É consabido que os direitos ao contraditório e à ampla defesa1 estão intrinsicamente correlacionados, representam direitos liberais de primeira dimensão reconhecidos pela Constituição da República como cláusula pétrea2 e visam, ao fim e ao cabo, conferir legitimidade à sentença penal, assegurando que o julgamento foi realizado com observância ao devido processo legal.
O direito ao contraditório, em síntese, é constituído por dois vetores, quais sejam, o direito à informação (pelo qual é oportunizado ao investigado tomar ciência da denúncia e dos indícios de autoria e materialidade colhidos pelo Estado acusação) e o direito à reação, que permite ao denunciado contrapor-se à versão acusatória via ampla defesa (autodefesa e defesa técnica).
Dissertando sobre o princípio do contraditório, Eugênio Pacelli prescreve que “(...) a doutrina moderna, sobretudo a partir do italiano Elio Fazzalari, caminha a passos largos no sentido de uma nova formulação do instituto, para nele incluir, também, o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma efetiva igualdade processual“3. Contraditório efetivo pressupõe, portanto, simétrica paridade entre os sujeitos processuais, que deve ser garantida pelo magistrado no curso do processo.
Por seu turno, “A defesa garante o contraditório e por ele se manifesta”4, já que somente a partir da ciência (informação) dos fatos narrados na denúncia é que o defensor pode reagir nos autos do processo (defesa técnica), expondo a versão do acusado e impugnando os fatos articulados pelo parquet.
Feitas essas considerações introdutórias, passa-se ao tema objeto deste artigo, propondo, ao final, a aplicação analógica de dispositivo do Código de Processo Civil como forma de (i) solucionar lacuna da legislação processual penal e (ii) prevenir eventual mácula ao contraditório quando da realização da audiência de instrução e julgamento.
Excetuando-se os delitos regidos por lei processual especial, após a instauração da ação penal por meio do recebimento da denúncia, o acusado é citado e transmite ao defensor (em sentido lato, incluídos defensores públicos e advogados) a sua versão dos fatos, indica testemunhas para serem ouvidas em Juízo e permite que a defesa técnica elabore uma estratégia processual, arguindo eventuais preliminares e requerendo possíveis diligências tendentes a servir de contraprova ao que se encontra carreado ao feito pelo Estado acusação (Polícia Civil/Federal e Ministério Público).
Apresentada a resposta e não sendo o caso de absolvição sumária5, chega-se ao momento da designação da audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que será produzida toda a prova testemunhal e oferecidas, via de regra, as alegações finais pelas partes.
E é aqui que reside o tema fulcral deste artigo, visto que não raras vezes a intimação do defensor acerca da designação da referida audiência se dá na véspera do ato, fato que, se por um lado, cumpre com a exigência formal da ciência da audiência, de outro, viola, do ponto de vista material, o princípio do contraditório, conferindo exíguo tempo de preparo para a defesa técnica e prejudicando, por conseguinte, que a reação do denunciado seja regularmente exercida.
Dissertando sobre a defesa penal, Renato Brasileiro de Lima prescreve que6:
Para que essa defesa seja ampla e efetiva, deve-se deferir ao acusado e a seu defensor tempo hábil para sua preparação e exercício. Entre as várias garantias que o devido processo legal assegura está o direito de dispor de tempo e facilidades necessárias para preparar a defesa.
O direito fundamental ao tempo mínimo para preparo da defesa penal encontra abrigo no Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos (incorporados ao ordenamento jurídico pátrio pelos decretos de 592/92 e 678/92)7, tendo sido, inclusive, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADPF’s de 395/DF e 444/DF como consectário do direito ao contraditório8.
Registre-se que de nada adianta prever-se abstratamente os direitos constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, se não conferir-se ao profissional legalmente habilitado tempo mínimo de preparo e estudo do caso que será examinado na referida audiência de instrução e julgamento, ato revestido de peculiar relevância e que irá repercutir diretamente no direito à liberdade do cidadão acusado da prática de infração penal.
Corroborando o raciocínio ora explanado, vale frisar que nem sempre o profissional que subscreveu a resposta (e que teve, portanto, contato com toda a prova colhida na fase inquisitorial e com as eventuais testemunhas arroladas pela defesa) é o mesmo que estará presente na audiência representando o acusado.
Neste ponto, colho lição do ministro Rogério Schietti Cruz que bem destaca a sensibilidade que se deve ter quando do exame de uma acusação criminal:
Justiça penal não se faz por atacado e sim artesanalmente, examinando-se atentamente cada caso para dele extraírem-se todas as suas especificidades, a torná-lo singular e, portanto, a merecer providência adequada e necessária.
Delineada a questão do tempo minimo para preparo da defesa penal como direito fundamental, passo ao exame de situação concreta que merece atenção por parte daqueles profissionais que atuam na área penal.
Especificamente quanto ao prazo mínimo entre a intimação do defensor e a realização da audiência de instrução criminal, tem-se que o Código de Processo Penal nada dispõe a respeito, razão pela qual sustenta-se neste artigo que, com esteio no art. 3º do CPP9, seja aplicada por analogia a regra do art. 218, § 2º, do CPC10, a fim de que haja um interstício de, no mínimo, 48 horas, providência que assegura a observância dos direitos ao contraditório (vetor reação) e à ampla defesa (defesa técnica).
Sobre o tema, colaciono julgado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso que, aplicando analogicamente a regra do art. 218, § 2º, do CPC, anulou audiência criminal na qual não foi observado o prazo mínimo de 48 horas entre a intimação da audiência e a realização do ato11.
Por fim, vale frisar que, no caso de acusado assistido pela Defensoria Pública, deve ainda ser respeitada a norma prevista no art. 128, I (in fine), da LC 80/9412, contando-se em dobro o prazo do art. 218, § 2º, do CPC, prerrogativa inserida pelo legislador em prol dos assistidos por órgão defensorial.
_____________________________
1 Art. 5º, LV, da CF
2 Art. 60, § 4º, IV, da CF
3 Curso de Processo Penal. 16. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. P. 43
4 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2014. P. 57
5 Art. 397 do CPP
6 Cf. LIMA, Renato Brasileiro de. Op.cit., p. 62
7 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (decreto 592/92):
Artigo 14 (...)
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (...)
b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;
Pacto de San José da Costa Rica (decreto 678/92):
Artigo 8 (...)
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...)
c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
8 1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Constitucional. Processo Penal. Direito à não autoincriminação. Direito ao tempo necessário à preparação da defesa. (...)
(ADPF 395, Relator(a): min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 21-05-2019 PUBLIC 22-05-2019)
(ADPF 444, Relator(a): min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 21-05-2019 PUBLIC 22-05-2019)
9 Art. 3o A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
10 Art. 218. Os atos processuais serão realizados nos prazos prescritos em lei. (...)
§ 2º Quando a lei ou o juiz não determinar prazo, as intimações somente obrigarão a comparecimento após decorridas 48 (quarenta e oito) horas.
11 APELAÇÃO CRIMINAL – EMBRIAGUEZ AO VOLANTE – SENTENÇA CONDENATÓRIA – IRRESIGNAÇÃO DA DEFESA – PRELIMINAR DE NULIDADE DO FEITO A PARTIR DA AUDIÊNCIA DESIGNADA PARA OFERECIMENTO DA PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO, ANTE A INOBSERVÂNCIA DE ANTECEDÊNCIA RAZOÁVEL NA INTIMAÇÃO DO RÉU PARA COMPARECER EM JUÍZO – ACOLHIMENTO – APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 218, § 2º, DO CPC AOS PROCEDIMENTOS CRIMINAIS, COM FULCRO NO ART. 3º DO CPP – NECESSIDADE DE RESPEITO AO PRAZO MÍNIMO DE 48 HORAS DE ANTECEDÊNCIA PARA INTIMAÇÃO DA PARTE PARA COMPARECIMENTO EM JUÍZO – FORMALIDADE NÃO OBSERVADA – RÉU DECLARADO REVEL E CONDENADO QUANDO FAZIA JUS À PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – FLAGRANTE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA – PREJUÍZO DEMONSTRADO – NULIDADE SUSCITADA NAS ALEGAÇÕES FINAIS – INEXISTÊNCIA DE PRECLUSÃO –,DECLARADA NULIDADE DO FEITO A PARTIR DA AUDIÊNCIA DESIGNADA PARA FORMALIZAÇÃO DA PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – PREJUDICADA A ANÁLISE DO MÉRITO DO APELO.
A despeito do silêncio da Lei Processual Penal quanto ao prazo mínimo de antecedência com o qual as partes devem ser intimadas para comparecer em juízo, é certo que, para que sejam efetivamente assegurados o contraditório e a ampla defesa, é indispensável que a intimação do acusado para comparecer em audiência seja feita com antecedência razoável, mormente em se tratando de ato designado para formalização de proposta de suspensão condicional do processo.
Assim sendo, diante da ausência de norma processual penal a respeito, aplica-se aos procedimentos criminais o disposto no art. 218, § 2º, do CPC/15, segundo o qual “quando a lei ou o juiz não determinar prazo, as intimações somente obrigarão a comparecimento após decorridas 48 (quarenta e oito) horas”, pois, a exigência de antecedência razoável para chamamento da parte a comparecer em juízo não constitui mera formalidade, mas, sim, conditio sine qua non para que haja efetiva possibilidade de exercício do contraditório processual. Precedentes. Preliminar de nulidade acolhida. Declarada a nulidade do feito a partir da audiência designada para formalização da proposta de suspensão condicional do processo. Prejudicada a análise das questões meritórias do apelo.
(TJ-MT - APL: 00027464020148110009329482018 MT, Relator: DES. GILBERTO GIRALDELLI, Data de Julgamento: 13/06/2018, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 20/06/2018)
12 Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer:
I – receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos;
_____________________________
*Rodrigo Casimiro Reis é defensor público do Estado do Maranhão. Especialista em Direito Constitucional.