O agronegócio, mesmo em ano de turbulências, há muito, mantém protagonismo econômico. Hoje, segundo o IBGE1, ele é responsável por R$297.800.000.000 (duzentos e noventa e sete bilhões e oitocentos milhões de reais) do PIB nacional2. E ainda: manteve no Brasil, ocupados 18,2 milhões (dezoito milhões e duzentos mil) trabalhadores3 no ano de 2018. Gigante pela própria natureza, porém, é também fortemente atingindo pela crise e para contorna-la, muitos profissionais de reestruturação sugerem como solução de todos os males: a recuperação judicial. Em síntese, afirmam que assim, se poderia renegociar dívidas em condições mais favoráveis salvando a atividade. Por óbvio, esta é uma opção viável mas arriscada e dispendiosa o que, muitas vezes, não é alertado por esses consultores. A partir de hoje apresentarei uma série de três artigos sobre o tema, na tentativa de contribuir para o debate. Como cediço, o Superior Tribunal de Justiça, grande responsável pela uniformização da interpretação do direito objetivo em nosso país, não tem jurisprudência sólida acerca do assunto. Assim, pululam pelos mais diversos rincões, as mais diversas teses há anos, o que gera odiosa insegurança no mercado. Neste primeiro artigo da série, abordaremos o tema: produtor rural pessoa física/jurídica e sua legitimidade ativa para pedir recuperação judicial. Adentraremos, pois necessário, na divergência acerca da natureza da inscrição no Registro Público e se há tempo mínimo de inscrição.
Antes de iniciarmos os temas propostos, imperioso adotar como premissa básica de qualquer trabalho científico sobre o tema, o fato que a lei ordinária Federal 11.101/05 reconheceu a empresa como instrumento de política pública nacional e em esforço hercúleo, tentou preserva-la considerando: o interesse dos trabalhadores na manutenção de seus postos de trabalho; o do Estado, na continuidade do pagamento dos tributos que lhe são devidos; o do credores, na satisfação dos seus créditos e ainda o da comunidade no fomento da concorrência, na circulação de riquezas e manutenção dos negócios jurídicos. Nesse diapasão, nota-se que opção legislativa foi dar primazia ao interesse público qualificado para impedir que interesses individuais e não republicanos de alguns credores (mormente, os poucos que detém valores mais altos e garantias) impossibilitem a requalificação da dívida, e as perdas incomensuráveis dos menores. Assim, a Lei de Falência e Recuperação Judicial permitiu que todos os interessados, inclusive estes últimos, participem de uma “grandiosa” negociação enaltecedores dos princípios do Estado Democrático de Direito. Mas não menos importante é vislumbrarmos que não é todo e qualquer empresário que deve obter a possibilidade de sacrificar interesses individuais de vários em prol do soerguimento. Apenas os viáveis econômica, financeira e administrativamente, o poderiam sob pena de desvirtuamento da própria lei pois a manutenção da atividade deficitária, ao contrário do pretendido, consome ainda mais os recursos já escassos, tornando o processo, inclusive, o de desemprego ainda mais tortuoso. Deferir um pedido de processamento de RJ a quem não pode soerguer também prejudica o próprio Estado pois sem os tributos devidos, sua atividade resta comprometida. Além do mais, confere-lhe vantagem desarrazoada abalroando a livre concorrência. Por qualquer prisma que se observe o ponto, resta translúcido que a recuperação judicial não é remédio para todos.
Outro ponto relevante: a verdade é que o tema dos artigos se interelacionam, e por imperativo lógico, a posição de um, necessariamente vincula a posição do seguinte. Quero aqui dizer que os discursos retóricos que encontramos por aí só são válidos se construírem um raciocínio lógico eficiente em que determinada conclusão resta vinculada a premissa do silogismo.
No que tange o tema desse artigo, encontramos três posicionamentos majoritários: 1) só produtor rural pessoa jurídica inscrito há mais de 2 anos no Registro Público poderia aproveitar o favor legal da lei 11535 de 2011; 2) O produtor rural pessoa jurídica pode pedir RJ mesmo sem estar inscrito na Junta Comercial há mais de dois anos desde que comprove, por outros meios, o exercício da atividade empresarial; 3) O produtor rural pessoa física pode pedir RJ caso comprove que exerce atividade empresarial há mais de dois anos.
A primeira corrente entende que a Lei de RJ no seu art.1 º, autoriza apenas o empresário e a sociedade empresária a pediram recuperação judicial, sendo que o art. 966 do Código Civil, por sua vez, determinaria que só seria empresário ou sociedade empresarial, os que se registrassem. Para essa corrente, portanto, a inscrição no Registro Público tem natureza constitutiva. Corroboram a tese afirmando que o art. 967 do Código Civil é claro ao dispor que a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis é requisito obrigatório para o exercício da atividade. Além disso, como o art. 48 da Lei de RJ exige o exercício da atividade empresarial regular há mais de dois anos, concluem que só a pessoa jurídica constituída há mais tempo que esse prazo (só essas seriam regulares) pode pedir o benefício. Elencam ainda que antes das leis citadas, mormente na vigência do Código Comercial de 1850, o produtor rural sem registro não era considerado comerciante e assim sendo, não se sujeitaria a concordata e falência, devendo ser o entendimento mantido. Assim decidiram o Tribunal de Justiça do Mato Grosso nos processos: 1001742-07.2016.8.11.0000; 1002201-04.2019.8.11.0000, o Tribunal de Justiça de São Paulo no processo 20666960-11.2017.8.26.0000, e o STJ nos REsps 1.578.579 bem como 1.623.502. Evidenciamos que essa, ao que tudo indicava, parecia que seria a tese consagrada derradeiramente, assustando nos assusta a tergiversação do tema.
Para os adeptos da segunda corrente, o empresário rural, desde que registrado pode pedir RJ sim, mas sua atividade não precisa ser comprovada apenas com inscrição. O registro, assim, também constituiria a figura do empresário, mas a atividade poderia ser comprovada por outros meios como é o caso da inscrição no Cadastros de Contribuintes da SEFAZ do estado; instrumento particular de contrato de emprego; notas fiscais de compra e venda de produtos e prestação de serviço... Asseveram que o art.48 da lei de RJ, não elenca como requisito o registro em si há dois anos, não amalgando os conceitos como fazem os defensores da primeira tese. Teria a norma supra trazido dois pressupostos distintos: um formal: regularidade da atividade empresarial e outro temporal, deste desvinculado: dois anos de exercício dessa atividade. Assim, não caberia ao intérprete criar mais um requisito onde o legislador não o fez. Partilham dessa corrente: o TJBA processo 0162336-66.2016.8.05.0909; TJSP nos 2049452-91.2013.8.26.0000 e 2049349-10.2017.8.26.0000; TJPR 0001640-56.2019.8.16.0000; TJMG no processo 0261085073.2017.8.13.0000; Primeira Câmara de Direito Privado do TJMT no recurso 100478544-2019.8.11.0000. Ministros: Sidney Benetti no RESp 1193.115/MT; Marco Buzzi na PET1460/MT; Raul Araújo na MC24468/MT; Lázaro Guimarães no REsp 1568429/MT, o Luis Felipe Salomão na PET11376/MT; Ricardo Villas Boas no REsp 1616893/MT; REsp 896041/SP.
A terceira linha defende que o empresário rural o é, pelo mero exercício de sua atividade rural de forma habitual e profissional com intuito lucrativo, abarcando assim a produção e circulação de bens e serviços de natureza agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa. Afirmam que esta interpretação está em consonância com o Código Civil de 2002, que ao adotar a teoria da empresa4 (expresso no seu art. 966) substituiu a dos atos de comércio, que não albergava uma infinidade de agentes econômicos como são os do setor imobiliário, prestadores de serviços e os do agronegócio. Assim, aquele que organiza a atividade em nome próprio, tomando o risco a ele inerente seria empresário rural independente de registro ou não. Este serviria, apenas, para lhe emprestar um regime jurídico diferenciado como é caso da tributação5: enquanto a pessoa física sofre incidência de 27,5% de IRPF sobre seu resultado em regime de caixa, o registrado recolheria IRPJ 8% do lucro no caso de ser Lucro presumido (a depender pode ser regime de caixa ou competência) ou até 34% daquele se for Lucro Real com regime de competência. Aduzem que o art. 970 também do Código Civil traz, inclusive, tratamento simplificado ao empresário rural, lhe facultando a inscrição, nos termos do art.971 do mesmo Codex, no Registro Público de Empresas Mercantis. Para essa corrente, o empresário “não rural” só qualifica sua atividade como regular caso se registre, o que não é exigível do “rural”. Interessante notar que para, estes o registro tem natureza meramente declaratória. A exigência do registro e ainda mais com no mínimo dois anos, contrariaria a finalidade da própria lei de RJ já que tais empresários, se mantém a atividade produtiva, postos de trabalho e fontes produtivas de riquezas. Partilham dessa corrente, o Enunciado 96, da II e 97 Jornada de Direito Comercial f; a Ministra Nancy Andrighi no REsp 1.193.115-MT, e o Moura Ribeiro, em recente evento6.
Pessoal e cientificamente, filio-me a terceira corrente porquanto entendo que a inscrição no Registro Público apenas declara fato ocorrido no mundo fenomênico. O exercício da atividade rural de forma organizada é um fato que não precisa de linguagem competente para constitui-lo. O produtor rural, hoje, inscrito ou não no Registro Público de Empresas Mercantis exerce sua atividade de modo organizado; emprega pessoas; compra insumos; paga tributos; toma créditos no mercado; vende seus produtos, e parece que por mera interpretação judicial foram alijados do direito de soerguer. Assim como nos enunciados 198 e 199 da Terceira Jornada de Direito Civil, não entendo que o registro na junta comercial é requisito de existência do empresário e sim, apenas de sua regularidade quando a lei assim exige, o que, deveras, não é caso do empresário “rural”. Em outras palavras: o empresário rural existe se exerce atividade empresarial rural e não é a referida inscrição que o qualifica como regular porque a própria lei assim não requer, o que impede o interprete de fazê-lo. Aliás nesse exato sentido, o Estatuto da Terra define em seu art. 4, VI, expressamente que é empresa rural o empreendimento de pessoa física ou jurídica, publica ou privada, que explore econômica e racionalmente o imóvel rural. Em que pese reconhecer que é entendimento minoritário, temos que exigir o registro, viola a própria finalidade da lei de RJ e ainda trucida o diploma especial apontado (Estatuto da Terra) bem como o próprio Código de Processo Civil. E o que é pior: exigir 2 (dois) anos desse registro vilipendia o próprio principio fundamental da legalidade. Ao criar requisito não previsto na lei, os operadores do direito prestam um deserviço ao sistema, estimulando o que este rechaça: a insegurança.
Alguns argumentos utilizados nos tribunais e muitas vezes por estes referendados são verdadeiros engodos que não podem passar despercebidos dos que conhecem a realidade. Alguns credores (mormente grandes bancos privados e tradings), para não terem que dispor do seu interesse individual em prol do coletivo, vem argumentando que no momento em que concederam crédito ao empresário rural pessoa física, o fizeram sob a condição especialíssima deste não pedir RJ, e por isso teriam praticado percentual de juros “menor”. Assim, concluem falaciosamente que por essa razão, sua confiança no sistema não poderia ser abalada. Oras, a pessoa física rural, é há muito7, legitimado ativo para pedir sua auto-insolvência ou mesmo, é legitimado passivo de um pedido de terceiro, o que, convenhamos é muito mais temeroso para o sistema econômico que a recuperação judicial. Assim, até mesmo em uma análise perfunctória, o argumento não se sustenta já que sabiam desde o inicio que o empresário poderia ser declarado insolvente. E mais: a taxa de juros aplicada resulta, basicamente na análise de três critérios: 1) do custo da captação da instituição; 2) do risco desse empréstimo e c) da margem que a instituição recebe para emprestar o dinheiro. Aquele primeiro ponto independe do empresário rural, e como cediço, está diretamente ligado aos riscos inflacionários; à alta do dólar e do receio que o Banco Central seja obrigado a aumentar a taxa básica para fazer frente a pressões inflacionárias. O segundo, depende, em realidade, da capacidade futura de pagamento do cliente e esta é medida, sobretudo, de acordo com a renda das pessoas físicas, O julgamento aqui é subjetivo e se tenta verificar se o cliente tem ou não capacidade de honrar a dívida (se trata de uma análidespercebido dos que conehcem a realidade. estes referendados sos , ao sistema n
se econômica financeira passando assim pelo desempenho, pelo mercado que atua, pela concorrência, pela administração e pelo histórico de como a devedor solve seus compromissos com fornecedores, bancos e clientes). A terceira e última, dispensa qualquer explicação uma vez que as margens nacionais são das maiores do planeta. Como se percebe, o fato de ser ou não pessoa jurídica, pouco importa na definição da taxa de juros imposta pelos agentes financeiros, que se não entendessem que sua atividade é altamente lucrativa, não a desempenhariam. Assim, tenho que esse credor sempre soube que o empresário rural pessoa física poderia ir a bancarrota (o que lhe pode ser ainda mais prejudicial), e lhe deu tratamento compatível. Portanto, este é um argumento inválido para qualquer discussão sobre o tema.
A verdade é que diversamente do que podem pensar operadores do Direito, o sistema econômico-financeiro se acomoda às regras postas, e só precisa que aqueles que as ditam e as interpretam com autoridade, possam fazer de modo sério e seguro, permitindo-lhes prever as consequências de quaisquer de seus atos.
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1 Disponível aqui.
2 Segundo a pesquisa supra, o Brasil fechou 2018 com valor corrente de R$6.800.000.000.000. Sendo que o agronegócio cresceu 0,1% em relação a 2017.
3 Disponível aqui.
4 COELHO, Fábio é certeiro ao afirmar que a teoria da empresa instaurou um novo modelo de disciplina privada.
5 Por óbvio, há outras diferenças, não citadas para não sairmos do tema proposto.
6 Ocorrido no dia 26 de setembro de 2018 no auditório do STJ e intitulado "O Agronegócio na Interpretação do STJ".
7 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. II, afirma que desde o CPC/73, o Brasil passou a utilizar um processo equivalente ao de falência para a pessoa física.
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*Samantha Rondon Gahyva é sócia do escritório Gahyva e Maldonado Sociedade de Advogados.