O dano existencial é mais uma das espécies de dano extrapatrimonial, que pode ser enquadrada no conceito de novos danos. De acordo com Marco Aurélio Bezerra de Melo1, ocorre quando, após a lesão, há uma perda da qualidade de vida do indivíduo, que fica impossibilitado ou encontra grandes dificuldades em manter suas atividades cotidianas. Ao sofrer o dano existencial, o indivíduo fica privado de usufruir e gozar dos prazeres da vida, tal como o lazer.
O dano existencial está extremamente ligado à ideia de frustração e engloba duas subvertentes: o dano à vida em relação e o dano ao projeto de vida. Matilde Zavala de Gonzalez2 afirma que o dano à vida em relação é aquele em que há impossibilidade ou grande dificuldade do indivíduo em se reinserir nas relações sociais, ou mantê-las em sua normalidade. Já o dano ao projeto de vida, caracteriza-se pela frustração das legítimas expectativas que o indivíduo tem em relação à própria existência, tais como seus sonhos, metas e objetivos de vida.
Dessa forma, o dano existencial decorre principalmente de uma mudança no cotidiano da pessoa, que pode alterar direta ou indiretamente a sua relação com a sociedade, amigos, família, e até com si mesma, atingindo sua felicidade e satisfação pessoal, sendo discutíveis até problemas psicológicos graves, como depressão, ansiedade, etc. De acordo com Ezequiel Morais3, o dano existencial se difere do dano moral, na medida em que o primeiro reside na impossibilidade de exercer uma atividade concreta na esfera pessoal e familiar, uma renúncia ou impedimento; enquanto o segundo seria caracterizado como uma situação de abalo de honra, sofrimento, angústia.
Nesse cenário, a proteção da reparação do dano existencial é essencial, pois incontroverso o dever do Estado em proteger a tranquilidade da vida das pessoas, bem como seus projetos de vida pessoais. Há duas correntes sobre a possibilidade de cumulação de danos morais e danos existenciais: a primeira defende que, tal como acontece com o dano estético, há a possibilidade de cumulação, incorrendo em uma reparação adicional ao dano moral.4
Flaviana Rampazzo Soares5, que faz parte desse primeiro entendimento, afirma que o dano existencial pode ser caracterizado como uma lesão a um conjunto de relações que fazem parte do desenvolvimento da personalidade de um indivíduo, de ordem pessoal ou social, sendo uma afetação “negativa, total ou parcial, permanente ou temporária” a uma determinada atividade ou até mesmo mais de uma que faça parte do cotidiano do sujeito.
No entanto, a segunda corrente, representada por Fernando Noronha6, defende a existência dos danos existenciais, mas entende que eles não são uma categoria diferente daquela dos danos à personalidade de modo geral. De acordo com Marco Aurélio Bezerra de Melo7, “o nosso ordenamento é tão fértil na proteção dos direitos da personalidade que todas as hipóteses apontadas como dano existencial já estariam inseridas na violação de algum dos direitos da personalidade”.
Apesar das opiniões distintas, seja englobado no conceito de dano moral ou como uma categoria autônoma, o dano existencial merece tutela pelo ordenamento jurídico, pois consiste em um dano extrapatrimonial que ultrapassa o mero aborrecimento, tendo consequências nítidas e apuráveis para quem o sofre.
Essas consequências são muito nítidas ao estudar o dano existencial no âmbito do Direito do Trabalho. Esse dano pode vir à tona quando, por exemplo, o empregador não respeita o equilíbrio entre a qualidade de vida do trabalhador e a sua função, causando prejuízos físicos e mentais ao empregado. Extensas jornadas podem ter como consequência não só a remuneração injusta do trabalhador, mas também outra muito mais importante e irreversível: a perda da qualidade de vida, pois ele não consegue desfrutar adequadamente de sua vida social, além de não ter tempo para se dedicar a projetos pessoais, tirar férias, enfim, tudo aquilo que faz parte da vida de qualquer trabalhador comum.
De acordo com J.C.B. Filho8, essa perda ou diminuição quantitativa da qualidade de vida do empregado é a consequência mais danosa ao trabalhador – mesmo que as horas suplementares sejam devidamente pagas, o trabalhador pode perder a chance de ver seu filho crescer, perder seu convívio com os amigos, e até mesmo perder o direito de ter uma religião.
A análise do dano existencial, portanto, vai muito além de uma análise em sentido estrito de fundamentos jurídicos ou lei. Para verificar se houve ou não a ocorrência de dano existencial, o julgador deverá adentrar no conceito de felicidade, nas premissas razoáveis de um bom convívio em sociedade, na tutela dos direitos de dignidade da pessoa humana, tais como, de acordo com Amaro Alvares de Almeida Neto9,
[...] direito às suas expectativas, aos seus anseios, aos seus projetos, aos seus ideais, desde os mais singelos até os mais grandiosos: tem o direito a uma infância feliz, a constituir uma família, estudar e adquirir capacitação técnica, obter o seu sustento e o seu lazer, ter saúde física e mental, ler, praticar esporte, divertir-se, conviver com os amigos, praticar sua crença, seu culto, descansar na velhice, enfim, gozar a vida com dignidade. Essa é a agenda do ser humano: caminhar com tranquilidade, no ambiente em que sua vida se manifesta rumo ao seu projeto de vida.
Tereza Ancona Lopez10 define um método eficaz para a apuração do dano existencial: a comparação entre o antes e o depois do evento. Nessa comparação, seria possível observar com clareza o comprometimento das realizações da vida, as consequências negativas para o indivíduo de determinada conduta lesiva.
Em suma, feitas as ponderações necessárias, o dano existencial pode ser entendido como todo e qualquer dano que abale a motivação de existência do indivíduo, seus sonhos, seu convívio social com sua família, amigos, tudo que afete e modifique o direito fundamental e não positivado da verdadeira felicidade.
Mas o que diz o Tribunal Paulista sobre o dano existencial? Na busca de jurisprudência do TJ/SP, há apenas 7 (sete) acórdãos que contém o termo “dano existencial” em sua ementa. Em grande parte dos precedentes11, o dano existencial é tratado sem autonomia, inserido como uma categoria de dano moral. Outra grande parte12 também versa sobre problemas inseridos no Direito do Trabalho, de modo que não abordam questões próprias do Direito Civil.
No precedente 1072340-62.2013.8.26.0100, apesar de o des. Carlos Nunes, relator do acórdão, conceituar o dano existencial como algo separado do dano moral (tendo, inclusive, entendido que o dano existencial pressupõe o fim da vida), no final conclui que o dano existencial é apenas uma espécie do gênero dano moral.
Portanto, ao meu ver, os tribunais paulistas mostram resistência em conhecer o dano existencial como uma categoria autônoma nos processos cíveis, de modo que parecem simpatizar com a segunda corrente, que defende a sua discussão apenas dentro da esfera do dano moral. Há de se respeitosamente discordar desse entendimento, visto que, conforme demonstrado ao longo deste artigo, o dano existencial tem características distintas e autônomas, que devem ser tratadas em separado.
1 - MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O dano existencial na responsabilidade civil. Fevereiro, 2016. Disponível em: O dano existencial na responsabilidade civil.
2 - ZAVALA DE GONZALEZ, Matilde. Resarcimiento de daños: daños a las personas (integridade sicofisica). 2ª edição. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1996, pg. 462.
3 - MORAIS, Ezequiel. Brevíssimas considerações sobre o dano existencial. Julho, 2012. Disponível em: Dano existencial. Artigo do amigo Ezequiel Morais.
4 - MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O dano existencial na responsabilidade civil. Fevereiro, 2016.
5 - RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Responsabilidade Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009, pg. 44.
6 - NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. Vol. I. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pg. 564.
7 - MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O dano existencial na responsabilidade civil. Fevereiro, 2016.
8 - FILHO, J. C. B. Et. Al., O Dano Existencial e o Direito do Trabalho. Disponível em: O dano existencial e o Direito do Trabalho
9 - NETO, Amaro Alves de Almeida. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, n. 24, mês out/dez, 2005.
10 - LOPEZ, Teresa Ancona. Dano existencial. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 57/2014, pg. 287- 302.
11 - TJ/SP, Apelação Cível nº1044973-74.2016.8.26.0224, Apelação Cível nº 1072340-62.2013.8.26.0100.
12 - TJ/SP, Apelação Cível nº 1003219-83.2016.8.26.0053, Apelação Cível nº 1003550-04.2015.8.26.0408, Apelação Cível nº 1000141-17.2016.8.26.0042, Apelação Cível nº 1000141-17.2016.8.26.0042.
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*Thais Trench Falcão é advogada, fundadora do escritório Trench Falcão Advogados, especialista em Direito dos Danos.