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Acordo judicial trabalhista após a lei 13.876/19

A alteração legislativa introduzida de forma um tanto quando abstrusa não atingiu os fins pretendidos. Pelo contrário, acrescentou embaraços à definição da base de incidência da contribuição previdenciária

27/9/2019

Em tempos de cada vez maior acesso às informações por meios digitais, bem como difusão de meios de comunicação alternativos e maior transparências na atuação do Poder Público, não é muito comum que ocorram alterações legislativas sem que haja um acompanhamento e conhecimento prévio dos interessados, e os possíveis efeitos e modificações sejam previamente debatidos e analisados, se não dentro do próprio processo legislativo, pelo menos de forma paralela à sua tramitação.

O que não significa que não haja exceções, e o advento da lei 13.876/19, que acrescentou os parágrafos 3º-A e 3º-B ao art. 832, da CLT, inclui-se entre estas exceções.

Essa surpresa pode ser explicada pela própria tramitação do projeto que deu ensejo à alteração legislativa, eis que surgiu inicialmente como o projeto de lei 2.999/19, pelo Poder Executivo, que tratava de forma muito singela sobre antecipação do pagamento dos honorários periciais nas ações em que o INSS figure como parte e que tramitassem no âmbito da Justiça Federal. Não havia qualquer alusão a conteúdo alterador, e certamente nada que dispusesse a respeito dos acordos judicias na esfera trabalhista.

Vale notar que este projeto foi apresentado em 21/5/19 perante o Plenário do Câmara dos Deputados.

Com efeito, é apenas em 14/8/19 que o projeto é alterado substancialmente no Senado Federal, com substitutivo ao projeto, passando a incorporar alterações que, rigorosamente, nada diziam respeito ao conteúdo original do projeto apresentado, entre elas os acréscimos ao art. 832, da CLT. Já em 03/9/19, ou seja, pouco mais de 15 dias após o encaminhamento do substitutivo pelo Senado Federal, o projeto foi aprovado e encaminhado para sanção presidencial.

É evidente que em pouquíssimo tempo, não havia qualquer margem razoável para sequer a sociedade civil tomar ciência do conteúdo do projeto, quanto mais do substitutivo com diversas matérias estranhas ao conteúdo original do projeto.

Com a legislação agora alteradora, o art. 832 passou a contar com dois parágrafos intermediários (A e B) adicionais ao parágrafo 3º, razão pela qual convém a reprodução do texto do caput e também do parágrafo 3º, com seus adendos:

Art. 832 - Da decisão deverão constar o nome das partes, o resumo do pedido e da defesa, a apreciação das provas, os fundamentos da decisão e a respectiva conclusão.

§ 3o As decisões cognitivas ou homologatórias deverão sempre indicar a natureza jurídica das parcelas constantes da condenação ou do acordo homologado, inclusive o limite de responsabilidade de cada parte pelo recolhimento da contribuição previdenciária, se for o caso.  

§ 3º-A.  Para os fins do § 3º deste artigo, salvo na hipótese de o pedido da ação limitar-se expressamente ao reconhecimento de verbas de natureza exclusivamente indenizatória, a parcela referente às verbas de natureza remuneratória não poderá ter como base de cálculo valor inferior:    (Incluído pela Lei nº 13.876, de 2019)

I - ao salário-mínimo, para as competências que integram o vínculo empregatício reconhecido na decisão cognitiva ou homologatória; ou   (Incluído pela Lei nº 13.876, de 2019)

II - à diferença entre a remuneração reconhecida como devida na decisão cognitiva ou homologatória e a efetivamente paga pelo empregador, cujo valor total referente a cada competência não será inferior ao salário-mínimo.   (Incluído pela Lei nº 13.876, de 2019)

§ 3º-B Caso haja piso salarial da categoria definido por acordo ou convenção coletiva de trabalho, o seu valor deverá ser utilizado como base de cálculo para os fins do § 3º-A deste artigo.   (Incluído pela Lei nº 13.876, de 2019)

Segundo a autora do texto incluído no substitutivo, senadora Soraya Thronicke, “atualmente, no âmbito da Justiça do Trabalho, embora o §3º do art. 832 da CLT determine a discriminação da natureza jurídica das parcelas remuneratórias constantes da condenação ou do acordo homologado em juízo, o que se verifica na prática conciliatória é a atribuição de natureza jurídica indenizatória da maior parte das verbas, mesmo aquelas de natureza tipicamente remuneratória, o que resulta na impossibilidade de arrecadação de imposto de renda e contribuição previdenciárias”.

A intenção do legislador (mens legislatoris), nesse caso, é inequívoca, pretendo que com estas alterações fosse viabilizar a incidência da arrecadação de imposto de renda e contribuição previdenciária sobre parcelas de natureza “tipicamente remuneratória”, sob a premissa de que, em sede de conciliação trabalhista, estar-se-ia atribuindo natureza indenizatória a parcelas que, na verdade, detém natureza remuneratória.

Parece claro que a intenção era evitar que em sede de transações trabalhistas, parcelas remuneratórias que, a princípio, comporiam a hipótese de incidência tributária do imposto de renda e das contribuições previdenciárias não fossem indevidamente “transmutadas” em parcelas indenizatórias.

Embora particularmente não me pareça que se costume atribuir natureza indenizatória a parcelas remuneratórias em sede de acordos trabalhistas, a teoria nesse caso é defensável: mesmo que as partes possuam plena liberdade para transacionar em juízo, isso não significa que possam alterar a natureza jurídica de parcelas – quando esta natureza é fixada legalmente – ou mesmo excluir por ato de vontade da incidência tributárias parcelas que expressamente compões a hipótese de incidência correspondente.

O problema é que, a se admitir que esta era a intenção do legislador, e que esta era a premissa para as alterações propostas, nenhum destes fins foi atingido com os acréscimos legais decorrentes do substitutivo. Pelo contrário, criaram-se complicações, paradoxos e contradições onde ante não havia.

Ambos os parágrafos introduzidos são dependentes do parágrafo 3º, e há expressa referência a ele. O parágrafo 3º do art. 832, da CLT – introduzido pela lei 10.035/00), determina que as decisões cognitivas (e.g. sentenças) ou homologatórias (i.e. acordos judiciais ou extrajudiciais) deverão sempre incluir a natureza jurídica das parcelas constantes da condenação ou do acordo, visando, naturalmente, a fixar a base de cálculo das contribuições previdenciárias incidentes, o que inclusive é evidenciado na parte final do mesmo parágrafo.

Tal dispositivo não apresenta maiores dificuldades práticas: visa permitir a identificação de quais parcelas estão sujeitas à incidência de contribuição previdenciária (e também de imposto de renda), e quais são isentas, bem como, conforme o caso, identificá-las para fins de cálculo próprio de incidência tributária (e.g. 13º salário).

O parágrafo 3º-A, contudo, inaugura as dúvidas, paradoxos e contradições. Diz este dispositivo, como visto acima, que para os fins do parágrafo 3º (identificação da natureza jurídica das parcelas objeto da decisão cognitiva ou acordo homologado), a parcela referente às verbas de natureza remuneratória não poderão ter como base de cálculo valor inferior ao disposto nos incisos que seguem, salvo na hipótese de o pedido da ação se limite expressamente ao reconhecimento de verbas de natureza exclusivamente indenizatória.

Comecemos a análise pelo texto do parágrafo, antes de adentrar no exame dos incisos.

Inicialmente, parece-me claro que a alusão à “exclusão” das hipóteses em que a ação versar exclusivamente sobre verbas de caráter indenizatória não apenas é ociosa no texto, como também tautológica e presta-se a gerar interpretações equivocadas a respeito do conteúdo.

É ociosa porque não cumpre qualquer função ontológica relevante no texto, já que o parágrafo introduzido versa a respeito de base de cálculo mínima de parcelas de natureza remuneratória que por ventura sejam deferidas ou homologadas, razão pela qual é irrelevante para os fins do parágrafo o conteúdo de verbas de natureza indenizatória, ou mesmo o valor delas.

É tautológica porque se a ação versa exclusivamente sobre verbas indenizatórias, então simplesmente não existe discussão a respeito da natureza remuneratória das parcelas, e, por conseguinte, tampouco sobre a base de cálculo de cada uma delas, razão pela qual mesmo que fosse excluída toda essa referência contida no dispositivo, e mantida apenas a parte final, o sentido da norma seria o mesmo. Observe-se como ficaria a redação do parágrafo 3º-A nesse caso:

§ 3º-A.  Para os fins do § 3º deste artigo, a parcela referente às verbas de natureza remuneratória não poderá ter como base de cálculo valor inferior:

Mas o efeito mais insidioso que ela gera é a abertura de portas para interpretações equivocadas que redundariam em situações simplesmente absurdas do ponto de vista prático, e que rigorosamente não estão contempladas em qualquer um dos dispositivos.

A principal destas interpretações equivocadas seria a de se imaginar que a referência a alusão a ações que se refiram “expressamente ao reconhecimento de verbas de natureza exclusivamente indenizatória” implicaria a ideia de que necessariamente a decisão, nesse caso, não poderia contemplar conteúdo puramente indenizatório, mas precisaria necessariamente atribuir natureza remuneratória à todas – ou parte – das verbas contempladas na decisão.

Essa interpretação – além de violar a literalidade da norma, que em momento algum estabelece essa restrição – pode ser facilmente reduzida ao absurdo:

Primeiro, deve se observar que o parágrafo terceiro não versa exclusivamente sobre decisões homologatórias de acordos, mas também decisões cognitivas em geral. A se interpretar dessa forma, então caso houvesse uma ação em que a parte autora postula tanto verbas de caráter indenizatório quanto verbas de caráter remuneratório (e.g. indenização por danos morais e diferenças salariais por equiparação), caso o juiz acolhesse apenas o pedido de indenização por danos morais ele não poderia atribuir natureza indenizatória à condenação porque a ação “não versa exclusivamente sobre verbas de caráter indenizatório”, o que obviamente ofende a própria natureza jurídica da verba cujo direito foi reconhecido judicialmente.

Não existe nenhuma razão de caráter lógico ou jurídico, nesse sentido, que impedisse que as partes transacionassem de forma a adimplir valores a título de dano moral, e renunciassem na transação às diferenças salariais por equiparação salarial, o que é rigorosamente o mesmo efeito que seria obtido com a sentença condenatória no exemplo acima, também ofendendo não apenas a natureza jurídica da parcela transacionada, como inclusive o princípio da legalidade, a determinação de recolhimento de contribuição previdenciária sobre verba indenizatória, já que estar-se-ia criando hipótese de incidência tributária não prevista em lei.

Aliás, tal interpretação conduziria a situações simplesmente ridículas em que a parte autora, para viabilizar eventual acordo, desistiria ou renunciaria a pedido de verbas de natureza remuneratória antes da transação judicial, de tal sorte a que, por ocasião da transação, a ação então versasse exclusivamente sobre parcelas indenizatórias.

Entendo ser manifesto, assim, que a norma não impede, naturalmente, que a sentença que acolha pedidos exclusivamente indenizatórios os isente de qualquer incidência tributária, assim como que qualquer acordo firmado entre as partes contemple apenas verbas de caráter indenizatório, ainda que a demanda envolva outras verbas de caráter remuneratório.

É possível ir ainda mais além. Nenhum dos parágrafos acrescentados afasta, revoga ou mesmo torna inaplicável ao processo do trabalho o disposto no art. 515, em seu parágrafo 2º, do CPC, que reza:

Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:

§ 2º A autocomposição judicial pode envolver sujeito estranho ao processo e versar sobre relação jurídica que não tenha sido deduzida em juízo.

É dizer: mesmo que a demanda verse exclusivamente sobre verbas de caráter remuneratório, não é vedado que, por ocasião da autocomposição judicial, as partes versem a respeito de relação jurídica não deduzida em juízo (e.g. indenização por danos morais em ação proposta inicialmente sobre verbas remuneratórias).

O que se extrai como limitação imposta por este dispositivo é precisamente o fato de que, se houver o reconhecimento, na decisão cognitiva, ou no acordo homologado, de verbas de natureza remuneratória, essa natureza jurídica (desde que legalmente imposta), deve ser observada, já que as partes não podem excluir a incidência de contribuição previdenciária sobre parcelas que expressamente se incluem na base de cálculo de contribuição previdenciária.

Mas mesmo quanto às verbas de natureza remuneratória que por ventura sejam reconhecidas, a lei alteadora cria embaraços onde antes não havia. De fato, a norma inova ao fixar uma base de cálculo mínima para a incidência da contribuição previdenciária, estabelecendo que deve ser observado o salário-mínimo, para as competências que integram o vínculo empregatício reconhecido na decisão cognitiva ou homologatória, ou ainda a diferença entre a remuneração reconhecida como devida na decisão cognitiva ou homologatória e a efetivamente paga pelo empregador, cujo valor total referente a cada competência não será inferior ao salário-mínimo.

E a primeira pergunta que qualquer intérprete se faz ao deparar com esta base de cálculo mínima é: e se for menor que o salário-mínimo?

A alteração legislativa claramente parte do pressuposto, no caso do inciso I, que se trata de demanda em que foi reconhecido vínculo de emprego, caso em que o legislador presume que o valor mínimo tem que ser o salário-mínimo em razão de sua cogência sobre qualquer relação de emprego, mas naturalmente essa previsão não contempla as hipóteses em que o vínculo reconhecido seja de um contrato intermitente. No caso do contrato intermitente, a princípio, o valor da cobrança a ser recolhido diretamente pelo trabalhador deve observar a diferença entre o valor percebido e o salário mínimo, mas, no caso da alteração legislativa em questão, a base de cálculo sempre será o salário mínimo, independentemente do caso. Vale lembrar, ainda, que no curso do contrato de trabalho intermitente o trabalhador intermitente pode – ou não – efetuar o recolhimento dessa diferença (embora seja necessária para cômputo de tempo de aposentadoria), mas no caso da matéria ser judicializada, essa cobrança se torna mandatória, e não mais uma contribuição por iniciativa do trabalhador.

Se isso não bastasse, nada impede que a demanda não verse sobre diferenças em face do salário mínimo. Suponha-se, por exemplo, um trabalhador que recebe exclusivamente salário variável e postula o pagamento de diferenças a título de comissões. Ao se apurar as diferenças postuladas chega-se a um valor de R$ 300,00 mensais, mas ao se liquidar a ação verifica-se que mesmo com essas diferenças, houve meses em que a remuneração do trabalhador não chegou a um salário mínimo. Nesse cenário, qual o critério de cálculo a ser observado para a competência correspondente? Isenta-se o recolhimento previdenciário neste mês, já que não chegou a um salário-mínimo? Ou incide-se sobre o salário-mínimo, muito embora o trabalhador nem sequer tenha chegado a receber um salário-mínimo?

A situação fica ainda mais complexa quando se leva em consideração o parágrafo 3º-B, que estabelece que caso haja piso salarial da categoria definido por acordo ou convenção coletiva de trabalho, o seu valor deverá ser utilizado como base de cálculo para os fins do § 3º-A. Essa determinação gera mais questionamentos do que respostas. Suponha-se que o piso salarial não seja discutido na demanda, o que não é raro. O que fazer nesse caso? O magistrado simplesmente determina sua aplicação independentemente da vontade das partes? E se a norma convencional contemplar diferentes pisos para diferentes cargos ou profissões? O magistrado deve nesse caso enquadrar o trabalhador em um deles de ofício, independentemente de eventual discussão incidental que isso possa gerar (ou que possa gerar posteriormente à decisão para fins de futuro enquadramento convencional)? E se nem sequer foram trazidas aos autos as normas convencionais? Deve o juiz determinar de ofício para fins de eventual fixação do piso que deve ser observado? E, assim como ocorre no caso do salário mínimo, e se mesmo com eventuais diferenças o valor da condenação implicar base de cálculo inferior ao piso convencional da categoria? A hipótese nesse caso seria de isenção de recolhimento ou incidência de contribuição previdenciária sobre valor fictício e superior ao da base de cálculo?

Penso que a única forma de interpretar o parágrafo 3º-B de tal sorte a que não se viole não apenas os limites objetivos da demanda, como o próprio direito de defesa das partes, é a de que o piso salarial seja adotado em substituição ao salário mínimo para fins de base de cálculo mínima das contribuições previdenciárias apenas nas demandas em que efetivamente houver discussão a respeito do piso salarial aplicável ao caso concreto, ainda que para fins exclusivamente declaratórios, de tal sorte que, uma vez sujeita a matéria ao contraditório, produzida a prova correspondente, e manifestando-se o magistrado a seu respeito na sentença ou no acordo homologado, aí sim deve ser determinada a observância do piso salarial como base de cálculo mínima da contribuição previdenciária.

Em conclusão, é possível constatar que, a despeito da mens legislatoris, a alteração legislativa introduzida de forma um tanto quando abstrusa não atingiu os fins pretendidos. Pelo contrário, acrescentou embaraços à definição da base de incidência da contribuição previdenciária, de questionável legalidade ao potencialmente fixar uma base de cálculo fictícia para as contribuições previdenciárias, e dissociada dos próprios limites objetivos da demanda que lhe deu origem, causando muito mais perplexidades e paradoxos a serem resolvidas sobre problemas até então inexistentes, e sem trazer as respostas que se pretendia com a modificação levada a cabo.

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*Roberto Dala Barba Filho é bacharel em direito pela UFPR, mestre em direito pela PUC-PR e juiz do trabalho no TRT da 9ª região. 

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