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O estrangeiro não residente tem direito ao sursis?

Não há problema em relação ao tempo de duração da pena, já que “o prazo de residência para o imigrante em liberdade provisória será de até um ano, renovável por meio da apresentação de certidão expedida pelo Poder Judiciário que disponha sobre o andamento do processo”.

7/8/2019

O decreto-lei 4.865, de 23/10/42, proíbe a suspensão condicional da pena imposta aos estrangeiros que se encontrem no país em caráter temporário. Houve decisões no sentido da eficácia da regra de proibição mesmo após a Carta Política de 18/9/46, que declarou a igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 141)1. Com o advento do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815, de 19/8/80), a norma discriminatória chegou a ser tida como revogada, em face da matéria dos direitos e deveres do estrangeiro ter sido integralmente reformulada pelo Estatuto2. Após, esta lei foi revogada pela lei 13.445/17 (a Lei de Migração)3.

A rigor, contudo, até hoje não houve revogação expressa do decreto-lei 4.865/424. O que houve foi uma interpretação jurisprudencial relevante no sentido de que a norma era discriminatória – ao tratar estrangeiros visitantes de forma distinta da dispensada a estrangeiros residentes – e, portanto, não mereceria acolhida pelo ordenamento pátrio5. Apresenta-se, aqui, conclusão igual, mas por fundamentos um pouco diferentes.

A proibição emanada do decreto-lei 4.865/42 ainda está em pleno vigor formal. Assim, o magistrado que pretenda não aplicá-lo precisará registrar fundamentação adequada, como, p.ex., a que demonstra que a norma não foi recepcionada pela CF de 1988. Isso é plenamente possível: primeiro, sabe-se que, desde a reforma da parte geral de 1984, as hipóteses de cabimento do sursis foram quase todas esvaziadas diante do conteúdo do art. 77, III, CP, que admite substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito quando, antes, seria cabível a suspensão da pena. Ou seja, não se trata mais de instituto jurídico-penal de grande importância, suplantado que foi por medidas mais dinâmicas. Em segundo lugar, há uma série de outros institutos da execução penal brasileira que não são vedados (ao menos formal e expressamente) a estrangeiros não residentes, como, p.ex., a progressão de regime, a liberdade provisória, a saída temporária, o regime harmonizado etc. Sequer a suspensão condicional do processo é a eles defesa. A única proibição em vigor parece ser quanto ao sursis. Isso já autorizaria ao juiz declarar a antiga norma em questão não recepcionada pela atual CF, haja vista não ter recepcionado o decreto-lei porque ele viola a isonomia na aplicabilidade entre normas brasileiras em vigor. É dizer: não há lógica, hoje, para proibir o sursis a estrangeiros visitantes e não lhes proibir outros benefícios igualmente (ou mais) relevantes. A explicação é a de que não há, atualmente, razão alguma para proibir o sursis.

Além disso, o CP, art. 79, permite ao magistrado fixar condições não previstas em lei para serem cumpridas durante o período de prova, “desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do condenado”. Nada mais justo do que determinar a apreensão do passaporte e/ou a proibição de viajar sem autorização ao estrangeiro não residente que, porventura, deva responder a processo no Brasil6. Isso, por si só, já garantiria alguma eficácia à sentença, afastando o risco de fuga ou retorno ao país de residência do autor do fato.

Finalmente, lembra-se que o decreto-lei 4.865/42 fazia referência ao art. 25 do decreto 3.010, de 20 de agosto de 1938, cuja redação definia os “residentes temporários”: “a) turistas, visitantes em geral, viajantes em trânsito; cientistas, professores, homens de letras e conferencistas; b) representantes de firmas comerciais e os que vierem em viagem de negócios; c) artistas, desportistas e congêneres.” Atualmente, a Constituição equipara brasileiros a estrangeiros residentes no Brasil (art. 5º, caput). Diante disso, a conclusão mais fácil seria a de que estrangeiros não residentes (os “temporários”, como turistas, p.ex.), nunca poderiam ter direito ao sursis, pois não podem aqui residir. Mas não é essa a interpretação mais adequada, já que o decreto 9.199, de 20/11/17 – que regulamenta a Lei de Migração – estabelece que “o requerimento de autorização de residência poderá ter como fundamento as seguintes hipóteses: (...) a pessoa (...) esteja em liberdade provisória ou em cumprimento de pena no País” (art. 142, II, g). Não há problema em relação ao tempo de duração da pena, já que “o prazo de residência para o imigrante em liberdade provisória será de até um ano, renovável por meio da apresentação de certidão expedida pelo Poder Judiciário que disponha sobre o andamento do processo”, e, “na hipótese de imigrante sentenciado, o prazo de residência estará vinculado ao período da pena a ser cumprido, informado pelo juízo responsável pela execução criminal” (art. 159, §§ 1º e 2º). Basta aduzir que, se é admissível ao condenado à pena de prisão requerer residência para cumprir a pena, com mais razão tal direito poderá ser estendido ao estrangeiro que deva cumprir sanção mais leve (período de prova do sursis).

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1 Como se pode verificar pelo aresto da 2ª Câm. Crim. do TJSC, de 31.8.1978 (RT 524/432).

2 STF, em RTJ 117/1.032. Vide, em sentido contrário: STJ, HC 265295, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 17.4.13.

3 Trata-se do atendimento ao art. 11 da lei 6.964/81, que ordenava a republicação da lei 6.815/80, após haver promovido várias alterações em seu texto.

4 A informação oficial é a de que nunca houve revogação expressa. Governo do Brasil, Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em 4 de agosto de 2019.

5 Vide, p.ex. – não apenas por suas conclusões, mas pelos registros históricos dignos de nota – as seguintes decisões: TJSP, 2ª C. Crim, Agravo de Execução Penal 0117490-92.2013.8.26.0000, Des. Rel. Francisco Orlando, J. em 11.11.13; TJSP, 1ª C. Crim, HC 030227648.2011.8.26.0000, Des. Rel. Márcio Bartolli, J. em 16.4.12.

6 Essa é outra situação peculiar. O turista que tenha praticado crime no país provavelmente não estará mais aqui quando for proferida sua sentença. A menos que tenha respondido ao processo preso, certamente exercerá seu direito à defesa em liberdade (como é a regra) e no seu país de residência. Assim, na prática, será muito difícil aos órgãos de persecução brasileiros obter efetividade na execução da pena ou do sursis.

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*Gustavo Scandelari é advogado associado do Escritório Professor René Dotti.

 

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