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Os limites implícitos do procedimento de produção antecipada de prova no processo do trabalho

A produção antecipada assegura um direito autônomo à prova, que, organicamente, convive com outras liberdades públicas, em erupção de limites imanentes a seu exercício.

7/10/2019

Por definição, a produção antecipada da prova desloca o momento natural da atividade probatória, que, em regra, é informada pelo contraditório, no próprio território processual em que a tutela de direito material é deduzida (CR/88, art.5º, LV). Nessa conformidade, a produção antecipada assegura um direito autônomo à prova, que, organicamente, convive com outras liberdades públicas, em erupção de limites imanentes a seu exercício, “num complexo jogo concertado de complementações e restrições recíprocas” (MENDES, Gilmar Ferreira; INOCENCIO, Martires Coelho, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, p.28). 

Nesse painel, é útil distinguir entre antecipação de conhecimento de prova existente e realização antecipada de prova inexistente. A distinção é, dogmaticamente, relevante uma vez que, no procedimento de antecipação de prova, invariavelmente, o contraditório ideal e efetivo é diferido à ambiência da ação principal, onde as consequências da omissão ou da apresentação serão determinadas, à miséria de defesa e recurso contra o acolhimento da produção, à luz do roteiro legal (CPC, art.382, par.2º e 4º).

No caso de prova existente ou pré-constituída, o contraditório retardatário não verga prejuízo ao detentor da prova pronta, uma vez que o próprio domínio desvela, quando pouco, a participação na produção dela, servindo o procedimento como mero compartilhamento da informação de interesse bilateral, em sintonia com o dever de cooperação (CPC, art.6º), vincando a plena harmonia entre as garantias.

Todavia, no caso de prova incubada, é indisputado que a produção sumária asfixia o contraditório imediato e na versão ótima, impondo prejuízo contra aquele em cujo desfavor o teor dela pode ser usado, razão por que, nesse cenário, o sacrifício da influência de uma parte sobre o produto da atividade probatória deve ser agudamente justificado pela necessidade preferencial de satisfação do outro princípio colidente, correspondente ao direito autônomo à prova (CPC, art.369), pois “não há legitimidade em restringir o direito a defesa com base no direito à duração razoável do processo, ou seja, para se ter uma tutela jurisdicional tempestiva. É necessário que a situação de direito substancial legitime a restrição” (ARENHART, Sergio Cruz. MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Manual do Processo Civil. Revista dos Tribunais. 4 ed. p.149).

Nessa toada, na hipótese do inciso I do art.381 do CPC, que articula com o “fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”, o risco de frustração plenária da colheita da prova em momento futuro respalda o direito à sua produção imediata, em desprestígio contingencial ao contraditório instantâneo, cuja satisfação empeceria, irremediavelmente, a garantia rival, o que define o conflito em favor do interesse legítimo sob maior perigo de perecimento, em concordância prática dos princípios em jogo.

Entrementes, nos comandos dos incisos II e III, enfeixados na construção de uma alternativa conciliatória ou dissuasória da judicialização do conflito hipotético, à carestia de assédio contra a viabilidade da parturição de prova ulterior no feito principal, a capacidade jurídica de resistência do contraditório não cede ao direito à prova imediata, pois essa precedência em prol da prematuridade probatória é reprovada pelo teste da proporcionalidade (CPC, art.8º), tanto pela auditoria da submáxima da necessidade, presentes meios processuais menos agressivos ao contraditório para obtenção do mesmo resultado qualitativo, conducente à ciência prévia dos riscos da demanda condenatória, quanto pelo crivo do sopesamento (proporcionalidade em sentido estrito), pois o peso relativo do contraditório, ausente ameaça à formação da prova na cronologia típica, não merece intervenção deflacionária para promoção do direito à prova sumária, já que, na colisão, a fundamentabilidade da ampla defesa ostenta maior grau de importância que o interesse pela calibração do sismógrafo da sucumbência, porquanto inexistente direito fundamental ao cálculo do risco da demanda, mesmo em uma concepção aberta e material do catálogo, “para evitar uma vulgarização da categoria” (SARLET, Ingo Wolgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado. 13 ed, p.144).

De se ver, ainda, que o procedimento de obtenção prematura da prova é ambivalente, pois não é asilo dogmático monopolista de pretensões mapeadas na esfera do autor hipotético, de molde que o potencial réu também pode lançar mão do modelo, ao argumento eclético de interesse na autocomposição ou na prevenção de ação, o que flagra a prognose poliédrica desse agente patogênico da paridade de armas, que, no campo processual, constitui garantia simétrica às partes, independentemente da posição jurídica material.

Por esse mirante, a prodigalização do procedimento abonaria trunfo estratégico arredio ao padrão participativo do devido processo legal, na medida em que a realização antecipada linear de prova em horizonte privaria a parte contrária do exercício sincrônico da garantia constitucional, na dimensão mais madura, sem fundamentação idônea a esse grau de interferência, caucionando a parte promovente da medida de uma vantagem de largada, no virtual processo principal, alérgica à isonomia, por cuja consubstanciação o julgador deve zelar (CPC, art.7º). De resto, é dever do julgador considerar as consequências práticas de sua decisão (LIND, art.20).

Em socorro ao litigante que pretende mitigar os custos da sucumbência, constituindo, previamente, prova inédita, comparece a via intermediária da ação declaratória, cuja serventia é conservada mesmo quando há lesão de direito (CPC, art.20), em ordem a conciliar o interesse na tomografia do seu direito com o contraditório, em arranjo arquimediano das posições em disputa. 

Encimado nessas premissas, a iniciativa unilateral de prova oral e pericial antecipada só têm fôlego no continente factual da cautelaridade ferida no inciso I do art.381 do CPC, para evitar a extinção do contexto moribundo, em linha autorizativa da obtenção antecipada de prova pós-constitutiva. Por decantação, as demais hipóteses enunciadas no art.381 do CPC versam sobre a antecipação do conhecimento de prova documental, cuja existência, por excelência, precede ao processo, o que convive, harmonicamente, com a garantia do contraditório, porquanto, a rigor, materializa a isonomia, ao conferir a todas as partes o acesso aos dados pré-constituídos, em fissura do monopólio informacional. 

Em peroração, ao passo que a antecipação linear de prova documental potencializa a isonomia, a aplicação de igual figurino à modalidade oral e pericial espicaça a paridade, a ratificar a necessidade da fragmentação dos propósitos subjacentes ao rol do art.381 do CPC, como trevo conciliatório dos princípios concorrentes.

Noutra aldeia, é evidente que, se as partes da relação de direito material, conjuntamente, requererem a produção da prova pericial ou testemunhal, há a mutação do quadro jurídico, presente o exercício da autonomia de vontade aderente à restrição do contraditório amplo, o que se acomoda no par.3º do art.382 do CPC, ao assentar que “interessados poderão requerer a produção de qualquer prova no mesmo procedimento”.

Em aterrissagem no processo do trabalho, a exigência de liquidez na formulação do pedido de cunho pecuniário, desde o advento da lei 13.467/17, está afinada com o regime de sucumbência, pois a atribuição de valor individual a cada pretensão permite a fixação do tamanho de eventual derrota, correspondente à base de cálculo dos honorários. Bem por isso o prévio conhecimento de documentos, tais como recibos de pagamento, relatório de vendas, cartões de ponto, diários de bordo, regulamentos, planos de cargos e salários, reveste-se de subida funcionalidade à parte reclamante, para municiar a quantificação da pretensão e evitar o pedido genérico, cuja autorização só é lícita “quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu” (CPC, art.324, III), razão por que é insuperável a prova de prévia recusa patronal à exibição de dados necessários à contabilização do pedido para (i) liberação do dever de liquidação ou para (ii) pavimentar a mera estimativa unilateral (CPC, art.524, par.4º), erguendo-se antecipação de prova como meio adequado a esse fim.

Por outra vereda, quanto à prova pericial, a produção antecipada exótica à cautelaridade hiberna a discussão das premissas de fato dirigentes do trabalho do perito, com maiúsculo risco de conclusão enviesada, cuja temeridade deve ser, tendencialmente, evitada, já que ativo remédio de efeito colateral menor. Lindeiro com isso, é de bom aviso assinalar que o custo da perícia será, necessariamente, imputado ao autor da medida, sem prejuízo do ressarcimento na ação principal, se houver, pois, no procedimento, como não há sucumbência, não cabe sequer cogitar de transferência da despesa do beneficiário de justiça gratuita à União, enquanto, na ação declaratória, em que haverá juízo de mérito quanto à pretensão objeto da prova, haverá a canalização do valor à parte sucumbente, com possibilidade, se atendido o figurino legal, de custeio pelo erário. Sob essa angulação, a ação declaratória porta maior idoneidade para prévio conhecimento de fato imperecível dependente de prova pericial.

Em derredor da prova testemunhal, por símile imperativo, a falta de defesa material conduz a um voo cego, à míngua da morfologia da controvérsia, em agudo deságio do contraditório, oferecendo ao promovente da medida as rédeas do rumo da instrução, pois, a rigor, só ela conhece o alvo panorâmico da oitiva, de jeito que tal atipicidade só se justifica ao confronto com o perigo real de interdição fática do direito à instrução efetiva, em aversão ao uso trivial do procedimento. Outrossim, a ação declaratória alteia-se como instrumento de maior reverência à autoridade do devido processo legal.

Com apoio nesses fundamentos, no processo do trabalho, apenas a prova antecipada de natureza documental independe das circunstâncias de cautelaridade, as quais permanecem de pé quanto à prova testemunhal e pericial, tendo em mira os limites imanentes ao direito autônomo de prova, cujo núcleo essencial não é contaminado por essa restrição implícita, presentes outros meios mais receptivos ao contraditório autêntico para obtenção de resultado equivalente.

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*Victor Luiz Berto Salomé Dutra da Silva é juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região.

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