Antagonicamente, o que se observa hoje em várias áreas da vida social é a busca pelo anonimato, das mais diversas formas e pelos mais variados motivos. É, de fato, curioso: na comumente chamada “era digital”, em que dados pessoais e informações da vida particular são constantemente expostas em redes sociais; em que a exibição da própria vida passa até mesmo a ser negócio lucrativo; em que o segredo das informações passa a ser cada vez mais improvável; ainda assim, há quem aposte – talvez com o que se poderia chamar de verdadeira fé – na possibilidade de encobrir, com segurança, até mesmo suas relações comerciais.
E aqui entra um instituto conhecido há tempos pelo ordenamento jurídico brasileiro, porém que parece estar a cada dia mais em xeque. Falo da Sociedade em Conta de Participação.
Longe da refinada discussão acerca de sua natureza societária ou de mero contrato de investimento, o que se passa a questionar – e o que se deve questionar – atualmente é a sua eficácia naquilo que sempre lhe foi atrativo, ou seja, o anonimato quanto aos sócios participantes, ou sócios ocultos.
Isso porque essa é a sociedade conhecida por não se revelar a terceiros que com ela negociem, de modo que aqui vemos a presença de dois tipos de sócios: o ostensivo, que exerce as atividades de caráter técnico, e entra em contato com terceiros, assumindo as responsabilidades do negócio; e o sócio investidor, que aplica capital e participa dos lucros da atividade, relacionando-se apenas com o sócio ostensivo.
Assim, o sócio participante assumiria uma posição oculta perante terceiros, dentre estes o próprio Estado, por conta de certos elementos, tais como: sua inscrição na Junta Comercial não constituir requisito para sua formação; não possuir órgãos de representação jurídica; não haver sede social; e não possuir nome próprio.
Nesse mesmo sentido, também não é necessário sequer que se estabeleça por escrito esse acordo, podendo ser verbal, contanto que resguardada a confidencialidade dos dados das partes.
Por conta dessas características, portanto, que essa modalidade de associação passou a ser vista como muito atrativa por muitos. Afinal de contas, é uma maneira de investir capital, participar de lucros, não assumir responsabilidades perante terceiros e, ainda, “não ser visto” nesse processo, ainda mais ao se considerar que quem atua com terceiros não é a sociedade em si, mas sim o sócio ostensivo.
No entanto, é fato que esse tipo de sociedade foi muito utilizado – e ainda o é – para fins fraudulentos, justamente por conta da confidencialidade de informações acerca do sócio investidor, que não aparece nas relações externas.
Por essa razão, a Receita Federal exige hoje que essa sociedade, ainda que sem personalidade jurídica e primando pelo anonimato do sócio oculto, seja inscrita no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ (IN 1.634/2016), de maneira a, assim, tentar impor um certo controle nessas relações.
Ocorre, no entanto, que esse fator, por si só, é preocupante.
Se o atrativo principal da formação dessa sociedade era justamente a possibilidade de que se pudesse firmar uma relação em que um indivíduo conseguisse capital suficiente para dar prosseguimento a um determinado projeto (sócio ostensivo), e que outro indivíduo pudesse financiar esse projeto, ainda que apenas em parte, e se beneficiar economicamente disso com um risco extremamente baixo (sócio participante), o que se fez foi aplicar uma considerável dose de insegurança quanto ao alcance desse objetivo.
A questão que se coloca aqui é, em um país em que inquéritos penais tem suas provas “vazadas” para jornais quase
Ao que parece, com o conhecimento e fiscalização dessas sociedades por parte da Receita Federal por meio de um número de CNPJ, o que antes era um acordo sigiloso e que interessava apenas às partes – ao passo que toda e qualquer responsabilidade para com terceiros recai apenas sobre o sócio ostensivo – passa agora a ser de conhecimento de mais um ente, externo à relação contratual. E que – para piorar! – não parece demonstrar garantia de confidencialidade plena.
Assim, é nesse contexto que devemos nos deparar com certas questões, como: até que ponto uma maior fiscalização estatal propicia um melhor ambiente negocial, eliminando fraudes, e até que ponto essa mesma fiscalização descaracteriza institutos já consagrados por nosso ordenamento jurídico. E, por fim, se realmente podemos confiar na aparente segurança jurídica que a regulamentação de institutos como esse nos passa, frente à vulnerabilidade cada vez maior de dados a princípio sigilosos e protegidos.
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*João Pedro Roque Centellas é advogado associado da Advocacia Hamilton de Oliveira.