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A autonomia dos pais e a vacinação dos filhos

Pairando colidência entre o Estado e o indivíduo, deve prevalecer os interesses do ente que exerce maior cobertura protetiva. A vontade dos responsáveis não atinge a prole quando se tratar de tema em que há a obrigação legal cogente.

18/8/2019

Na última década vem-se notando um recrudescimento de epidemias que se encontravam controladas ao longo do tempo, em razão de não se atingir a média satisfatória de imunização, principalmente das crianças, com notável redução dos índices de cobertura, como é o caso, por exemplo, do sarampo que, só no estado de São Paulo, experimentou um aumento de 52,7% em apenas seis dias.1

Muitos pais, em razão de informações errôneas, equivocadas e sensacionalistas, e outros levados pela própria convicção, deixaram de realizar a cobertura vacinal dos filhos, em evidente flagrante de descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Em alguns casos, em razão de risco eminente, houve a necessidade da intervenção da Justiça com a finalidade de estabelecer um prazo determinado para que os pais fossem obrigados a providenciar a imunização dos filhos.2

O Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Geralmente produzem reações leves, de pouca duração e sem efeitos colaterais.

Assim, por ser um dever inerente ao poder familiar, de nenhuma valia a escusa dos pais. Pode até ser que a recusa dos genitores tenha alguma fundamentação contrária à imunização, porém a decisão do casal não é suficiente para afrontar o comprometimento familiar erigido no texto constitucional. Em razão desta determinação legal, os pais devem tomar todas as providências e praticar as ações necessárias para conferir a efetivação dos direitos referentes à saúde da prole.

Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente é incisivo ao afirmar que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades públicas”, de acordo com o artigo 14, parágrafo único, impondo uma multa de três a vinte salários de referência, que será aplicada em dobro em caso de reincidência, consoante o artigo 249 da legislação menorista.  Assim, as autoridades da saúde, após elegerem as melhores políticas públicas para o país, elencando um rol de vacinas recomendadas para as diversas idades das crianças, provocaram uma vinculação de obrigatoriedade por parte dos responsáveis. Tanto é que, para o controle do Estado e dos pais, criou-se a caderneta de vacinação, exigida em muitas oportunidades.

A não imunização, pela desídia dos genitores, não prejudica somente os filhos do casal. Exerce uma expansão difusa, abrangendo e colocando em risco toda uma comunidade. O filho não é propriedade exclusiva dos pais, como acontecia no Direito Romano que conferia ao pátrio poder o direito de vida e morte sobre eles (jus vitae et necis). Com o nascimento é ungido com a cidadania que confere a ele a personalidade civil de pessoa, tornando-o sujeito de direitos com todos os atributos legais, a começar pela dignidade prevista constitucionalmente. Biologicamente o filho carrega o DNA dos pais, porém é detentor de personalidade própria e conta com a tutela protetiva integral desde a tenra idade, período em que os seus representantes devem suprir todas as esferas de interesse para o seu bem estar.

Pode-se dizer que não prevalece, in casu, a autonomia de vontade dos pais porque o bem que está em jogo tem dupla proteção: uma, a individual, direcionada à saúde do próprio filho, conferindo a ele os cuidados necessários; a outra, de caráter difuso, é a voltada para a própria coletividade, que é o bem maior e o objetivo da realização da saúde pública. Pairando colidência entre o Estado e o indivíduo, deve prevalecer os interesses do ente que exerce maior cobertura protetiva. A vontade dos responsáveis não atinge a prole quando se tratar de tema em que há a obrigação legal cogente.

Cogita-se até mesmo de se inserir na legislação uma norma de apresentação obrigatória da carteira de imunização como pré-requisito para a matrícula escolar. Mas tal exigência não resiste ao crivo da constitucionalidade. A criança não pode ser prejudicada por não ter acesso à escola pela negligência dos pais. Seria duplamente penalizada.

Finalmente, cumpre salientar que o Ministério Público, dentre as atribuições conferidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é o órgão legitimado para promover as medidas de proteção às crianças e adolescentes cujos direitos sejam ameaçados, violados ou não reconhecidos, segundo preceitua o artigo 98 do estatuto menorista.

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1 Disponível aqui

2 Disponível aqui.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

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