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Convenção da Haia sobre a obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil ou comercial e posição do Brasil quanto ao pre-trial discovery dos países de common law

Responsável por avaliar e eventualmente conceder exequatur às cartas rogatórias, compete ao STJ interpretar a aplicação da mencionada declaração do artigo 23 da Convenção da Haia sobre Provas e estabelecer um posicionamento firme do Brasil quanto à sua abrangência, limitações, declarações e reservas.

17/10/2019

Como parte de um esforço para facilitar a cooperação jurídica no âmbito de litígios e disputas internacionais, o Brasil aderiu à Convenção da Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial (Convenção da Haia sobre Provas). Promulgada no ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto 9.039, de 27 de abril de 2017, a Convenção da Haia sobre Provas tem sido utilizada crescentemente e pretende descomplicar a troca de documentos e informações entre partes no Brasil e em dezenas de outros países1.

Conforme linhas iniciais do texto integral2, a Convenção da Haia sobre Provas objetivou “facilitar a transmissão e a execução de cartas rogatórias e promover a harmonização dos diversos métodos por eles [Estados signatários] utilizados para tais fins”, a fim de “tornar mais eficiente a cooperação judiciária mútua em matéria civil ou comercial”.

Justamente com essa finalidade, a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, organização internacional de caráter permanente desde a aprovação do seu Estatuto em 15 de julho de 1955, aprovou diversas convenções e protocolos ao longo dos anos, inclusive e de forma muito pertinente as de cunho processual3, dentre as quais a Convenção da Haia sobre Provas firmada em 18 de março de 1970. Todavia, a validade e aplicabilidade interna da Convenção da Haia sobre Provas no Brasil, ainda com ressalvas, ocorrem a partir da sua promulgação em 27 de abril de 2017 por meio do decreto 9.039/174.

O maior benefício experimentado pela Convenção da Haia sobre Provas — a fim de garantir celeridade e efetividade para os pedidos de cooperação jurídica — consistiu na “eliminação da via diplomática”, ou seja, do procedimento burocrático das cartas rogatórias junto a representantes diplomáticos ou Ministério das Relações Exteriores e ministros de Estado, substituindo-a por uma via direta pelo estabelecimento de uma autoridade central. No caso do Brasil, o Ministério da Justiça, por intermédio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI)5. Para esse fim, já foram estabelecidas parcerias no âmbito da Convenção da Haia sobre Provas (por meio de adesões e aceitações) entre o Brasil e Albânia, Alemanha, Andorra, Argentina, Armênia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Cazaquistão, China (inclusive Hong Kong e Macau), Chipre, Colômbia, Coreia, Costa Rica, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, Grécia, Israel, Itália, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Marrocos, México, Mônaco, Montenegro, Países Baixos (Holanda, inclusive Aruba), Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia, Rússia, Sérvia, Sri Lanka, Suíça e Turquia6. Os Estados Unidos da América informaram que atenderão a pedidos brasileiros com base na Convenção da Haia sobre Provas, embora ainda não tenham formalmente aceito a adesão do Brasil.

Quanto aos aspectos formais e procedimentais dos pedidos de cooperação internacional, a Convenção da Haia sobre Provas estabeleceu requisitos básicos a serem observados e, em especial, facultou aos Estados-partes a realização de determinadas ressalvas para aderência da Convenção da Haia sobre Provas ao ordenamento jurídico interno de cada país. No caso do Brasil, em razão da incompatibilidade de alguns dispositivos da Convenção da Haia sobre Provas, foram realizadas as seguintes declarações e reservas quando de sua internalização no ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do decreto 9.039/17 e como informado pelo Ministério da Justiça7:

“a) Declaração com relação ao artigo 4º, parágrafo 2º, nos termos do artigo 33: Todas as cartas rogatórias enviadas ao Brasil deverão ser acompanhadas de tradução para o português.

b) Declaração com relação ao artigo 8º: Autoridades judiciárias de um Estado requerente poderão assistir ao cumprimento de cartas rogatórias no Brasil caso tenha sido concedida autorização por parte da autoridade que as executa.

c) Reserva ao Capítulo II da Convenção, nos termos do seu artigo 33. No Brasil, a Convenção não se aplica à obtenção de provas por representantes diplomáticos, agentes consulares ou comissários.

d) Declaração com relação ao artigo 23: O Brasil declara que não cumprirá as cartas rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obter o que é conhecido, nos países de Common Law, pela designação de pre-trial discovery of documents.

A autoridade judiciária brasileira, portanto, deverá aplicar a legislação local no tocante aos aspectos formais e procedimentais, sendo que a rejeição de pedido formulado por autoridade estrangeira somente ocorrerá na hipótese de o procedimento requerido ser incompatível com a legislação pátria, ou sua execução impossível, sendo essa a principal razão pela qual algumas reservas foram feitas ao texto da Convenção da Haia sobre Provas quando de sua internalização no ordenamento jurídico brasileiro. Em especial quanto à declaração do artigo 23 da Convenção da Haia sobre Provas8, possivelmente o seu aspecto mais controvertido9, o Brasil no exercício da sua soberania nacional e em observância ao sistema interno declarou que não dará cumprimento a pedidos que visem à obtenção de documentos para a chamada fase de pre-trial discovery dos países de Common Law, justamente pela sua incompatibilidade com o sistema jurídico interno.

O pre-trial discovery é um conceito conhecido e utilizado nos países de Common Law a exemplo dos Estados Unidos da América (EUA), mas desconhecido em certa medida e incompatível com o processo civil adotado no Brasil, de Civil Law. As Normas Federais de Processo Civil (Federal Rules of Civil Procedure) dos EUA, por exemplo, preveem uma fase preliminar e exploratória de apresentação de documentos entre as Partes (i.e. com interferência mínima do Juízo), denominada de pre-trial discovery, na qual as partes podem solicitar mutuamente a coleta e o compartilhamento de amplas categorias de documentos, que serão avaliados e poderão ou não ser apresentados e utilizados como evidência durante o julgamento do caso, a chamada trial do processo norte-americano.

Portanto, o pre-trial discovery é, essencialmente, uma ferramenta de obtenção de provas inerente ao processo civil dos países de Common Law, e em que as partes, de forma extensiva e genérica e previamente ao julgamento da ação, disponibilizam uma à outra um conjunto enorme e quase indistinto de documentos (diferentemente do que acontece no Brasil), sendo apenas parte desses documentos selecionado como relevante em preparação ao trial e eventualmente utilizado em suporte ao caso.

Sendo assim, fato é que o decreto 9.039/17 promulgou a referida Convenção da Haia sobre Provas no ordenamento brasileiro, conforme seu artigo 1º, realizando as reservas e declarações facultadas aos Estados-partes, em especial sobre o não cumprimento aos pedidos que visem à obtenção de documentos para a pre-trial discovery, conforme previsto no artigo 23 da Convenção da Haia sobre Provas anexa ao referido decreto:

“Art. 1º Fica promulgada a Convenção sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, firmada em Haia, em 18 de março de 1970, com reserva ao parágrafo 2º do art. 4º e ao Capítulo II, nos termos do art. 33, e com as declarações previstas nos art. 8º e art. 23, anexa a este Decreto.”

“Artigo 23. Os Estados Contratantes podem, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, declarar que não cumprirão as Cartas Rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obterem o que é conhecido, nos países de Common Law, pela designação de pre-trial discovery of documents.”

Conforme exposição de motivos do ministro de Estado das Relações Exteriores que acompanhou o pedido encaminhado ao Congresso Nacional à época da aprovação da Convenção da Haia sobre Provas por meio do decreto legislativo 137/13 — que antecedeu o depósito da adesão do Brasil em 2014 e a promulgação da Convenção da Haia sobre Provas em 2017 —, a declaração do artigo 23 pelo Brasil deveria ser realizada para proteger o ordenamento jurídico nacional contra dispositivos incompatíveis, notadamente o relacionado ao pre-trial discovery10.

Nesse contexto, os poderes Executivo e Legislativo do Brasil, com o intuito de salvaguardar a ordem pública e o sistema jurídico interno, reconheceram que o Brasil não dará cumprimento a pedidos que se enquadram no procedimento de pre-trial discovery dos países de Common Law, evitando assim pedidos sobremaneira abrangentes e exploratórios, enquanto a adesão busca facilitar e harmonizar a cooperação jurídica internacional, ativa ou passiva, quanto a pedidos estritos de documento específico e identificado.

Responsável por avaliar e eventualmente conceder exequatur às cartas rogatórias, compete ao STJ interpretar a aplicação da mencionada declaração do artigo 23 da Convenção da Haia sobre Provas e estabelecer um posicionamento firme do Brasil quanto à sua abrangência, limitações, declarações e reservas, nos termos do artigo 105, I, letra “i” da CF e dos artigos 216-O a 216-X do Regimento Interno do STJ, sempre observados a soberania nacional, a ordem pública, os bons costumes e o devido processo legal.

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1 - A lista e a situação dos países signatários podem ser encontradas em: clique aqui. Acesso em 21.2.2019, 14h25.

2 - Disponível em: Clique aqui

3 - Tais como a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros, Convenção sobre o Acesso Internacional à Justiça, Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial e a Convenção sobre a Escolha do Foro.

4 - Em que pese a Convenção da Haia sobre Provas ter sido de fato aprovada - com determinadas reservas e declarações - pelo Congresso Nacional em 19 de fevereiro de 2013 por meio do Decreto Legislativo nº 137 e, em seguida, ter sido depositada junto ao Ministério das Relações Exteriores dos Países Baixos em 9 de abril de 2014, entrando em vigor no plano jurídico externo em 8 de junho de 2014, a sua validade e aplicabilidade interna somente se deram a partir do Decreto 9.039/2017.

5 - Nos termos do artigo 26, IV, e §4º, do CPC.

6 - A lista de aceites e adesões pode ser verificada em: Clique aqui.

8 - “Art. 23 Os Estados Contratantes podem, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, declarar que não cumprirão as Cartas Rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obterem o que é conhecido, nos países de Common Law, pela designação de pre-trial discovery of documents.”

9 - A própria comissão especial sobre a Convenção da Haia reconheceu, em 2003, os desentendimentos relacionados à natureza do pre-trial discovery, conforme texto do “Outline Evidence Convention”, disponível em Clique aqui.

10 - “7. Por se basear no espírito de compatibilidade de seus dispositivos com outras normas de origem nacional ou convencional (arts. 27, b e c, 31 e 32), a Convenção adota algumas cláusulas (art. 28) que expressamente permitem às Partes negarem-se a aplicar algumas de suas disposições. Nesse sentido, seria conveniente que, no caso de adesão do Brasil, fosse apresentada ao órgão depositário, qual seja, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino dos Países Baixos, as seguintes reservas e declarações: (...) Declaração com relação ao Artigo 23: O Brasil declara que não cumprirá as cartas rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obter o que é conhecido, nos países de Common Law, pela designação de pre-trial discovery of documents.” Disponível em Clique aqui.

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*Júlio César Bueno é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Charles Ho Young Jung é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Gabriel Guratti do Nascimento é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados.

 

 


*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 
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