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Consulta pública reabre discussão sobre atualização da Lei de Direito Autoral

Fora do Brasil, a discussão sobre direitos de autor também está em evidência, com alguns países se movimentando para adequar a legislação ao cenário atual.

6/9/2019

Ao completar 20 anos, a Lei de Direito Autoral (Lei 9.610/98 ou LDA) está diante de uma nova consulta pública para reforma. Inicialmente previsto para o final de agosto, o prazo para contribuição foi estendido até 15 de setembro, dando mais tempo para que indivíduos e associações civis enviem suas sugestões. Aberta no final de junho, a consulta surpreendeu muitos estudiosos e profissionais da área, uma vez que o governo não havia, até então, apresentado qualquer intenção ou projeto de alteração da norma vigente.

Por outro lado, o Ministério da Cidadania (responsável pela consulta, por meio da Secretaria Especial da Cultura), recentemente, sinalizou qual seria a agenda por trás de eventual reforma, ao defender a necessidade de se atualizar a lei para lidar com as novas tecnologias e os novos modelos de negócios que surgiram ao longo das últimas duas décadas. Estariam na mira, portanto, os serviços de streaming de música, livros, filmes e seriados; plataformas de disponibilização e compartilhamento de conteúdo por terceiros; tecnologias de inteligência artificial, coleta de dados, impressão em 3-D e realidade virtual.

Na mesma linha, estão entre as sugestões de temas a serem incluídos na LDA, disponibilizada no formulário do Ministério (clique aqui), questões relacionadas às novas tecnologias digitais, como a responsabilidade dos provedores de aplicações de internet por infrações a direitos autorais. A lista aborda também assuntos não ligados diretamente à informática, como as limitações e exceções a direitos de autor, notadamente, as obras órfãs (isto é, aquelas cujo autor ou titular de direitos não pode ser identificado ou encontrado), e permissões legais de uso para museus, bibliotecas, arquivos e instituições educacionais e de pesquisa.

A consulta pública é o primeiro passo do governo federal para a construção de um anteprojeto de lei para reformar a LDA. Cabe lembrar que discussões sobre modificar a Lei de Direito Autoral vêm sendo feitas desde o final da década de 1990. Isso porque, publicada em 1998, a lei resultou de um projeto mais antigo, da década de 1980 e, portanto, antes do boom da internet. Além de ter nascido defasada, a LDA, desde sua origem, deixou de abordar (ou tratou superficialmente) pontos relevantes, como as obras por encomenda. Com o avanço da internet, as discussões sobre modernizá-la foram reacendidas, sem, no entanto, culminar em grandes alterações. Desde que entrou em vigor, a LDA foi submetida a apenas duas mudanças legislativas, em 2009 e 2013, que trataram, respectivamente, da obrigação de se nomear os dubladores nos créditos de obras audiovisuais e de dispositivos relacionados especificamente à gestão coletiva de direitos autorais.

Apesar de ter sofrido apenas modificações pontuais, as tentativas de reformar a LDA tiveram ao menos três momentos marcantes. Em 2004, Gilberto Gil, então ministro da Cultura de Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Fórum Nacional de Direito Autoral com objetivo de discutir com a sociedade a necessidade de se revisar a Lei de Direito Autoral. Em 2010, com Juca Ferreira no Ministério da Cultura, realizou-se uma primeira consulta pública para alteração da lei, que recebeu mais de 8 mil sugestões. A proposta foi enviada à Casa Civil, mas não prosseguiu. No ano seguinte, já sob gestão de Dilma Rousseff, a nova ministra da Cultura, Ana de Hollanda, estabeleceu outra consulta pública. O tema, no entanto, foi logo retirado da pauta do Executivo.

 

Em parte, o debate foi esvaziado pelas discussões acerca do Marco Civil da Internet, promulgado em 2014 (Lei 12.965). Isso porque o projeto da norma endereçava um dos principais pontos de atualização da legislação autoral às tecnologias digitais: a responsabilização dos provedores pela violação de direitos no compartilhamento de conteúdo. Todavia, o Congresso acabou optando por excluir do texto final a infração a direitos autorais (art. 19, § 2º), a qual seria regulada por legislação específica, que, por sua vez, nunca foi promulgada. Apesar disso, o Judiciário recorrentemente vem aplicando às obras artísticas, científicas e literárias a regra prevista no Marco Civil, isto é, de que o provedor só se torna responsável se descumprir decisão judicial que determine a retirada do conteúdo violador.

É importante compreender que a Lei de Direito Autoral está baseada em um tripé: protege o artista, ou seja, quem cria a obra e tanto do ponto de vista moral, quanto econômico; a empresa que comercializa as obras; e o usuário das obras (cidadão que quer ter acesso às criações e ao conhecimento, informação e cultura que elas difundem). Apesar de a legislação sempre ter tentado buscar equilíbrio entre estes três pilares, em 1998, o debate se pautava mais na polarização entre os dois primeiros: artistas e empresas. Este cenário começou a mudar a partir do ano 2000, quando o usuário passou a ser mais protagonista nas discussões acerca da regulação dos direitos autorais, em parte pelo avanço da internet.

Em paralelo à consulta atual, tramita, na Câmara dos Deputados, projeto de lei de autoria de Jandira Feghali, do PCdoB/RJ, que propõe uma reforma completa da LDA. Dessa forma, o projeto trata tanto da adaptação legal às novas tecnologias, como também da criação de novas limitações e exceções aos direitos autorais e da solução de pontos não previstos na norma de 1998, a exemplo das obras órfãs e criadas sobre encomenda. O PL 2370/19, enviado em abril, não tem relação direta com a consulta atual do Ministério da Cidadania e atualmente aguarda parecer do relator na Comissão de Cultura (CCULT).

Fora do Brasil, a discussão sobre direitos de autor também está em evidência, com alguns países se movimentando para adequar a legislação ao cenário atual. Entre o final dos anos 1990 e o primeiro decênio dos anos 2000, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) elaborou três tratados para regular os direitos de autor e conexos (isto é, direitos de intérpretes, produtores de fonogramas e empresas de radiodifusão), pensando-se nas transformações provocadas pela internet. Nenhum desses documentos foi ratificado pelo Brasil, ainda que a nossa LDA esteja alinhada com suas principais disposições. Interessante notar que a consulta pública ora proposta pelo Ministério da Cidadania pergunta se o Brasil deveria aderir a esse tratado — e, em caso afirmativo, se deveríamos recepcioná-los com reservas.

Na virada do milênio, os Estados Unidos promulgaram uma nova lei endurecendo a proteção autoral, com foco justamente nas novas tecnologias de compartilhamento. Em meados dos anos 2000, o Canadá emitiu nova legislação em sentido contrário: flexibilizando os direitos de autor em prol de outros princípios constitucionais, como o direito à educação, acesso ao conhecimento e informação e difusão da cultura. Já neste ano, a União Europeia aprovou diretiva para um mercado digital único, disciplinando o regime autoral em face das tecnologias da internet. A partir deste novo marco regulatório, os países-membros terão de criar legislações em linha com a diretiva. Dois pontos da nova diretriz causaram bastante polêmica: a chamada “taxa de link” (a obrigação de pagar a editores de publicação de imprensa pelo uso das notícias em mecanismos de agregação ou clipping, a exemplo do Google Notícias) e a responsabilidade dos provedores por violação dos direitos autorais, que, a depender do seu porte, terão de contar com ferramentas para identificar e barrar conteúdos infratores. 

Dado o caráter recente da iniciativa europeia e a relevância histórica daquele continente para o novo sistema de propriedade intelectual, é de se imaginar que a diretiva europeia paute eventual reforma da LDA no Brasil. Dessa forma, ainda não esteja clara a linha governo seguirá, há indicações de que seja na direção de se adaptar o regime de direitos autorais para as transformações provocadas pela internet e novas tecnologias digitais.

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*Luiz Guilherme Veiga Valente é advogado do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual

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