Migalhas de Peso

Não incide ISS sobre sucumbência

Prestação de serviços corresponde ao esforço humano exercido em favor de terceiro, qualquer outra atividade que não corresponda a uma obrigação de fazer não poderá ser objeto de tributação pelo imposto sobre serviços.

10/10/2019

Não procede a pretensão de incidência do Imposto sobre Serviços – ISS sobre as denominadas verbas sucumbenciais.

Anote-se desde logo a existência de pelo menos duas consultas tributárias respondidas pelos Municípios de São Paulo e Recife, indicando a sujeição da sucumbência ao ISS e, portanto, a obrigatoriedade à emissão da nota fiscal de prestação de serviços em contrapartida dos valores recebidos a esse título.

No caso do Município de São Paulo trata-se da Solução de Consulta SF/DEJUG 23/17, onde expressamente consta que independentemente da “consulente argumentar que os honorários de sucumbência não seriam decorrência direta da relação contratual entre ela e seus clientes, certamente a consulente não teria direito ao recebimento desses honorários caso não houvesse sido a referida relação contratual estabelecida”. Em outras palavras, no entendimento do Fisco Municipal de São Paulo “os honorários de sucumbência são decorrentes da prestação do serviço para o qual a consulente foi contratada”.

A resposta à Consulta 07.83386.0.15/16 formalizada perante a Municipalidade do Recife e seu Conselho Administrativo Fiscal – CAF, entendeu que “em relação aos serviços advocatícios remunerados pelos honorários de sucumbência fixados pelo juiz, a Nota Fiscal de Serviços deve ser emitida em nome do cliente com quem o consulente firmou contrato de prestação de serviços, não importando se quem arcou financeiramente com o pagamento foi um terceiro, no caso, a parte sucumbente na ação”.

Conforme disposto pelo artigo 22 do Estatuto da Advocacia a “prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência”. Os honorários de sucumbência são aqueles imputados pelo Poder Judiciário à parte que vier a perder uma determinada ação judicial e, com isso, obrigar-se ao ressarcimento da parte vencedora no que refere às despesas incorridas com honorários de advogado e custas processuais na defesa exitosa de seus interesses.

Nesse caso, aplicável o disposto no artigo 85 do Código de Processo Civil – CPC, ou seja, a previsão de que a “sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”, devendo, de acordo com o §2º, ser “fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa”, observados como parâmetros objetivos situações tais como o grau de zelo do profissional, o local da prestação do serviço, a natureza e importância da demanda, assim como o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. 

Relevante registrar que o Estatuto da Ordem, tanto em relação aos honorários derivados de ação de arbitramento quanto às verbas sucumbenciais, previstos na correlata condenação, “pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, na forma estabelecida pelo artigo 23.2

Importa saber que ao repartir a competência tributária, a Constituição Federal reservou aos Municípios, por meio de seu artigo 156, III, o imposto sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.” Esses serviços, excepcionados expressamente pela Constituição de 1988, são os de transporte interestadual e intermunicipal, e que, portanto, se submetem ao ICMS no âmbito da competência tributária dos Estados.

De acordo com o item 17.14 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/03, norma geral do ISS, tem-se o serviço de “Advocacia” dentre aqueles que, de nos termos de seu artigo 1º, têm como fato gerador a prestação de serviços constantes da listagem e que, também, não se constituam como atividade preponderante do prestador.

Nesse caso, a referência derivada do mencionado item da Lista Anexa à legislação de regência diz respeito à advocacia e, portanto, aos honorários estritamente pactuados no contrato de prestação de serviços entre o cliente e o advogado, por ocasião da relação jurídica entre eles existente.

Assim, os honorários sucumbenciais não compõem a relação jurídica contratual estabelecida, para formalizar a contratação da prestação dos serviços de advocacia, não integrando, assim a relação jurídica cliente-advogado, leia-se: tomador e prestador dos serviços contratados, respectivamente.

O advogado não presta serviço ao terceiro sucumbente, pois não possui qualquer relação jurídica de natureza contratual com o mesmo. A relação entre a parte que sucumbiu e o advogado beneficiário da verba de sucumbência é uma decorrência direta da aplicação da legislação processual civil, sem vínculo ou manifestação de vontade.

Se por um lado o contrato estipulando honorários convencionais decorre da vontade exercida pelas partes que integram essa relação contratual, a verba honorária sucumbencial configura uma obrigação legal, disciplinada pelos já referidos artigos 23 do Estatuto do Advogado e 85 do CPC.

Com efeito, a relação entre advogado e cliente resulta invariavelmente no acertamento de honorários contratuais, convencionados na esfera da autonomia privada das partes da relação de confiança, enquanto que, no processo judicial, exsurge remuneração diversa e atinente aos honorários de sucumbência. Ambas as espécies de honorários, convencionais (ou fixados por arbitramento) e de sucumbência são cumulativos e pertencem ao advogado, como forma de remunerá-lo pelo seu serviço indispensável à administração da Justiça, consoante disposto pelo artigo 133 da Constituição Federal.

É dizer, não se confunde a verba honorária derivada do contrato de prestação de serviços e seu objeto delimitado com a remuneração advinda da condenação judicial, do processo judicial em si, conforme determinado objetivamente pela legislação processual civil vigente. Vale ressaltar que a sucumbência não integra o objeto da relação contratual, tendo esta previsão exclusivamente dos honorários convencionados entre cliente e advogado.

Nem há como saber sequer se haverá verba sucumbencial no momento da contratação dos serviços do advogado, pois disso depende um evento futuro e incerto que é justamente o êxito total ou parcial da demanda judicial objeto do contrato avençado entre o cliente e seu advogado. E se houver, repita-se, a sucumbência decorre da legislação processual civil aplicável e não do contrato celebrado entre cliente tomador e advogado prestador dos serviços vinculados.

Nos termos do artigo 156, II, da Constituição Federal, de onde se extrai o aspecto material do ISS tem-se o verbo e seu complemento prestar serviços, implicando em fazer (e não dar) alguma coisa em benefício de outrem, com habitualidade e finalidade lucrativa3, ou seja, o fato jurídico tributário do ISS se verifica quando consumada a prestação do serviço, envolvendo na via direta o esforço humano.4

Dizendo de outro modo, entende-se por prestar serviço o ato ou efeito de servir, no sentido de prestar trabalho ou atividade em proveito de terceiro, mediante remuneração. Nesse caso o ISS recai sobre a circulação de bem imaterial, denominado serviço, resultando em obrigação de fazer. A prestação de serviços corresponde a uma utilidade material ou imaterial pela aplicação do trabalho humano, configurando execução de obrigação de fazer e não de dar coisa.

A prestação de serviços corresponde ao esforço humano exercido em favor de terceiro, qualquer outra atividade que não corresponda a uma obrigação de fazer não poderá ser objeto de tributação pelo imposto sobre serviços5. Nas palavras de Marcelo Caron Baptista, o “critério material do ISS identifica-se, em uma primeira aproximação, com a ação voltada à realização de um serviço.” 6

Essa prestação de serviços, enquanto esforço e ou ação humana, necessariamente deve guardar referibilidade com um determinado valor a título de remuneração, um preço pelos serviços prestados em benefício de terceiro. Trata-se da natureza sinalagmática da prestação do serviço. De modo que a base de cálculo do ISS somente pode corresponder ao valor da prestação do serviço efetuado, ou seja, o preço do serviço.

Não é qualquer ingresso que resulta na incidência do ISS, mas a decorrente da prestação de serviços, atividade tributária. Assim, outras receitas, qualificadas como inorgânicas ou secundárias, cuja origem não seja a atividade tributada propriamente dita, originárias de atividades ditas marginais e que não representam fruto do serviço prestado, não são relevantes para fins de incidência do ISS. Isto porque, ressalte-se, configuram ingressos que não representam preço do serviço, nem, portanto, base de cálculo do tributo. Confira-se a respeito o sólido ensinamento de Eduardo Domingos Bottallo:

“Enfim, a base de cálculo do ISS não pode albergar todas as entradas de dinheiro nos cofres do prestador, mas, tão somente, as parcelas correspondentes ao efetivo preço dos serviços que executa. A matéria tributável do imposto em tela é, pois, a resultante da prestação de serviços (atividade-fim), com exclusão das demais entradas, ditas inorgânicas ou secundárias.”7

A sucumbência não integra o valor do preço do serviço, estipulado previamente no contrato por manifestação de vontade dos contratantes. Configura, pois, valor estranho a esta remuneração previamente pactuada e, portanto, à própria base de cálculo do ISS.8

Para tanto, deve-se levar em conta que o contrato de prestação de serviços advocatícios tem por característica essencial a sua bilateralidade e, como leciona Paulo de Barros Carvalho, “torna-se invariavelmente necessária a existência de duas pessoas diversas, na condição de prestador e tomador”, sendo “imprescindível que o contrato bilateral tenha conteúdo econômico, fixando-se preço em contraprestação à utilidade imaterial fornecida pelo prestador.” 9

Pressupõe-se uma relação jurídica contratual bilateral, de conteúdo econômico, em que o tomador e prestador enquanto partes estabelecem direitos e deveres recíprocos, de acordo com os requisitos e condições que o ordenamento jurídico impõe. Aqui novamente relevante a referência ao sinal presuntivo de riqueza para fins de incidência do ISS, qual seja: o preço estipulado no contrato, entre o cliente tomador e seu advogado prestador de serviço.

O preço da prestação do serviço jurídico em si, previamente definido no respectivo objeto contratual, é o único dado que expressa o conteúdo patrimonial do comportamento tributável. Assim, unicamente a prestação de serviços remunerada de serviços, tendo por referencial o valor correspondente ao esforço do prestador, corresponde ao aspecto material da hipótese normativa.10

Nem se diga que a referência ao vocábulo “Advocacia” pelo item 17.14 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/03 é suficiente para concluir, de modo rasteiro, que a sucumbência se encontra implícita no mesmo. Nesse caso, além de se contrariar todo o rol de argumentos extraídos do Direito Privado em relação à bilateralidade e referibilidade do contrato de prestação de serviços advocatícios visando fins estritamente arrecadatórios, e por conseguinte o artigo 110 do Código Tributário Nacional – CTN, estar-se-á pretendendo aplicar indevidamente interpretação extensiva no âmbito do Direito Tributário.

O item “Advocacia” da Lista Anexa à Lei Complementar 116/03 serve para especificar ou delimitar a extensão do significado da locução “serviços de qualquer natureza”, ou seja, serviços de natureza advocatícia e que, portanto, decorrem estritamente da relação contratual, bilateral, existente entre o advogado e seu cliente.

Em última análise, a verba sucumbencial não está inserida nesse contexto, pois não equivale a serviço, e, tampouco, está indicada de modo expresso na Lista Anexa da referida Lei Complementar. Até porque, se assim fosse, a previsão da Lista deveria ser “Advocacia e verba sucumbencial dela decorrente”, o que não tem, frente ao aspecto material e à base de cálculo do ISS qualquer sentido diante das considerações acima consignadas.

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1 Confira-se: LEMOS, Eduardo. “Advogados devem emitir notas fiscais ao receberem honorários de sucumbência?” In: Migalhas, 22 de fevereiro de 2019. Acesso em 15 de agosto de 2019: Clique aqui.

2 “Os honorários sucumbenciais são aqueles fixados pelo juiz na sentença, de conformidade com os critérios estabelecidos pelo CPC 85, que devem ser pagos pelo perdedor da demanda. Pertencem ao advogado da parte vencedora (EOAB 23).” (NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed., São Paulo: 2016, p. 471).

3 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2003, p. 35

4 ÁVILA, Humberto. “O Imposto sobre Serviços e a Lei Complementar nº 116/2003”. In: O ISS e a LC 116. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. São Paulo: Dialética, 2003, p. 169.

5 Idem, p. 171.

6 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 253.

7 BOTTALLO, Eduardo Domingos. “Notas sobre o ISS e a Lei Complementar nº 116/2003”.  In: O ISS e a LC 116. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. São Paulo: Dialética, 2003, p. 83.

8 “Ora, no caso de honorários de sucumbência, pagos pela parte vencida na demanda judicial, não se vislumbra nenhum vínculo jurídico entre o advogado, beneficiário dessa verba sucumbencial, e a parte vencida na demanda judicial. Simplesmente, não existe a efetiva prestação de serviço pelo advogado à parte que sucumbiu na ação judicial, e que por essa razão tornou-se devedora da verba honorária de sucumbência.” (HARADA, Kiyoshi. ISS e honorários da sucumbência. In: Clique aqui. Acesso em 15 de agosto de 2019)

9 CARVALHO, Paulo de Barros. “Imposto sobre serviços de qualquer natureza. Delimitação dos serviços tributáveis pelos municípios”. In: Derivação e Positivação no direito tributário. Vol. 2, São Paulo: Noeses, 2013, p. 315.

10 BAPTISTA, Marcelo Caron. Ob. cit., p. 573.

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*Fabio Artigas Grillo é advogado, doutor em Direito do Estado pela UFPR, presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/PR e membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB Conselho Federal.

 

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