1 – Introdução
Nunca esteve tão em evidência na pauta do Congresso Nacional e do Poder Judiciário a agenda do combate à corrupção e consequentemente discussões acerca da reconfiguração de direitos de investigados, de réus presos e condenados. São temas que dividem opiniões dentro e fora dos tribunais e não raro os acirrados debates desaguam em uma “polifonia” argumentativa em que nenhum dos lados se propõe a ouvir a divergência de modo desarmado, inviabilizando qualquer consenso.
Dentre tais temas, está o do cabimento de embargos infringentes e de nulidade ante decisão não unânime desfavorável ao réu imposta em ação penal originária julgada pela cúpula dos Tribunais, isto é, pelo Plenário do STF e pelo Órgão Especial de Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal.
E diante de eloquentes vozes e gritos bramando “eis aqui a melhor solução” e em face da popularidade que algumas saídas sugerem [geralmente contra “homine”], o momento é mesmo de dar ouvidos à “voz” da Constituição Federal e ouvir o que ela soberanamente tem a dizer sobre tais temas [se é que ela diz algo...], a fim de fazer cumprir seus preceitos e maximizá-los, independentemente de a solução constitucional coincidir ou não com o que o ecoa da “voz as ruas”.
E o presente artigo tematiza exatamente a necessidade de uma urgente releitura do art. 609, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal à luz da Constituição Federal, a fim de se aquilatar a (in)existência de direito aos embargos infringentes e de nulidade, ou seja, a um recurso ordinário, que possa analisar questões fáticas, probatórias e jurídicas nas quais se baseia uma sentença/acórdão não unânime desfavorável ao réu, tomada em ação penal originária de competência de Órgão Especial de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.
2 – O duplo grau de jurisdição: direito fundamental de caráter judicial e garantia constitucional do processo
Os manuais de processo penal brasileiro são convergentes em reconhecer dentre os princípios e garantias processuais o do duplo grau de jurisdição. Embora se diga não haver previsão constitucional expressa [como ocorreu, por exemplo, com a de 1824, no seu art. 158], o mesmo é visualizado como consequência lógica do princípio da ampla defesa e como decorrência da própria estrutura organizacional do Poder Judiciário e em especial pela própria dinâmica recursal1.
O duplo grau de jurisdição tem por fundamento proteger a presunção de inocência, a qual não pode ser afastada com uma única sentença condenatória prolatada por órgão jurisdicional singular. Daí falar-se em necessidade de dupla conformidade em matéria penal, que impõe uma revisão mais ampla possível ou uma segunda análise da condenação imposta sobre a pessoa, em razão da gravidade e dos efeitos decorrentes da pena em si [privação da liberdade, suspensão dos direitos políticos, perda de bens, etc], de sorte a se poder afirmar ser o duplo grau de jurisdição uma faculdade [a final de contas, o recurso é voluntário] do condenado e que é “conditio sine qua non” para aplicação da pena.
Tanto é assim que, mesmo nos casos em que o réu renuncia ao direito de apelação, a abdicação fica condicionada à chancela do advogado do réu2. Se o advogado diverge do réu e interpõe o recurso, o reclamo deve ser conhecido e devidamente processado, a evidenciar a relevância que o ordenamento jurídico brasileiro confere ao direito ao recurso e à presunção de inocência.
De outro lado, a natureza facultativa do exercício do duplo grau de jurisdição não lhe suprime o status de direito fundamental e tampouco suplanta sua natureza de “conditio sine qua non” para aplicação da pena. É característica dos direitos fundamentais a imprescritibilidade, ou seja, não será removido do rol de garantias constitucionais do processo pelo seu não exercício. Importa é ser assegurada a faculdade de, em querendo, poder recorrer da condenação. O exercício do direito ao duplo grau de jurisdição é decisão da Defesa [do réu e do advogado Defensor].
Além disso, a doutrina arrola ainda o fundamento político do duplo grau de jurisdição, revelado na imprescindibilidade de controle dos atos estatais, dentre os quais estão as decisões judiciais3, o que não poderia ser diferente, sobretudo ante a falibilidade humana, inclusive do julgador.
A nosso viso, o fundamento normativo do duplo grau de jurisdição é mesmo constitucional, uma vez que o art. 5º, LV, da Constituição Federal positiva entre nós a garantia do “contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Parte da doutrina entende que a expressão “recursos a ela inerentes” associado ao direito à ampla defesa delineia o duplo grau de jurisdição ou o “duplo exame” independentemente do grau de jurisdição que profere condenação.
Não bastasse isso, Constituição Federal do Brasil claramente optou por uma dinamicidade protetiva e progressiva no tocante a direitos fundamentais, entendendo que não podem ser suprimidos [são cláusula pétrea – art. 60, §4º, IV, CF], mas podem ser ampliados. A primeira forma de ampliação de direitos fundamentais é a via da Emenda Constitucional, como ocorreu com inserção do direito fundamental à razoável duração do processo [art. 5º, LXXVIII, CF, fruto da EC 45 /04]. A segunda forma de ampliação de direitos fundamentais é a via da internalização de preceitos de direitos humanos dispersos em outros textos de direito internacional e que são incorporados à ordem jurídica brasileira na qualidade de direitos fundamentais. Neste último caso, a inclusão como direito fundamental pode se dar com status de Emenda Constitucional, se respeitada a regra do art. 5º, §3º, da CF, ou com status “supralegal”, se apesar de inobservado o quórum para aprovação de emenda, a norma internacional pactuada entre Estados soberanos e internalizada no Brasil veicular direitos humanos.
É possível distinguir, portanto, o direito fundamental como constitucional [positivado diretamente na Carta Magna ou internalizado com quórum de emenda constitucional se emanar de tratado internacional e veicular direitos humanos] e o direito fundamental “supralegal”, agregado ao nosso ordenamento pela cláusula de abertura do art. 5º, §2º, da CF.
Independentemente das duas formas de ampliação dos direitos fundamentais acima listadas, os efeitos que geram na ordem jurídica – arrisca-se dizer – são praticamente os mesmos, e a diferenciação é meramente retórica e sem pragmatismo.
Basta lembrar que o art. 5º, LXVII, da CF, vedou a prisão civil por dívida, excepcionando os casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel. Contudo, a Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH [Pacto de São José da Costa Rica] igualmente vedou a prisão civil por dívida, mas apenas excepcionou unicamente o caso de devedor renitente de alimentos [art. 7º, 7]. Pelo texto da Constituição Federal é possível a prisão do depositário infiel, mas pelo teor do Pacto de São José da Costa Rica, não.
Tal antinomia foi resolvida pelo STF no sentido de que apesar de a inserção do Pacto de São José da Costa Rica em nosso ordenamento jurídico não ter observado o quórum de emenda constitucional, ele veiculou direitos humanos, os quais, nos termos do art. 5º, §2º, da CF, ingressaram na ordem jurídica com status supralegal. E sem anular ou revogar o texto do art. 5º, LXVII, da CF, atribuiu-se à aludida norma internacional de direitos humanos uma eficácia “paralisante” à legislação infraconstitucional que positivava e dava concretude a prisão civil do depositário infiel4.
Ou seja, apesar de a Carta Magna autorizar, a CADH proíbe a prisão do depositário infiel. Sem ter sido inserida na ordem jurídica brasileira por emenda constitucional, veja-se que o citado tratado obsta que a própria Constituição Federal irradie efeitos neste tocante, vez que “diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.5”
Não há justificativa razoável para que se dê tratamento jurídico diverso no caso do duplo grau de jurisdição, igualmente previsto naquele mesmo Pacto de São José da Costa Rica [CADH], art. 8.2.“h”, que assim dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] “h”. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.”
Daí que, apesar de doutrinadores de escol como Gilmar Ferreira Mendes6 sustentarem não ser o duplo grau de jurisdição um direito na ordem jurídica brasileira, a não ser naqueles casos em que a Constituição Federal expressamente assegura ou garante esse direito, como nas hipóteses em que faculta a possibilidade de recurso ordinário ou apelação para instância imediatamente superior [arts. 98, I, 102, II, b; 108, II], ou que institui uma estrutura hierarquizada de instâncias jurisdicionais originária e recursal [arts. 118, 122, 125], parece-nos que o fundamento da tese não mais se sustenta.
É que, assim como para a grande maioria dos doutrinadores e jurisprudência que nega ao duplo grau de jurisdição a qualidade de um direito fundamental, o citado jurista e ministro do STF Gilmar Mendes baseia-se no multicitado precedente do STF no RHC 79785/RJ, j. em 29/03/2000, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, no que entendeu que a normatização da jurisdição, sobretudo em tema recursal, seria tema próprio de constituição doméstica e impassível de regulamentação por preceito internacional, de modo que o art. 8.2.“h” do Pacto de São José da Costa Rica não teria incidência superior ao teor da Constituição na ordem jurídica brasileira.
A partir do citado julgado seguiram-se outras manifestações do STF e Tribunais do país no mesmo sentido, sem que houvesse muito aprofundamento do tema, e o precedente do STF no RHC 79785/RJ passou a ser aplicado de forma automática.
Contudo, o próprio precedente referido destaca que a decisão que se tomava na ocasião estava sujeita à cláusula do rebus sic stantibus, pois consignou que se estava decidindo na perspectiva “de um estágio ainda primitivo de centralização e efetividade da ordem jurídica internacional”. Ou seja, no momento daquela decisão não se tinha a dimensão da importância que os direitos humanos veiculados em tratados internacionais assumiriam no país. Assim, foi num contexto diverso da realidade atual, na qual já não há mais dúvida da centralidade que os preceitos internacionais de direitos humanos ocupam no ordenamento jurídico pátrio.
Prova eloquente da mudança de entendimento do STF, a atestar a centralidade que normas internacionais de direitos humanos ocupam no ordenamento jurídico pátrio ante a sua supralegalidade, foi a edição da Súmula Vinculante n. 25, fruto da tese definida no RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60. No citado RE o Supremo Tribunal Federal assentou que a internalização dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos “tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante”. Enfatizou-se que “diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada (...), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria” [RE 466.343, voto do min. Gilmar Mendes, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009].
Ademais, o precedente do STF no RHC 79785/RJ, Pertence, foi anterior a PEC 45/04, que incluiu o parágrafo 3º ao art. 5º da CF. A partir de tal mudança do texto constitucional houve também o acolhimento pelo STF de uma nova interpretação sobre a posição dos direitos humanos veiculados em pactos internacionais de que signatário o Brasil e inseridos em nosso ordenamento pela via da supralegalidade do art. 5º, §2º, da CF. Tal evolução hermenêutica esvaziou a premissa do antigo julgado no RHC 79.785/RJ.
Logo, é legítimo concluir que se a Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH [Pacto de São José da Costa Rica] foi internalizada no Brasil com status supralegal, nem mesmo uma norma da Constituição Federal que eventualmente vedasse o duplo grau de jurisdição poderia surtir efeitos práticos contra tal direito convencional, dada a eficácia paralisante que o art. 8.2.“h” do Pacto de São José da Costa Rica possui, justamente a ideia constitucional que norteou a edição da SV n. 25 do STF, fruto da tese definida no RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009.
- Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
1 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no processo penal. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 25.
2 Súmula n. 705/STF: “A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.”
3 Alexis Couto de Brito, Humberto Barrionuevo Fabretti, Marco Antônio Ferreira Lima. Processo Penal Brasileiro. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 63.
4 RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, voto do min. Gilmar Mendes, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009.
5 Ibidem.
6 , p. 598.
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