Com fim de elucidar a utilização do propósito negocial pelo Conselho dos Contribuintes (CARF), o presente artigo pretende pontuar como essa teoria foi aderida pelos tribunais brasileiros para classificar o planejamento fiscal como abusivo e, por fim, desconsiderar toda a operação societária.
Os propósitos e motivações para realização das operações societárias é um tema já muito discutido pela doutrina e pelo CARF. O que sempre se indagou foi: a operação seria considerada evasão fiscal quando realizada exclusivamente para afastar tributação?
Na evolução histórica da jurisprudência do CARF foram aplicadas, basicamente, duas teorias: (i) a formalista, na qual, basta a subsunção do fato à norma para a operação gerar seus efeitos, e (ii) a substantivista, onde ocorre uma análise do conteúdo que deu causa àquele negócio jurídico, isto é, sua finalidade. Ressalta-se que é justamente na teoria substantivista que se procede a análise do propósito negocial.
Pois bem. Primeiramente o CARF aplicou a teoria liberal formalista, ou seja, bastava que os planejamentos tributários cumprissem com as exigências formais estipuladas em lei. Ocorre que, a partir do momento que as empresas começaram a se utilizar da aplicação dessa teoria para reduzir a carga tributária de forma imoderada, foi despertado no CARF uma preocupação quanto a substância do negócio jurídico, isto é, sua finalidade. A partir de então o Conselho começou a exigir o elemento do propósito negocial.
Mas, afinal, o que é propósito negocial? É uma motivação econômica que justifique a realização da operação sem ser a própria economia tributária. No entanto, há de se destacar que a legislação tributária nacional não prevê o propósito negocial como requisito para o planejamento tributário ser considerado lícito. O que, de fato, existe é a norma antielisiva, qual seja, o parágrafo único do art. 166 do Código Tributário Nacional (CTN):
“Parágrafo Único: A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária."
O que se pode extrair dessa norma é que a finalidade do negócio jurídico não pode ser de ocultar ou disfarçar o fato gerador. Porém, não é mencionado que a operação deve possuir um propósito extrafiscal.
A norma que traria a necessidade de um propósito negocial era o artigo 14 da medida provisória 66/02, que dispunha:
Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
§ 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:
I - falta de propósito negocial; ou
II - abuso de forma.
§ 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.
§ 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.
Percebe-se que o referido dispositivo complementaria o art. 166 do CTN na medida em que igualaria a inexistência de propósito negocial à dissimulação. Ocorre que esse dispositivo foi rejeitado pelo Congresso Nacional ao converterem a medida provisória na lei 10.637/02.
Ora, a reprovação dessa norma evidencia que o ordenamento jurídico brasileiro não acolheu essa exigência como necessária para a validade da economia tributária, ou, por outras palavras, os negócios jurídicos praticados com a intenção de economia tributária não poderão ser desconsiderados por este único motivo, não apenas por falta de lei, mas também porque o dispositivo legal que previa tal tratamento foi rejeitado pelo Poder Legislativo.
Por isso, no Brasil, e principalmente nos julgamentos do CARF, a fiscalização se valia da norma antielisiva para desconsiderar estruturas jurídicas. Desse modo, a adoção da doutrina do propósito negocial era, na realidade, utilizada ‘por baixo dos panos’, empregando outras designações, como “fraude à lei” ou “abuso de direito”. Mas resta, por óbvio, que o julgador se referia à finalidade da operação, e, portanto, justamente à exigência do “propósito negocial”.
Em 4 de dezembro de 2012, o CARF proferiu acórdão1 entendendo novamente pela teoria liberal formalista, isto é, que “não existe o menor problema em a pessoa agir para reduzir a carga tributária” e que “não existe regra federal ou nacional que considere negócio jurídico inexistente ou sem efeito se o motivo de suas práticas foi[r] apenas economia tributária”.
Essa foi a primeira vez que o Conselho mencionou expressamente “propósito negocial” em suas decisões, e o fez para não aplica-lo, decidindo claramente que o “fato dos negócios jurídicos praticados visarem a economia tributária não os torna ilícitos ou inválidos”.
Apesar (i) de não haver qualquer exigência relacionada ao propósito negocial na legislação brasileira, (ii) da matéria ter sido rejeitada quando a MP 66 de 2002 foi convertida em lei, e (iii) de existirem decisões do Conselho que expressamente afastaram a aplicação da business purpose theory, grande parte dos Conselheiros passaram a exigir o elemento do propósito negocial em sua fiscalização.
Ao divergirem na análise dos casos que envolvem a aplicabilidade da teoria do propósito negocial, os julgadores do CARF colocam os contribuintes a mercê da dúvida sobre como organizar seus negócios financeiros, ficando rodeados de insegurança jurídica.
O que deixou grande esperança sobre a fiscalização do Conselho foi a decisão2 do CARF cujo acórdão foi publicado no dia 10 de setembro de 2018. Nela, o Conselheiro Daniel Ribeiro Silva, além de decidir pela inaplicabilidade de exigência do propósito negocial, como já havia feito anteriormente3, afirmou:
“É frequente utilização pelo Fisco da teoria da ausência de propósito negocial por meio do qual defende que a simples inexistência sob sua ótica outros motivado respara a operação que não o alcance do benefício fiscal, tem sido usada como elemento suficiente para invalidar os atos do contribuinte ou o benefício fiscal almejado.
Tal lógica ao meu ver se afasta da necessária objetividade da lei tributária, fundada no princípio da tipicidade cerrada, além de afetar a segurança jurídica vez que diversas regras e estruturas criadas pelo legislador brasileiro oferecem um benefício fiscal aos contribuintes como parte integrante de uma política econômica."
E, mais importante, quanto à oscilação da jurisprudência, afirmou que a “indefinição dos conceitos no ordenamento jurídico impede a formação de entendimento uniforme, tornando qualquer discussão acerca da motivação para operações societárias como ao menos parcialmente subjetivas, afastando-se do princípio da tipicidade cerrada que foi base de formação do direito tributário”.
Interessante mencionar que para o referido Conselheiro a economia tributária deveria ser vista como um propósito negocial, viabilizando, por si só, a operação societária, observe: "A ausência de propósito negocial, sob a ótica do fisco, não pode ser suficiente para desconsiderar as operações realizadas, até mesmo porque, a economia tributária pode ser considerada um propósito negocial.”
Nesse mesmo sentido, foram proferidos em 2018 mais três acórdãos4 mencionando expressamente que a teoria do propósito negocial não possui amparo no sistema jurídico brasileiro, e que os negócios motivados por economia fiscal não poderiam ser desconsiderados pela fiscalização se realizados por meios lícitos.
Ocorre que a esperança dos tributaristas não perdurou por muito tempo. Este ano a Conselheira Juliana Marteli Fais Feriato voltou a empregar a doutrina substantivista, decidindo5 que "não se faz suficiente a licitude dos atos realizados, tampouco a máxima argumentativa da liberdade empresarial de auto-organização, para legitimar as alternativas escolhidas em uma reestruturação societária, pois estas devem estar providas de causa econômica, de modo que o motivo da reorganização não seja único ou predominantemente de economizar tributos".
Conforme exposto, a teoria do propósito negocial nunca foi aderida formalmente ao ordenamento jurídico, tampouco sua adoção pela jurisprudência foi decidida uniforme e definitivamente. Nada obstante, apesar de existirem decisões favoráveis ao contribuinte, é inegável que atualmente a maior parte da fiscalização se utiliza da doutrina do propósito negocial para desconsiderar operações realizadas com fim de economizar tributos. Sendo assim, de fato, é mais seguro se resguardar e apresentar um motivo extrafiscal para realização das operações empresariais.
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1 Acórdão 1101-000.835.
2 Acórdão 1401-002.835.
3 Acórdão 1401-002.644.
4 Acórdão 1401-002.835, acórdão 1401-002.644 e acórdão: 1301-002.761.
5 Acórdão 2301005.933.
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*Camila Vertes Campos é advogada júnior do MZ Advogados. Recém-formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, cursando LL.M em Direito do Tributário e Contabilidade Tributária no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais - IBMEC. Experiência em Contencioso e Consultivo Tributário no Chediak Advogados, e societário no Ulhoa Canto.