUA e Inglaterra, é o sheriff quem assume a tarefa. Mais recentemente, mas há 15 anos, Portugal desjudicializou a execução para o agente de execução, quem exerce a atividade de modo privado.

Somado ao estudo de direito comparado, havia uma novidade no país: o início dos estudos estatísticos de desempenho do Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2004 (“Justiça em Números”), que demonstrava um verdadeiro colapso no processo executivo brasileiro: taxa de congestionamento média de 85%, ou seja, de cada 100 processos executivos em trâmite apenas 15 eram efetivos, com satisfação da obrigação e baixa definitiva do feito. Esse cenário é o mesmo até os dias de hoje!

Ainda segundo o “Justiça em Números” do CNJ, o gargalo do Judiciário é a execução, em maior escala a fiscal, em segundo plano as demais – criminal, civil e trabalhista. Todo esse acervo corresponde a 54.2% dos processos em trâmite perante o Poder Judiciário hoje em dia. A execução tem um período de tramitação de 4 anos e 9 meses em média, enquanto o processo de conhecimento de 1 ano e 6 meses. Esses dados só confirmam a minha opinião no sentido de que a máquina judiciária não funciona e ao mesmo tempo, despende enormes cifras de custo do Estado: aproximadamente R$ 65 bilhões, considerando-se os 13 milhões de execuções civis pendentes, a um custo médio de R$ 5.000,00 por processo (e R$ 449,53 por habitante).

Precisamos modificar esse cenário, pois a eficácia da satisfação do direito subjetivo reconhecido na sentença ou no título extrajudicial, em razoável tempo, importa em redução do risco da inadimplência e em estabilidade e segurança nas relações, e consequentemente, em diminuição do custo de crédito – taxa de juros e spreead, por exemplo. O ambiente favorável gera o aumento da circulação de riquezas, especialmente em razão da atração de investimento estrangeiro. Como resultado lógico desse círculo virtuoso, há melhora da economia do país.

Essa é a razão pela qual emendei mestrado e doutorado, me aprofundei nos estudos e propus a desjudicialização da execução de lege ferenda em 2012, quando defendi minha tese. Hoje realizo um pós-doutoramento em Lisboa para avaliação dos 15 anos da reforma executiva daquele país, que desjudicializou completamente a execução e é excelente exemplo a ser seguido, até em razão da cultura e do sistema judiciário semelhantes!

Me espelhando na recente desjudicialização da execução portuguesa, mas com o máximo aproveitamento das estruturas existentes no Brasil, propus que a função pública da execução dos títulos executivos fosse delegada a um tabelião, por meio de outorga a um profissional de direito devidamente concursado, o qual deve ser remunerado de acordo com os emolumentos fixados por lei. Sustentei que fiscalização dessas atividades fosse realizada pelo Poder Judiciário – CNJ e corregedorias estaduais.

Dentre os agentes delegados existentes no ordenamento jurídico, sugeri que o tabelião de protesto tivesse suas competências alargadas, para que assumisse também a realização das atividades executivas, uma vez que afeito aos títulos de crédito. Além disso, propus a valorização do protesto como eficiente medida coercitiva para o cumprimento das obrigações.

Segundo tal proposta, o tabelião de protesto passa a realizar a tarefa de verificar os pressupostos do requerimento de execução, realizar a citação, penhorar, expropriar, receber pagamento e dar quitação, reservando-se ao juiz estatal a eventual resolução de litígios, quando provocado por intermédio dos competentes embargos, bem como de outros incidentes criados, quais sejam, a consulta e a suscitação de dúvidas, de modo que restam assegurados os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e até mesmo do acesso à Justiça, ainda que sob um novo prisma.

Se a execução é delegada para os tabelionatos de protestos, que já são afeitos aos títulos de crédito e já possuem expertise necessária da matéria, os juízes poderão dispensar maior tempo e energia nas demandas que exigem cognição, resolução de conflito e por fim e ao cabo, dizer o direito - sua atividade constitucionalmente prevista.

No que importa para a nossa classe de advogados, importante dizer que o exequente estará sempre representado por advogado em todos os atos executivos extrajudiciais, respeitadas as regras processuais (CPC) para a fixação da verba honorária.

Realizada essa exposição prévia, concluo dizendo que se a desjudicialização da execução civil pareceu mito até hoje, hoje começa a se tornar realidade! Em uma audiência ocorrida em 15/10/19, a Senadora Soraya Thronicke recebeu o anteprojeto de lei já revisado conforme suas solicitações – ela já havia recebido antes, publicado em suas redes sociais que iria encampar, mas estava aguardando o novo documento, mais enxuto e de fácil tramitação, com poucas alterações ao Código de Processo Civil. Ela já havia circulado a minuta anterior e agora o novo anteprojeto já chega com apoios institucionais, da ANOREG e CNJ, dentre outros, que formalizarão em muito breve. O Desembargador Joel Dias Figueira Junior teve fundamental papel na nova redação de anteprojeto e deve ser citado aqui como presidente de uma comissão criada para esse fim.

Vale lembrar que já tramita no Congresso Nacional recente projeto de lei de 4.257/19, de autoria do Senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), que além de prever a possiblidade de arbitragem tributária, dispõe acerca da desjudicialização da execução fiscal, modificando, para tanto, a lei 6.830/80.

Ambas as propostas devem ser vistas com muito bons olhos para o desafogamento do judiciário, para a diminuição do custo do Estado e para o incremento da economia e investimentos.

_________________

*Flávia Pereira Ribeiro é advogada, doutora e mestre em Direto Processual Civil pela PUC/SP, especialista em Direito Imobiliário pela UniSecovi e pós-doutoranda em Direito pela universidade de Lisboa. Atualmente membro do IBDP e CEAPRO.

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