Migalhas de Peso

Reserva do possível no direito à saúde: mais do que um limite, uma obrigação

Os custos dos cuidados com a saúde aumentam vertiginosamente, sem que os recursos disponíveis para os sistemas públicos e privados cresçam na mesma proporção.

2/10/2019

Não há como tratar do direito à saúde sem correlacioná-lo com as condições efetivas que o Estado tem de implementá-lo e assegurá-lo. Infelizmente, a proteção absoluta e incondicional à saúde de todos os cidadãos mediante a viabilização de todas as tecnologias e tratamentos disponíveis é algo inalcançável para qualquer nação na atualidade. A razão é simples: os custos dos cuidados com a saúde aumentam vertiginosamente, sem que os recursos disponíveis para os sistemas públicos e privados cresçam na mesma proporção. Medicamentos caros e inacessíveis à quase totalidade dos usuários, longevidade em ascensão, envelhecimento da população, falta de transparência e de controle dos lucros da indústria farmacêutica e dos contratos realizados com o Poder Público, dentre outros fatores, tornam a concretização do direito à saúde um desafio.

A situação se agrava em relação a países em processo de desenvolvimento mais lento e com economia menos avançada, como é o caso do Brasil. Em relação a eles, a escassez ainda maior de recursos é um fator complicador que tem um grau de relevância não inferior aos altos custos das tecnologias disponíveis para a implementação da política pública de saúde.

Neste contexto, a discussão deixa de se centrar na obrigação do Estado de promover e assegurar o direito à saúde, que é praticamente incontroversa. A questão passa a ser em que medida esse direito deve ser implementado. Sempre que este debate vem à tona, os custos financeiros indissociáveis da concretização dos direitos sociais e a realidade econômica do Estado trazem consigo o argumento da reserva do possível, que inevitavelmente é levantado pelo Poder Público nos processos judiciais que versam sobre o direito à saúde, especialmente o recebimento de medicamentos ou tratamentos não incorporados ao SUS.

Invariavelmente, a reserva do possível é trazida como uma limitação fática inafastável da concretização do direito à saúde. Em uma frase, diz-se que não se pode exigir que o Estado faça o impossível diante dos recursos que tem à sua disposição. Raramente, contudo, esta argumentação é acompanhada de dados concretos que demonstrem objetivamente que a política pública de saúde atualmente existente já é a melhor possível em face das possibilidades do Poder Público. Quando se parte para a efetiva verificação destes dados, percebe-se que, na prática, a impossibilidade do incremento no nível de proteção à saúde dos cidadãos brasileiros não é tão evidente como alegada.

De acordo com o Relatório do Banco Mundial sobre o gasto público em saúde no Brasil, de 20171, "relativo ao seu PIB, o Brasil gasta em saúde tanto quanto a média entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e mais do que os seus parceiros, mas a maior parte de tais gastos ocorre fora do setor público". Com efeito, o Brasil é um dos poucos países da OCDE em que os gastos privados com saúde superam os públicos, ao passo que, no ano de 2015, cerca de 75% da população dependia exclusivamente do SUS2. Segundo estudo do Tesouro Nacional3, este contexto "certamente está relacionado com os problemas de financiamento, gestão e eficiência do sistema público brasileiro".

O já referido Relatório do Banco Mundial traz também dados da OMS, relativos ao ano de 2014, que apontam que o Brasil investiu em saúde pública 3,8% de seu PIB, enquanto Argentina e Chile haviam aplicado 4,9%, e o Uruguai 6,4%.

Quando promulgada a Constituição de 1988, o art. 55 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu que, até que fosse aprovada a próxima lei de diretrizes orçamentárias, 30% do orçamento da seguridade social deveria ser direcionado à saúde. Este percentual corresponderia a aproximadamente R$ 217 bilhões em 2018. O fato é que a lei 13.587/18 previu o orçamento da saúde, naquele ano, em R$ 119 bilhões.

A EC 20/90 instituiu os pisos de recursos que deveriam ser destinados ao financiamento do SUS, que estavam vinculados às receitas de estados e municípios, mas não da União, que tinha o seu cálculo elaborado por metodologia distinta. A EC 86/15 modificou essa sistemática, prevendo também pisos federais progressivos e vinculados à receita da União, até que se atingisse o patamar de 15%. A sua entrada em vigor, no entanto, acabou por reduzir o valor mínimo a ser destinado ao SUS pelo governo federal, tendo a sua eficácia suspensa, neste ponto, pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 5.595). Finalmente, a EC 95/16 congelou, por vinte anos, o orçamento do Sistema Único de Saúde, que já é notoriamente subfinanciado.

Historicamente (ao menos desde 2010), os gastos públicos federais com a saúde somente estiveram razoavelmente acima do mínimo durante o curto período em que a EC 86/15 - que estabeleceu novos pisos para a União, vinculados, em percentuais progressivos, à sua receita - produziu seus efeitos, reduzindo o piso então vigente, até que sua eficácia, neste ponto, fosse suspensa pelo Supremo Tribunal Federal na referida ADIn 5.5953. Isso deixa claro que o piso de investimento na saúde, na prática, tem sido o teto. Daí já se pode perceber o perigo de se suprimir a existência de um limite mínimo e obrigatório para o financiamento da saúde, como às vezes se cogita no meio político e no governo.

Não se pode deixar de comentar, também, as infindáveis prorrogações da Desvinculação de Receitas da União (DRU), que atualmente permite que 30% (trinta por cento) da arrecadação das contribuições para a Seguridade Social, na qual o SUS está incluído, sejam destinados a outras finalidades.

Se o SUS é sabidamente subfinanciado, seria necessária, no mínimo, a plena otimização e gerenciamento dos recursos hoje disponíveis. Não é essa a situação, entretanto.

Conforme o relatório do TCU no processo TC 023.961/16-3, que tratou da Gestão em Saúde no Brasil, 46% dos municípios possuem capacidade de gestão em estágio inicial, 51% em estágio intermediário e apenas 3% em estágio aprimorado. Em relação aos Estados, 52% estão no estágio inicial, 41% no estágio intermediário e somente 7% possuem capacidade de gestão aprimorada.

O TCU apurou ainda, no Acórdão 693/2004, que 87% dos hospitais brasileiros possuíam deficiências em sistemas de informática.

O mesmo Tribunal, desta vez na TC 032.624/13-1, constatou que, entre os anos de 2008 e 2013, R$ 20,4 bilhões estavam previstos no orçamento da Saúde, mas não foram gastos.

Dados disponibilizados pelo Ministério da Saúdeapontam que no ano de 2017, quase três bilhões de reais estavam previstos como despesas orçamentárias, mas não foram empenhados. Em 2018, mais de um bilhão de reais, também previstos como despesas, não foram objeto de empenho.

De acordo com o Banco Mundial, em relatório elaborado no ano de 20171, somente com a otimização do orçamento já disponível, o Brasil poderia ter prestado o mesmo nível de serviços de saúde pública usando 34% menos recursos. O relatório informa que "se o Brasil equiparasse a eficiência de todos os municípios aos mais eficientes, o país poderia economizar aproximadamente R$ 22 bilhões, ou 0,3% do PIB, no seu Sistema Único de Saúde (SUS) sem nenhum prejuízo ao nível dos serviços prestados, nem aos resultados de saúde"; bem como que "em nível nacional, os serviços ambulatoriais e hospitalares poderiam crescer em 140% e 79%, respectivamente, por meio da maximização da eficiência". Diversos problemas relacionados à gestão são apontados, tais como a excessiva descentralização na aquisição de medicamentos e a falta de integração dos serviços diagnósticos, especializados e hospitalares.

Em síntese, o Estado brasileiro gasta pouco (insuficiência) e mal (ineficiência) com a política pública de saúde.

Neste cenário, é deveras difícil sustentar objetivamente o argumento da reserva do possível como impedimento para toda e qualquer intervenção judicial relacionada à proteção do direito à saúde, seja ele considerado em sua vertente individual ou coletiva. Isso não significa, absolutamente, que o Poder Judiciário deva assumir o comando da delimitação da política pública de saúde. Pelo contrário, em um contexto de tantas dificuldades, a interferência sem critérios rígidos e restritos do Judiciário na gestão do SUS agrava ainda mais essa situação.

A implementação do adequado financiamento e de uma ótima gestão do SUS são atribuições governamentais, para as quais o Poder Judiciário não tem competência nem qualificação técnica. Ainda assim, e considerando, por outro lado, que cabe aos órgãos da Justiça assegurar a concretização do direito à saúde em um patamar mínimo indispensável à preservação da dignidade humana, a legitimidade da administração em questionar intervenções jurisdicionais pontuais na política pública de saúde pressupõe que ela cumpra satisfatoriamente com seu dever, que faça a sua parte bem feita.

Se, por um lado, não se pode exigir do gestor que faça mais do que o possível, deve-se, por outro, dele exigir que faça todo o possível, sobretudo quando se trata da implementação de um direito social fundamental. O "possível", portanto, não pode ser entendido apenas como limite, mas também como obrigação do Poder Público.

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1  Clique aqui, acessado em 24.09.2019

2  Clique aqui, acessado em 24.09.2019

3 Aspectos Fiscais da Saúde Pública no Brasil, disponível em: clique aqui, acessado em 24.09.2019

4  Clique aqui

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*Bruno Henrique Silva Santos é juiz da 3ª Vara Federal de Londrina e coordenador do Comitê Executivo de Saúde de Londrina/PR

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