Migalhas de Peso

A utilização das provas ilícitas e a vedação constitucional

Aos doutos fica lançada a questão suscitada e, aqui defendida, para que se permita o debate à luz de uma interpretação conforme a Constituição e sem ofensa aos ditames da nossa Lei Processual Penal.

21/8/2019

O propósito deste texto não se destina a uma análise de artigos específicos da CF ou do CPP. Embora restrita à área criminal, busca-se uma interpretação que, segundo penso, abre um campo para debates sobre a matéria posta para discussão.

Ao meu sentir, a vedação da utilização das provas ilícitas, inclusive com a proibição de se lançar mão dos “frutos da árvore envenenada”, salvo na hipótese de fonte independente que permita se alcançar o mesmo resultado conclusivo das provas, sem a mácula da ilicitude, repito, ainda assim, não se esgota a questão sob o ponto de vista da interpretação da constituição e da lei processual penal.

Compartilha-se, sim, de um alerta dado pelo ministro Gilmar Mendes quando, em uma de suas manifestações, ponderou, em breve síntese, que não se poderia manter alguém condenado, julgado definitivamente (transito em julgado), e, em momento posterior, mesmo diante da ilicitude na obtenção da prova, restasse evidente que o condenado não fora o autor do crime pelo qual se lhe impôs a condenação. As provas obtidas ilicitamente, neste caso, revelam a autoria inconteste de terceiro pelo crime cuja condenação fora imposta ao réu, já condenado definitivamente.

A “mens legis” da norma constitucional precisa ser interpretada com cautela, permitindo-se, no campo criminal, se chegar à verdade real, contra a qual não se pode manter uma decisão condenatória.

O texto constitucional, sem dúvida, quando travada demanda judicial entre particulares, veda absolutamente e sem restrições a utilização de prova ilícita por quaisquer das partes. Creio que não se pode buscar interpretação diferente nesta hipótese, ainda que, num outro viés, talvez se pudesse chegar a uma conclusão diversa, mas que foge ao propósito deste texto.

Mas, o espírito do ditame constitucional, está voltado ao respeito às garantias de um devido processo legal, dentro de um estado democrático de direito.

Pode o réu, em sua defesa, para provar sua inocência, se utilizar das provas ilícitas produzidas nos autos, seja pela autoridade policial seja pelo Ministério Público?

Para mim, a resposta é desenganadamente (parafraseando o ministro Marco Aurélio), sim.

A prova ilícita foi produzida e incluída nos autos, a princípio, para buscar a condenação. Não se assiste a juntada no processo de prova ilícita pela Acusação para beneficiar o Réu. Mas, pode existir, dentro da gama de provas produzidas, ilicitamente, a evidência da absolvição do réu.

O Ministério Público não deixa de ter sobre seus ombros o princípio da oficialidade e da honestidade, ética e moralidade pública, como representante da sociedade, para o exercício do direito de “acusar”. Não cabe, dentre estes vários direitos e ônus que tem o Ministério Público, o fim de CONDENAR – a qualquer custo. Não é este seu atributo.

Nessa linha de raciocínio, que me parece a que se coaduna com o texto da Constituição e da própria função nobre do Ministério Público, não se pode argumentar para contrariar o quanto sustento, que o princípio constitucional (ou norma) e os ditames da lei processual não distingue e, portanto, a vedação da utilização da prova ilícita atinge de igual forma a todas as partes. Não caberia ao intérprete distinguir onde a lei não distingue!!!

Não é este o propósito do Direito Penal. Não cabe ao Ministério Público buscar condenação. Cabe a obrigação e o direito de acusar, sem abdicar de pedir Absolvição, ao final do exame das provas, se assim se revelar da análise dos autos.

Mas, ao réu, no seu direito amplo de defesa, na busca de sua liberdade, não pode ser vedado o direito de usar a prova ilícita para evidenciar sua inocência.

Não é crível, nem se coaduna com o fim do Direito, cerrar os olhos à busca da verdade real – produzida ou espelhada na prova ilícita – e se manter a condenação.

Autenticas que sejam – pois não se está aqui a defender provas falsas – mas, sim, provas ilícitas – podem e devem ser utilizadas pelo Réu para evidenciar que o “erro” do Judiciário - (em última instância – pois a decisão é do Juiz – da primeira até a última instância) - não pode prevalecer.

Em outras palavras, em nosso entendimento, a vedação da utilização das provas ilícitas não atinge o Réu, desde que autenticas.

Todavia, há que se ressaltar um aspecto relevante para o desate da questão posta para discussão.

E, nesta trilha, um aspecto necessita ser ponderado. A prova ilícita, agora, sim, em respeito ao que se denomina paridade das partes, não pode ser produzida ou colhida, por quaisquer das partes, sob pena de se autorizar a pratica de crime para a prova de outro crime ou, mesmo, para se provar a inocência do acusado.

Dito em outras palavras: não se pode valer, seja a Acusação ou a Defesa, da prova ilícita que foi produzida ou obtida pela própria parte que dela pretenda lançar mão.

Neste aspecto, segundo penso, cabe, sim, o tratamento isonômico que se deve respeitar no campo da produção e obtenção das provas. Não pode o Ministério Público ou a Defesa lançar mão de meios ilícitos na produção e obtenção da prova, seja para o exercício do direito de acusar seja no exercício do direito de defesa.

Assim, tanto a prova produzida ou obtida, de forma ilícita, pelos órgãos da administração, sujeitos ao controle do Ministério Público, quanto aquelas produzidas ou “encomendadas” pela defesa (desde que comprovada), jamais podem ser utilizadas, ainda que no campo penal.

A obtenção da prova ilícita, ou a produção da prova ilícita, sempre atenta contra os princípios básicos do Direito. Não se pode aceitar seja utilizada como prova aquela obtida, por exemplo, como decorrência da invasão de domicilio (portanto sem mandado). Seria, evidentemente, liberar a conduta ilícita dos agentes da administração. De igual forma, não se pode permitir que a Defesa se utilize como prova, aquela em que o réu, ou alguém por ele, a produz ou a obtém, ao arrepio da lei, para provar sua inocência.

Neste contexto, há de se respeitar a paridade das armas e o equilíbrio que necessita existir entre as partes em todo o processo – de qualquer natureza – em especial, no processo penal. 

Bem por isso, a interpretação, seja do texto constitucional e, por consequência, também da lei processual penal, necessita estar voltada para a busca da verdade real.

Por óbvio, não se está autorizando que sejam afastadas as diretrizes do processo, com direito de ambas as partes debaterem o conteúdo das provas ilícitas, para se permitir sua utilização pela defesa, como a prova da autenticidade, por ex. Mas, a verdade espelhada pela prova ilícita – quando em benefício do acusado ( e desde que por ele não tenha sido produzidas ou obtidas)– em respeito a busca da verdade real e para se afastar “erro” do Judiciário – não pode ser desprezada. Dela ou delas pode se valer a Defesa e evidenciar que a condenação foi equivocadamente prolatada.

Terá o Ministério Público o mesmo direito? Não, evidentemente. Ao MP cabe o ônus de fiscalizar a produção e a obtenção das provas, dentro dos estritos limites da lei, e acusar e se “obrigar” com a verdade real, pela função nobre de representar a sociedade.

E para representar a sociedade, a ele, MP, cabe buscar um desate verdadeiro: não lhe cabe, a qualquer custo, buscar a condenação do Acusado, possibilitando-lhe (ao MP) a utilização de provas ilícitas, por ele mesmo produzida ou por terceiros, uma vez que a ele (MP) cabe fiscalizar todo o processo de produção e obtenção da prova. A moralidade pública e a oficialidade desta Instituição impedem que se utilize de ferramentas ilícitas para protestar pela condenação.

E ao Judiciário, com razões de sobra, não se pode permitir que, mesmo diante da verdade real espelhada em provas ilícitas, venha a proferir édito condenatório, ciente de que a verdade real, espelhada por elas (provas ilícitas), revelam a inocência do acusado.

Pior, ainda, quando o próprio Juiz permitiu a produção ou obtenção da prova ilícita, mesmo que tenha agido de “boa fé”, conduta outra que não se admite de forma diversa daquele que tem o dever de imparcialidade. Não se concebe o “Juiz” que proceda de “má fé”. Não será mais “Juiz”, por ausência de imparcialidade.

Não se destina, este texto, a atingir qualquer situação específica de qualquer operação da Policia Federal ou Ministério Público, ou, ainda, para alcançar qualquer réu determinado. Mas, sim, caminhar por uma interpretação conforme a constituição, permitindo que a defesa, e somente a defesa, possa se utilizar das provas ilícitas (desde de que não as tenha produzido ou obtido, por si ou por terceiro, sob “encomenda”), para que o Judiciário venha a proferir decisão conforme a verdade real espelhada.

Para contrariar o que se sustenta, poder-se-ia argumentar, que a prova ilícita contamina o processo e implica em sua nulidade absoluta, em especial, se, afastadas as provas ilícitas, nada restar para se manter a condenação.

Estamos, neste aspecto, sob outro ponto de vista, que não se contraria, mas que foge ao debate proposto.

A questão posta para debates é outra. Provas ilícitas reveladas quando o processo está em tramitação e, ainda não fora alcançado pelo julgamento em todas as instâncias do Poder Judiciário, podem revelar a inocência do acusado.

É nesta circunstância que, segundo penso, pode a Defesa, por se tratar de prova, mesmo ilícita, dela se valer, (respeitadas as ressalvas já lançadas) com o fim de evidenciar que a condenação até então imposta, não pode prevalecer.

Para que a defesa possa se utilizar destas provas ilícitas, abrem-se os debates, onde sustentamos que não se pode manter um erro judiciário e se negar ao réu a utilização destas provas. Se o caso vai implicar em nulidade processual ou não, em absolvição do acusado ou não, dependerá do exame de cada caso.

Mas seja para resultar em um “decisum” de nulidade de todo ou de parte do processo, ou de absolvição, de pronto, fato é que a defesa tem, sim, o direito de se utilizar das provas ilícitas para demonstrar que a sentença ou acordão condenatório não refletem a verdade real, que fora revelada pelas provas ilícitas.

Já pecando pela repetição, mas para ressaltar o quanto defendemos, vale insistir na hermenêutica e trazer para os autos o espírito da Lei Maior e da Lei Processual Penal que escoram o direito à liberdade, como garantia mínima de que o encarceramento não pode ser mantido a qualquer custo.

Reside na distinção entre verdade formal e verdade real, a diferença essencial do Direito Penal com relação aos demais ramos do Direito.

A ilicitude na obtenção da prova pode até tipificar algum crime ou responsabilidade civil, mas não se presta a impedir que a verdade revelada, quando autêntica, seja utilizada pela defesa para absolvição do acusado, evidentemente, se outras provas, não contaminadas, permitirem o “non liquet”.

Cabe, ainda, o momento em que se pode autorizar a Defesa a lançar mão desta “prova ilícita” (com as ressalvas já lançadas neste texto).

Resta evidente, estando o processo em andamento, o direito da defesa não preclui. A qualquer momento pode a defesa lançar mão das provas, sejam constantes dos autos ou novas, vale dizer, superado o momento processual que poderia ser encartada no feito, pois, como provas novas, não encontram restrições na preclusão.

Se o feito já tiver sido encerrado, poderá a defesa, por se tratar de provas novas, buscar a nulidade do processo ou a absolvição do acusado, em sede de “habeas corpus” (quando a prova restar de pronto indubitável, já constituída,  sem necessidade de aprofundamento de seu exame) ou, em sede de revisão criminal.

Finalizando, aos doutos fica lançada a questão suscitada e, aqui defendida, para que se permita o debate à luz de uma interpretação conforme a Constituição e sem ofensa aos ditames da nossa Lei Processual Penal.

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*Feiez Gattaz Junior é sócio titular da Gattaz Sociedade de Advogados.

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