As informações de que a prisão preventiva é utilizada como meio de coagir acusado a aderir a acordo de delação premiada ganha novo e peculiar enredo, segundo as informações publicadas pelo site Intercept em 27/9/19, o Ministério Público se valia de provas ilícitas para fundamentar as prisões.
A cada dia se mostra mais comprovada a tese desde muito sustentada, de que as prisões preventivas decretas no âmbito da força tarefa da operação Lava Jato, serviam na verdade o objetivo de coagir acusados a apresentarem versões fáticas de acordo com o anseio da acusação.
Com esta percepção iniciei o caminho de pesquisa sobre os efeitos das deleções nesta condição de coagido preso, e seus reflexos jurídicos na vida dos delatados e delatores.
O Apóstolo Paulo em sua carta aos Coríntios, nos diz que ainda que distribuíssemos todos os nossos bens para sustento dos pobres, e ainda que entregássemos o nosso corpo para ser queimado, e não tivéssemos amor, nada disso nos aproveitaria.
Por mais de dois mil anos essa mensagem é lida e relida a todos, e não ouvimos qualquer discordância, porque obviamente sentimos naturalmente que este pensamento reflete uma verdade irrefutável, indigna de contestação e imprópria ao debate, por expor uma verdade inquestionável, sendo impossível apartar o amor do sentimento cristão. Entendo com a reflexão aqui tratada, que certos aspectos ou condições estarão sempre ratificadas por suas origens, pois como não se espera do cristão agir e viver apartado do amor, não se pode esperar que leis criadas sob o manto de constituições democráticas não vigorem sob o sentimento de garantia individual que se sobrepõem ao interesse estatal.
Não existe qualquer discordância, de que o estado natural humano é a liberdade, nem nos estados ditatoriais, tampouco no mundo democrático, onde se prega que a liberdade é garantia de todos, e que aquele que se encontra preso está alienado ao estado natural e cívico social, apresentando-se de forma artificial, tutelado por aquele que lhe retira seu bem mais precioso.
Não acredito que exista divergência em qualquer meio acadêmico ou social, ou qualquer um que sustente, que aquele que se encontra preso está em situação de realizar contratos com seu algoz em condição de igualdade, porque existe uma verdade irrefutável nesta questão, indigna de contestação e imprópria ao debate, sendo impossível apartar a livre vontade ou voluntariedade do sentimento de liberdade, sendo apenas possível conceber tais posturas, de afirmação de voluntariedade sem liberdade, por imposição estatal, alheia a qualquer relação natural humana ou cívica democrática, quando o estado se desprende do ser que guarda, abandonando a vocação de guardião de direitos e abraçando a postura de inquisidor.
Partindo destas reflexões, sendo a norma jurídica a materialização de um pensamento levada ao status de lei pela aprovação do Legislador, poderíamos afirmar que qualquer desejo do Parlamento poderia em tese vincular a sociedade a uma obrigação, deixando de importar sua legitimidade, seu valor quanto obrigação aplicável ao ser humano, detentor de direitos que ultrapassam a força da lei escrita, portanto, quando nós lançamos a discussão quanto a possibilidade da realização de acordos de delação, prevista na lei 12.850/13 com acusados presos em nosso sistema prisional que se encontra em estado inconstitucional, pois violador de direitos básicos, devemos fazer séria reflexão a qual tipo de aplicação de justiça queremos em nossa sociedade. A questão aqui inicialmente tratada, nos remete a crítica áspera apresentada por Munõz Conde em sua análise sobre a obra e vida de Mezger, enquanto o renomado penalista atuava em benefício do nacional socialismo, deixando para história diversos trabalhos de relevo acadêmico e a elaboração de reflexivos e impactantes textos legais, como a lei sobre o tratamento de estranhos a comunidade.1
Portanto, importa a reflexão acerca do texto legal, para que façamos a correta análise da lei de delação, existe de imediato a necessidade de avaliar se a norma jurídica obedece a preceitos já incorporados em nossa sociedade e presentes em nossa Constituição - longe de discutirmos o caráter constitucional da norma jurídica em questão o que não é aqui a intenção – devemos mediatamente, avaliar se a norma se coaduna com princípios jusnaturais, como o da dignidade da pessoa humana por exemplo.
O próximo passo no sentido de avaliarmos a legitimidade da lei em questão, seria a indagação quanto a seus efeitos práticos, o que não afastaria a necessidade de valorar a norma em questão, expondo-a a princípios éticos e morais, mais também, e evidente, observar que seus efeitos práticos no combate a criminalidade, nos chama a atenção positivamente, já que é clara a sua utilização para desvendar tramas sofisticadas que há muito se realizavam sob os auspícios do poder, portanto, diante destas indagações, de início devemos nos perguntar se deveria a sociedade aceitar uma norma que possa contrariar questões relacionadas a moral, a ética e até mesmo a direitos fundamentais, em defesa da eficácia administrativa, e quais finalmente seriam os efeitos desta aceitação para todo meio social como imperativo categórico.
A questão que mais chama a atenção na abordagem da lei em questão, é a relativa a possibilidade de realizar-se acordos de delação com acusados presos preventivamente. É certo que a lei traz em seu bojo a necessidade de observar-se a voluntariedade quando da realização dos acordos – na contramão do que se extrai da realidade dos casos de acordo com acusados presos que contraria a intenção do texto legal - nos faz pensar que a menção a voluntariedade é apenas uma formalidade, que ao interesse da acusação poderá ser facilmente obstado, visto que não existe qualquer acompanhamento judicial na fase que antecede a apresentação do acordo ao juízo homologatório. O juiz frente aos acordos de delação exerce apenas um juízo meramente formal de admissibilidade.
Do parecer do Ministério Público Federal para o HABEAS CORPUS 5029050-46.2014.404.0000, extrai-se indagação preliminar para propor o debate: “o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos. ” (Grifo nosso), identificada esta prática como medida implementada sistematicamente pelo Estado, passamos a observar efetivamente a utilização da prisão preventiva como meio de obrigar o acusado a firmar acordos de delação.
A questão de realizar-se acordos de dentro de uma prisão, de início nos chama a atenção, já que certamente aquele que adere ao acordo nesta condição não se encontra em posição naturalmente confortável, sendo improvável encontrar um ser humano que deseje continuar preso, é possível afirmar que o homem busca por todas as formas permanecer em liberdade. A condição de prisão já por si só é fato motivador de busca da liberdade, pois o estado natural é a vida livre.
Reale, citando Frank, nos auxilia a refletir acerca destas colocações, pois para o autor citado a normal motivação obriga o agente a conduzir-se de conformidade com o ordenamento; uma anormal motivação, causada por circunstâncias anormais, concomitantes ao comportamento, tornam-no irreprovável.2
Goldschmidt, desenvolvendo o pensamento de Frank, estabelece uma dicotomia entre norma de direito e normal de dever, sustentando que a motivação contrária a norma de dever não seria reprovável quando o agente estiver defendendo a sua conservação, ou seja, imbuído do instinto de conservação é ineficaz a ação motivadora da norma de dever, não sendo assim reprovável a conduta que contraria a norma de dever nestas circunstâncias.3
O Estado por meio da conduta adotada pelo Ministério Público, teria incorporado como política criminal a permissão e estimulo da coação a acusado preso, para que firme acordo de delação, utilizando abertamente o instituto da prisão preventiva com a finalidade de obter informações por meio de coação moral irresistível, sendo que estas questões já são objeto de indagação de diversos autores, cito, Caio Victor Castilho Maia de Almeida4, Vladimir Aras,5 dentre outros, que sensíveis ao tema, já permearam com sua visão parte do problema a ser tratado, mais que nesse escrito atreve-se a dar um passo além em sentido e distância, analisando o desvirtuamento de institutos jurídicos que estariam sendo utilizados para coagir o acusado preso com interesse de obter informações, e comprovada a coação moral irresistível, passaríamos a avaliar a excludente de culpabilidade ao delator preso, que pressionado a entregar informações, cometendo crimes, estaria isento de pena, pela flagrante clausula extrapenal de inexigibilidade de conduta diversa, pois segundo meu entender não se pode exigir do delator que venha a agir licita e moralmente diante de uma prisão injusta.
O acusado preso preventivamente para o objetivo de se extrair informações, no passo das informações que recebemos sobre os acordos de delação, passou a ser visto como utilidade para o Estado, como bem já coloca Rodrigues6. Quando analisamos a utilização da prisão preventiva desvirtuada de sua utilidade legal de resguardar a sociedade, o processo e as provas, passando a ser utilizada como meio para fragilizar o acusado e tê-lo como reserva probatória, colocado em depósitos humanos para o fim de servir ao acusador, passamos a compreender o porquê entenderíamos não ser reprovável o cometimento de um crime para que se possa sair desta situação.
O Estado, na ótica das alongadas prisões preventivas com real fim de obter a prova por meio da coação, utiliza o cidadão como mero meio finalístico probatório, afastando do acusado suas características humanas, para utiliza-lo como objeto útil ao processo. Adota-se a prática utilitarista anglo-saxã que visa a resolução imediata de conflitos, é assim útil o delator como reserva probatória ao Estado.
O processo nesse caso, deixa de ser procedimento que resguarda a dignidade da pessoa humana, para se transformar em procedimento inquisitorial, onde apenas a confissão do pecado é redentora, afastando-se de suas características de garantia e limitação do poder do Estado, passa a ser meio de expiação, de punição antecipada, para o fim de retirar do acusado seus males feitos e com isso fazer prevalecer a força estatal.
O acusado preso se torna experimento, onde lhe é testada a resistência, onde são avaliadas as suas características, observado e discutido o seu valor e anotada a sua pertinência para cada momento da persecução penal, onde pode ser valioso em um momento e desnecessário em outro.
Ao acusado é dado um valor não humano, um preço utilitário, vinculado ao seu suposto grau hierárquico, aos seus imagináveis conhecimentos da estrutura da organização que se crê ter participado, e até mesmo quanto a sua notoriedade social, pois quanto mais conhecido e conhecedor maior valor teria para os objetivos do processo que se inicia, que pauta-se na publicidade massiva e seletiva de informações, julgando-se imediatamente o terceiro acusado com esteio nas imputações feitas pelo delator, muitas vezes antes mesmo de serem homologadas, inicia-se com isso um processo às avessas onde já se pune antes mesmo de se iniciar a apuração de qualquer fato imputado, assim o delator tem grande valor neste processo, pois teria o império absoluto da acusação e sua acusação passaria de imediato a ser constituída de caráter final, imutável, seria a antecipação de parte da pena antes de iniciada a primeira instância.
Portanto, quando passamos a perceber o acusado preso pela utilidade que pode ter ao Estado, de imediato entenderemos a lógica utilizada pelo Estado acusador, que busca extrair o melhor potencial do acusado como objeto útil a persecução criminal, que alcança melhores resultados ao ser utilizado, quando desenvolve todas as suas potencialidades, e estas potencialidades são aperfeiçoadas segundo o próprio Ministério Público em seu parecer , com o tempo em que passa o delator na prisão antes de entregar-se ao acusador, o tempo no cárcere torna o delator flexível, maleável a aderir a teses prontas, facilmente condutível, é barro bem amassado para a criação de uma nova obra que surgirá pelas mãos da acusação.
Assim, não existe vinculação por parte do Estado acusador a obediência de princípios como a presunção da inocência, devido processo legal e dignidade da pessoa humana, porque o objeto da colaboração não é conhecido e valorado por sua humanidade, mas sim, por sua utilidade.
Neste contexto, o instituto da prisão preventiva, modalidade de coação legal praticada pelo Estado em detrimento da liberdade do cidadão que possui a natureza de prisão cautelar, portanto é coação provisória instituída por lei e que apenas deve durar pelo período que permanecer evidente o perigo, nunca ultrapassando a existência do mesmo,7 passou a ser utilizada como meio de coação a acusados presos, para que estes venham a aderir a acordos de delação, desvirtuando a utilização do instituto da prisão preventiva, que passa a ser utilizado como instrumento de tortura moral visando a obtenção de informações. A ausência de limitação de tempo para as prisões preventivas em nossa legislação colabora com esta situação, da mesma forma que os requisitos extremamente subjetivos elencados no art. 312 do CPP, possibilitam ao magistrado decretar a prisão preventiva em praticamente todos os casos de investigação criminal, porque em tese, qualquer pessoa pode fugir ou conversar com uma testemunha, portanto, pelas regras completamente abertas existentes, todos poderiam ser mantidos presos preventivamente. Não se ignora a jurisprudência dos Tribunais que exigem motivação idônea e fatos concretos para a decretação das prisões preventivas, da mesma forma, não podemos olvidar que o reparo de decisões judiciais demanda tempo, o que impõem ao acusado preso indevidamente uma nefasta condição de expectativa e repleta de incerteza.
A inexigibilidade de conduta diversa caracteriza-se quando age o autor de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois, naquela circunstância fática, dentro do que revela a experiência humana, não lhe era exigível um comportamento conforme o ordenamento jurídico, como preceitua o art. 22 do CP.
Também o direito civil prevê a nulidade do contrato realizado em estado de coação, como nos ensina Welzel, a antijuridicidade é unitária, e todas as matérias de proibição, reguladas pelos diversos setores do direito, são antijurídicas, no caso de sua realização, para todo ordenamento jurídico8.
A antijuridicidade é unitária, não importando a esfera do direito a que se aponte, desta forma, a previsão legal de nulidade de um contrato firmado com uma pessoa sob efeito de coação, se coaduna a previsão de exclusão da culpabilidade daquele que comete um ato ilícito coagido, é esta a afirmação da sociedade, reconhecendo um desvalor em coagir, ou seja, a coação em qualquer esfera jurídica é um ato contra o valor da norma construída pela sociedade, de que deve-se garantir que as ações humanas sejam pautadas de livre vontade para que surtam qualquer efeito.
A delação premiada, firmada com acusado preso preventivamente, estaria influenciada pelo estado de coação que sofre quem se encontra no cárcere, e isto deve ser considerado, principalmente quanto a exigência homologatória de que o acordo seja firmado por ato de voluntariedade. Deve-se considerar que aquele que está preso não é senhor de sua completa vontade, pois encontra-se tutelado pelo Estado, não sendo possível afirmar que possa praticar ato de voluntariedade, já que ausente qualquer paridade com a acusação.
Assim sendo, chega-se à seguinte conclusão, que ao realizar-se sistematicamente prisões preventivas no intuito de que o acusado preso venha a deletar seus comparsas, o Estado acusador passa a criar uma alteração valorativa no comportamento do delator, que ao aderir ao acordo de delação na condição de vítima de ação ilegal por parte do Estado, passa a subsumir que não está mais vinculado a ações éticas e morais, pois não se pode exigir que aja moral e eticamente quando o Estado lhe retira ilegalmente o direito a liberdade, lhe submetendo a acordo por meio de coação. Esta alteração de condição a que é submetido o acusado que adere a acordo de delação preso, demonstra a completa anormalidade de circunstâncias que cercam a tomada de informações e a condução dos acordos, o que obviamente desobriga o acusado a agir legalmente, afastando a reprovabilidade da conduta em razão da coação moral irresistível, caracterizada pela prisão preventiva no objetivo de extrair informações do acusado, caracterizando a prisão nestes casos verdadeiro meio de tortura.
Por fim, conclui-se que o delator preso que imputa falsos crimes a terceiros, altera elementos probatórios, obstrui a justiça, ou cometa os mais diversos crimes no ato de delatar, no intuito de ver recuperada a sua liberdade, não poderá ser responsabilizado penalmente em razão de ter realizado as condutas para cessar a coação moral irresistível, caracterizada pela prisão preventiva ilegal e destinada a retirada de informações. O delator preso que comete crimes no ato da delação, ou com a entrega de supostas provas, estará acobertado por excludente de culpabilidade em razão da não exigibilidade de conduta diversa.
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1 MUÑOZ CONDE, Edmund Mezger y el Derecho Penal de su tiempo – los orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo. Valencia: Tirant lo Blanch alternativa. 2000;
2 Reale Júnior, Miguel. Teoria do delito. 2. ed. rev. Revista dos Tribunais, 2000.
3 GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidade. Trad. Ricardo Nuñez. Buenos Aires, 1943.
4 ALMEIDA, Caio Victor Castilho Maia de. A prisão preventiva e a execução provisória da pena à luz do princípio da presunção de inocência. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 set. 2016.
5 ARAS, Vladimir. Sétima crítica: a prisão preventiva do colaborador é usada para extorquir acordos de delação premiada.
6 Rodrigues, Victor Gabriel, Delação premiada: limites éticos ao Estado – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 39.
7 BADARÓ, Gustavo Henrique RighiIvahy. A prisão preventiva e a proporcionalidade: propostas de mudança. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 103, p. 381 - 408,jan./dez. 2008.
8 WELZEL, Hans. "El nuevo sistema del derecho penal. Uma introducción a la doctrina de la acción finalista". Trad. De José Cerezo Mir. Barcelona: Ariel, 1965, p. 64.
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*Sidney Duran é advogado penalista