Como se sabe, as sociedades do tipo limitada (reguladas pelo capítulo do Código Civil compreendido entre os artigos 1.052 e 1.087) compõem, em números, a maioria dos veículos de investimento utilizados no Brasil para exploração de atividade econômica.
A título de exemplo, na Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro - JUCERJA, de janeiro a agosto de 2019, foram constituídas 12.307 sociedades limitadas (LTDA), 11.413 empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI) contra apenas 191 sociedades anônimas (S.A). Em um cenário de 28.683 arquivamentos de veículos para exploração de atividade empresária (empresário individual, sociedades limitadas, sociedades anônimas, empresa individual de responsabilidade limitada, cooperativas, consórcio/ outras sociedades)1 no mesmo período, estamos falando de uma representatividade das sociedades limitadas equivalente a 43% do total de arquivamentos na JUCERJA. Somando EIRELI e LTDA, o percentual salta para 82%.
Assim, não há dúvidas de que o empresariado brasileiro, independente do volume financeiro movimentado, escolheu os veículos de responsabilidade limitada regidos pelo Código Civil (LTDA e EIRELI) como o formato de negócio mais confortável para explorar as atividades que movimentam a nossa economia.
Esse fenômeno se deve a alguns fatores, dentre os quais destaco: (i) a vontade de separação patrimonial entre os bens da pessoa que explora a atividade e os do seu veículo para a exploração (personalidade jurídica); (ii) regras de contabilidade, em princípio, mais simples do que as aplicáveis às sociedades anônimas; (iii) regime de publicidade mais brando, se comparado ao qual se submetem as sociedades anônimas; e (iv) a ideia de que sociedades anônimas são veículos criados para explorar grandes negócios, e sociedades limitadas, para pequenos e médios.
Vale dizer que as EIRELIs, criadas a partir da lei 12.441/11, que acrescentou, dentre outros, o artigo 980-A ao Código Civil, inovaram ao permitir que uma única pessoa (física ou jurídica), sem necessidade de se associar a terceiros, possa explorar um negócio mantendo a limitação de responsabilidade inerente às sociedades limitadas. Com isso, pretendeu-se eliminar a figura do “sócio fantasma”, que apenas empresta seu nome para o empreendedor satisfazer o requisito legal de pluralidade de sócios antes exigido para a constituição de sociedade com responsabilidade limitada.
Contudo, a regra não veio para facilitar a vida de todos. O caput do artigo 980-A do Código Civil exige que o titular da EIRELI integralize o capital social com dinheiro ou bens que equivalham ao valor de 100 salários mínimos vigentes à época de constituição da EIRELI e, ainda, que esse valor seja totalmente integralizado de imediato, não se admitindo a integralização do capital social ao longo do tempo, como é permitido aos sócios de sociedades limitadas e anônimas.
Embora ainda assim a EIRELI tenha conseguido a adesão dos empreendedores brasileiros, ela apenas serve àqueles que conseguem justificar perante a receita federal um patrimônio com lastro suficiente para adquirir uma empresa à vista no valor de 100 salários mínimos (hoje, por exemplo, isso significaria ter patrimônio justificável de R$99.800,002).
Outro problema enfrentado quando estamos diante de reestruturações societárias, planejamentos tributários e/ou sucessórios é que as juntas comerciais não admitem que as EIRELIs sejam as únicas sócias das sociedades subsidiárias integrais (artigos 251 a 253 da lei 6.404/76). Assim, quando uma companhia estrangeira, por exemplo, quer estruturar algum negócio Brasil através de sociedades anônimas, sempre precisa de um sócio para criar uma sociedade limitada e, então, esta LTDA ser a controladora da subsidiária integral (que não admite como único sócio sociedade estrangeira).
Esse problema, no entanto, caso a MP 881/19 seja convertida em lei, será sanado. O artigo 1.052 do Código Civil foi
Além disso, diferente da EIRELI, a sociedade limitada unipessoal não exige capital social mínimo, o que permite a qualquer pessoa explorar uma empresa sem se associar a terceiros e sem ter que comprovar a origem dos bens que tenham servido à integralização do capital social equivalente a 100 vezes o salário mínimo vigente. Isso é o fim da discriminação de pessoas com menor capacidade financeira e estímulo à regularização de suas atividades.
Outro ponto inovador trazido pelo PLC 17/19 e que promete revolucionar a sistemática das LTDAs diz respeito ao seu controle. Atualmente, o artigo 1.076 do Código Civil estabelece, na prática, que o controle de uma sociedade limitada só é garantido ao detentor de quotas que representem, pelo menos, 75% do capital social da sociedade, diferente das sociedades anônimas, que, se fechadas, podem ser controladas com ações que representem metade, no mínimo, do capital social votante (artigo 136 da lei 6.404/76) e, se abertas, esse percentual pode representar frações de capital social votante ainda menores.
O PLC 17/19 altera os quóruns do referido artigo 1.076 do Código Civil, passando a prever que as principais matérias que costumam caracterizar o controle de uma sociedade (nomeação e destituição de administradores, aprovação de contas dos administradores e a sua remuneração, alteração do contrato social, pedido de recuperação judicial) passem a ser aprovadas por sócios que detenham quotas correspondentes a, no mínimo, mais da metade do capital social.
Não sabemos como será a regra de transição, quanto às sociedades limitadas constituídas sob a égide da atual regra do Código Civil, mas fato é que, com isso, as sociedades limitadas voltam a ser sociedades cujo controle se exerce com maioria de capital e, não, com mais de 75%.
Outra novidade é a possibilidade de emissão de quotas preferenciais com o direito de voto restrito total ou parcialmente, a despeito do que já é facultado às sociedades anônimas. Em que pese ser possível a emissão de quotas preferenciais no atual regramento das sociedades limitadas, a doutrina majoritária entende que tais quotas, no entanto, não podem ter o direito de voto a elas atrelado suprido3.
Somado a tais novidades, uma das que mais chama a atenção para o PLC 17/19 é a autorização para sociedades limitadas emitirem debêntures4. Uma das principais vantagens das sociedades anônimas sobre as limitadas é a pluralidade de instrumentos de capitalização admitidos pela lei 6.404/76. Como veremos a seguir, com o PLC 17/19, às sociedades limitadas foi conferido o direito de emitir debêntures através de ofertas privadas.
Fato é que, hoje, em que pese a instrução 480/09 da CVM admita que outros tipos societários, diversos das sociedades anônimas, sejam emissores de valores mobiliários5, na prática, o maior veículo de exploração de negócios do Brasil - as LTDAs - não consegue realizar oferta de debêntures – o valor mobiliário mais negociado no mercado brasileiro.
Ilustrativamente, de acordo com dados da ANBIMA6 relativos a emissões domésticas (renda fixa, renda variável e híbridos) ocorridas no ano de 2018, de um volume de R$238.481 milhões, a emissão de debêntures representou mais de 62% dos instrumentos emitidos para capitalização das companhias, contra menos de 0,5% de emissão de ações (unindo ofertas iniciais de ações -IPO – e ofertas secundárias de ações – follow-on).
É gritante como, assim como as sociedades limitadas representam o maior número de veículos de investimento registrados no Brasil, as debêntures representam a maior fonte de capitalização das empresas brasileiras via mercado de capitais.
Como se vê, as debêntures – cuja natureza é de mútuo - são culturalmente muito bem aceitas pelo mercado brasileiro. Pelo lado do investidor, dentre outros motivos, um dos principais se deve ao fato de a debênture representar um crédito muitas vezes acompanhado de uma garantia. Pelo lado da companhia, se destaca o fato de a companhia receber aporte financeiro sem alterar a sua estrutura acionária, sem ter que realizar ofertas públicas de ação e sem precisar se submeter a contratos de empréstimos bancários muitas vezes pouco vantajosos para o negócio.
Se o PLC 17/19 for convertido em lei – e assim espera o mercado – os pequenos e médios empresários poderão se aventurar, passando a experimentar uma nova forma de financiamento, muitas vezes, das mais eficazes e menos impactantes no dia a dia da empresa. Ainda que as alterações sugeridas ao artigo 1.055 do Código Civil prevejam a possibilidade apenas de ofertas privadas de debêntures (ou seja, não serão lançadas em bolsa de valores ou mercado de balcão), ainda assim se revela como instrumento que pode ser oferecido a investidores habituais do mercado de capitais.
Vamos, muito provavelmente, testemunhar unicórnios vestidos de sociedade limitada e startups sem que para tanto precisem se transformar de sociedade limitada para sociedade anônima, para receber investimentos e aportes de investidores institucionais e fundos de investimento. É provável, também, que os famosos “mútuos conversíveis” comecem, aos poucos, a dar espaço a debêntures – por que não – conversíveis em quotas.
É importante ressaltar ainda que a possibilidade de emissão de debêntures por sociedades limitadas não servirá apenas para trazer a estas sociedades uma forma mais eficiente de financiamento e com menor impacto na sua estrutura decisória, mas, também, uma forma de tornar cada vez mais as sociedades limitadas organizadas e prontas para, quem sabe, uma abertura de capital dentro ou fora do país ou mesmo para receber aporte de capital estrangeiro.
Ao ofertar valores mobiliários no mercado de valores mobiliários, uma empresa fica sujeita a regras de compliance e de governança corporativa impostas tanto pela CVM e pela B3, quanto pelo próprio mercado. Isso significa dizer que as sociedades limitadas que resolverem se submeter à emissão privada de debêntures, visando investidores acostumados a investir em companhias submetidas a esses regimes, muito provavelmente serão cobradas por tais investidores a adotar algumas das regras de compliance e de governança às quais as companhias abertas estão sujeitas.
A tendência será criar, desde o projeto embrionário, empresas capazes de serem atrativas, com capacidade de prestar informação de maneira clara e direta ao investimento interno e estrangeiro. Capacitar os sócios e gestores de sociedades limitadas a, desde o início, aplicarem o modelo de gestão internacional, tornando as sociedades limitadas cada vez mais atrativas aos grandes investidores.
É a globalização das sociedades limitadas e a educação ao empresariado brasileiro para, desde cedo, incorporar a forma globalizada de administrar, gerir e financiar um negócio.
É o Brasil se desenvolvendo.
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1 Disponível aqui - acesso em 1/8/19
2 Com base no valor estabelecido pelo decreto 9.661/19.
3 Nesse sentido, vide Enunciado 35 da JUCERJA: “É permitida a criação de quotas de diferentes classes pela sociedade limitada, porém é vedado restringir o direito de voto.
Parágrafo único: Não é permitida a criação de quotas sem valor nominal; porém é permitida a criação de classes de quotas com valores nominais diferentes.”
4 Nesse sentido, o PLS 487/13 e o PL 1.572/11 já propõem a emissão de debêntures pelas LTDAs há alguns anos.
5 Artigo 1º, § 2º O emissor de valores mobiliários deve estar organizado sob a forma de sociedade anônima, exceto quando esta Instrução dispuser de modo diverso.
Art. 33. Os emissores que emitam exclusivamente notas comerciais e cédula de crédito bancário – CCB, para distribuição ou negociação pública, podem se organizar sob a forma de sociedade anônima ou sociedade limitada.
Parágrafo único. Além das formas societárias previstas no caput, emissores que emitam exclusivamente notas comerciais do agronegócio – NCA, para distribuição ou negociação pública, podem se organizar sob a forma de cooperativa agrícola.
6 Disponível aqui.
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*Mariana Maduro é advogada associada da área de Private Equity e Mercado de Capitais do Veirano Advogados e professora de Direito Societário e Mercado de Capitais.