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REsp 1.658.601/SP: A prevalência do interesse coletivo na incorporação imobiliária frente à alegação de impenhorabilidade do bem de família

A despeito da proteção legal conferida pela lei do Bem Família e das exceções insculpidas em seu respectivo artigo 3º, referidas exceções, ao contrário do que se costumava pensar, não são estanques à luz da realidade fática do dia-a-dia, e só tendem a se elastecer, ainda que por meio hermenêutico.

20/9/2019

É sabido que a lei federal 8.009/90, popularmente conhecida como “lei do Bem de Família” (L.B.F.), promulgada pelo então presidente do Senado Federal à época, senador Nelson Carneiro, sofreu temperamentos ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito ao rol de exceções insculpidos no artigo 3º deste referido diploma legal.

Isso ocorreu porque ao início dos anos 90 o país atravessava (mais) uma grave crise econômica, que, a despeito de todos os esforços envidados (incluindo-se o início do processo de privatizações, que perdura até os dias de hoje), culminou com o famoso “confisco da caderneta de poupança”, endossado pela então ministra da Fazenda, sra. Zélia Cardoso de Mello.

Àquele tempo, onde imperava a instabilidade monetária e baixas nos indicadores sociais, tal lei acabou sendo sancionada como um ato legislativo presumidamente paliativo, que se revelou como a única saída encontrada por nosso Congresso para manter intactos os lares das famílias brasileiras na qualidade de “asilo inviolável”, tal como preconizava e ainda preconiza poeticamente nossa Constituição Federal. Isso sem falar no chamado “sonho da casa própria”, jargão criado pouco tempo antes e tão bradado até os dias de hoje, desde as altas mais empresas até aos mais simplórios botequins.

Em outras palavras, referida lei foi o último e intocável salvo-conduto jurídico que manteve milhares de famílias brasileiras a salvo da mendicância pura e simples àquele tempo, ainda que a custo da derrocada da credibilidade do país perante o mercado, expressamente traduzida em índices inflacionários galopantes e sucessivos fracassos de planos econômicos.

No entanto, as transformações havidas na realidade socioeconômica do país, sobretudo a partir de 1994, foram bastante contundentes, sobretudo no que diz respeito ao incontestável sucesso no controle da inflação e à gradual conscientização das famílias brasileiras acerca dos problemas advindos do endividamento orçamentário doméstico, o que acarretou, ainda que de maneira gradual, na relativização da aludida lei, que pouco a pouco foi perdendo seu status outrora “bíblico” e “dogmático”.

Isso ainda restou corroborado pelo próprio avanço tecnológico ao longo deste período, que, não bastasse, proporcionou plena integração dos órgãos de proteção ao crédito, Tabelionatos, o próprio Poder Judiciário e mesmo instituições financeiras, conforme se dessume das conhecidas “penhoras online via sistema BACENJUD”, para desespero de centenas de milhares de devedores que ou simplesmente relegaram suas dívidas à maré do tempo ou dormiam confiantes de que a sobredita lei, em último caso, haveria de lhes socorrer.

Eis que, como consectário deste processo, o STJ muito recentemente julgou o Resp 1.658.601/SP, de relatoria da sempre muito esclarecida ministra Nancy Andrighi, onde se discutiu com interessante acuidade a possibilidade de um devedor fiduciante que deu um imóvel em garantia para cobrir dívida perante instituição financeira e, ao mesmo tempo, celebrou instrumento particular de confissão de dívida perante uma associação promitentes compradores criada em razão da falência da construtora deste mesmo imóvel com o intuito de justamente construí-lo, poder invocar a proteção conferida pela dita lei para não ter seu imóvel penhorado.

Em outros termos, dito devedor adquiriu um imóvel de uma construtora muito conhecida em certa época que veio a falir e, em razão disso, passou a fazer parte de Associação destinada à conclusão do empreendimento como um todo.

Como condição, este devedor tornou-se devedor fiduciário de uma certa instituição financeira, dando seu imóvel como garantia, e, ao mesmo tempo, celebrou instrumento de confissão de dívida, a fim de que a associação efetivamente viabilizasse a conclusão das obras.

Ao ver que não solveria com o que se comprometeu, invocou a L.B.F., que, em tese, haveria de o proteger, porquanto se estaria diante de uma moradia familiar.

Fato é que, ao cabo, a Ilustrada ministra entendeu corretamente que, a despeito de a L.B.F. conferir alguma proteção legal àquele que, apesar de dever fiduciariamente, possuir no imóvel dado em garantia sua única e permanente residência, bem como de sua família, sua invocação, no caso, prejudicaria o negócio jurídico ligado à própria existência física do bem, porquanto o aporte financeiro que deveria ser dispensado à associação destinar-se-ia à construção do imóvel como um todo, incluindo-se aí todas as áreas comuns, de modo que, por inteligência dos incisos II e IV do artigo 3º da lei, tal invocação não mereceu guarida, razão pela qual o recurso ao cabo foi desprovido.

Uma breve descrição do caso já nos revela de forma bastante clara a mensagem que o Corte Superior almejou transmitir: A despeito da proteção legal conferida pela lei Federal 8.009/90 (“lei do Bem Família”) e das exceções insculpidas em seu respectivo artigo 3º, referidas exceções, ao contrário do que se costumava pensar, não são estanques à luz da realidade fática do dia-a-dia, e só tendem a se elastecer, ainda que por meio hermenêutico.

Outro aspecto que referida Corte nos transmite é a força que uma associação dessa natureza pode ter, mesmo diante de leis cogentes e tão enraizadas em nosso ordenamento como a L.B.F..

Isso porque referida associação nada mais é do que um desdobramento da lei de Incorporações (lei Federal 4.591/64), cujo artigo 31-C (fruto de uma lei Federal de 2004 - lei 10.931) permite a uma pessoa física ou jurídica fiscalizar e acompanhar a evolução de uma determinada obra de seu interesse, obra esta que no mais das vezes nada mais é do que um patrimônio de afetação em termos jurídicos, sem que lhe sejam carreadas quaisquer responsabilidades ou pressões de terceiros (agentes financeiros, construtoras, incorporadoras, Comissão de Representantes etc).

E são justamente casos como esses que nos revelam que o Direito Civil, na esteira do Direito Imobiliário, encontram campo fecundo de atuação, porquanto o tempo de status “bíblico e dogmático” deste diploma legislativo e mesmo de outros igualmente conhecidos se foi ou está se esvaindo, de modo que o campo de exceções à impenhorabilidade só tende a aumentar, seja através de manobra congressual, seja através de simples e sazonais temperamentos oriundos de simples técnica hermenêutica judicial.

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*Felipe Baida Garófalo é advogado do escritório LTSA Advogados.

 

 

 

*Fernando Henrique Anadão Leandrin é sócio do LTSA Advogados.

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