Migalhas de Peso

Os burocratas do direito versus a boa e a má criatividade jurídica

A recuperação judicial tem sido uma arena na qual recentemente a má criatividade tem se destacado de forma ímpar, tendo se verificado casos de distorção gravíssima de institutos do Direito Comercial, sob o pretexto do atendimento do princípio da preservação da empresa e de sua função social.

2/8/2019

Os termos burocracia e burocrata, de acordo com o nosso Aurélio, significam o exercício da Administração Pública por funcionário, devendo este seguir mecanicamente as normas impostas pelo regulamento da Administração. Observe-se que atuação mecânica do burocrata foi posta como uma necessidade para que as relações da Administração Pública com o administrado sejam feitas segundo a lei, o que deve gerar segurança e certeza nesse ambiente.

No entanto, aqueles termos passaram a ter ao longo dos anos uma conotação pejorativa, porque se percebeu que a atividade administrativa pública se transformou em um suplício para os administrados, tendo seguido um modelo kafkaniano, que leva o administrado a percorrer labirintos intermináveis de exigências sem sentido, acarretando ineficiência absoluta e custos astronômicos. É relativamente a essa circunstância que se fala muito negativamente do chamado Custo Brasil.

A nossa intenção aqui não é a de destrinchar os meandros da Administração Pública, mas o de constatar que os seus defeitos burocráticos deletérios também se encontram no mundo jurídico. Boa parte dos operadores do direito trabalham de forma mecânica, repetindo velhos chavões que se encontram em má doutrina ou em julgados preguiçosos1, esquecendo-se do caso concreto e da evolução da sociedade, na qual se encontra mudança progressiva das instituições.

Não, não estamos defendendo que a tradição jurídica seja deixada de lado porque, especialmente no Direito Comercial, é nela que são verificados os seus fundamentos na construção dos mais diversos institutos, cuja essência deve ser preservada. Nem estamos defendendo a liberdade interpretativa irrestrita que se pode fazer em relação a normas abertas, muitas delas, por sua vez, destruidoras de fundamentos insubstituíveis. É o caso, por exemplo, da função social do contrato, tornada de forma desavisada como condição para o exercício da liberdade de contratar. E isto em detrimento da autonomia constitucional no plano da vontade, tendo se impingido ao contrato uma veste pública ou semi pública, encarregado ele sem o querer de consertar as mazelas da sociedade.

Dessa forma o operador do direito deve agir com criatividade, este o nosso segundo ponto neste artigo, mas tendo em conta que essa criatividade pode ser boa ou má. Vejamos o assunto, ficando restritos ao campo do Direito Comercial.

A criatividade boa é aquela que toma os institutos construídos no âmbito daquele ramo do direito para adaptá-los a novas realidades negociais, mas sem criar rupturas (desde que não tenham surgido mudanças ontológicas na base, o que na atividade mercantil é uma raridade), ou mudanças legislativas radicais, devendo tomar-se em conta a evolução das operações fundada dentro dos limites constitucionais a serem obedecidos pelo legislador. E este, sabemos aqui no Brasil, em muitas circunstâncias é o Executivo travestido de criador de normas por meio de medidas provisórias e de decretos impensados ou mal pensados.

Essa boa criatividade se expressa fundamentalmente na elaboração de novos contratos, frutos da autonomia privada, na qualidade de contratos mistos, ou seja, contratos que evoluem a partir de outros já conhecidos anteriormente, de forma a que novas necessidades da atividade mercantil possam encontrar o necessário respaldo por meio de tratamentos normativos atualizados. É o que ocorre diuturnamente e um exemplo não muito recente é inerente ao contrato de franquia, resultante da soma integrada de diversos outros contratos, dotado de novas pinceladas que o caracterizaram segundo uma diferente essencial.

A boa criatividade se expressa, ainda, no âmbito dos julgadores (Judiciário e árbitros) dentro de eventuais pendências entre as partes pelo reconhecimento de que as relações negociais são celebradas no âmbito dos contratos incompletos. Essa expressão alude ao fato de que não existe no mundo da realidade (exceto, em tese, nos contratos de execução bilateral à vista) algum contrato que tenha previsto em seu clausulado toda e qualquer circunstância capaz de resolver todas as questões que possam surgir na sua execução. E quanto mais longa for a execução do contrato no tempo, maiores serão as chances (podendo se dizer certeza) do surgimento de alguma circunstância não prevista e para a qual não foi, naturalmente, aparelhada qualquer solução.

Tendo que se resolver uma situação particular de contrato incompleto o julgador algumas vezes terá que ser criativo na busca da solução pertinente, devendo esta ser estabelecida em consonância com a história do instituto pertinente, observando-se a sua evolução ao longo do tempo e o espírito que revestiu as partes quando celebraram a operação. Tenha-se em conta que na atividade mercantil a experiência mostra que novos negócios são construídos mediante os fundamentos já existentes, adaptados às mudanças neles observadas, acrescendo-se algum elemento novo não discordante do todo, mas enriquecedor. Podemos parafrasear dizendo que também no direito novo nada se perde, nada se cria, tudo se aproveita. Ou seja, a coerência interna dos institutos é um fundamento essencial.

Do outro lado temos a má criatividade, cuja característica fundamental está na distorção dos institutos sobre os quais ela se aplica. E essa distorção se for muito intensa pode levar o doente à morte.

Em muitos casos a má criatividade decorre da atuação do legislador ignorante do campo da lei promulgada ou tomado de um viés jurídico/ideológico, de qual resulta a contaminação do instituto sobre o qual se volta a sua iniciativa, causada pela introdução de corpos estranhos que o levam à ineficácia relativa ou plena. Nesse plano nós conhecemos leis que não pegaram em vista do completo desacerto do seu objeto com a realidade negocial, no caso do Direito Mercanti. Por exemplo, a idealização dos grupos societários de direito foi feita de forma incompleta, por melhor que tenha sido a intenção do legislador e sua utilização é nula.

Outro defeito inerente à má criatividade está na concepção voluntariosa do legislador, o qual pensa que basta baixar uma lei para que o problema a ela correspondente estará automaticamente resolvido. Segundo essa concepção todos os destinatários obedecerão a lei de forma absolutamente passiva, sem qualquer resistência. Quando o ambiente é o de uma democracia o voluntarismo jurídico nada resolve. Basta lembrar o que tem acontecido com as normas editadas para reduzir as taxas de juros nas operações de crédito e o preço de mercadorias. Todas elas tiveram o cemitério normativo como o seu destino final, mas os efeitos foram tremendamente perniciosos

Negócios esdrúxulos também têm se erigido sobre a base da má criatividade. No mais das vezes eles são estruturados para o prejuízo da parte que não participou de sua elaboração ou nela teve um papel secundário. É claro que essas operações quase sempre se transformarão em uma pendência judicial ou arbitral, surgindo para o prejudicado um custo desnecessário e muitas vezes insuportável. E um problema grave se verifica quando o julgador compra sem avaliar devidamente a má ideia que deu origem àquele negócio.

Muito grave se coloca a má criatividade na esfera do Judiciário e, tendo em conta a eventual formação de uma jurisprudência que acate os seus resultados, o prejuízo para o Direito Comercial nos institutos correspondentes para os seus usuários é certo e definitivo. Um exemplo com o qual temos trabalhado é o do endividamento do produtor rural, que tem obtido o benefício da recuperação judicial sem o atendimento de norma fundamental que tem caracterizado historicamente esse ramo do direito, qual seja o do caráter constitutivo dos atos de registro do comércio.

Aliás, a recuperação judicial tem sido uma arena na qual recentemente a má criatividade tem se destacado de forma ímpar, tendo se verificado casos de distorção gravíssima de institutos do Direito Comercial, sob o pretexto do atendimento do princípio da preservação da empresa e de sua função social. Do jeito como as coisas vão, essa função social tem sido aplicada de forma tão ampla que, antecipadamente, podemos dizer que ela beneficiará marcianos quando a primeira nave terrestre chegar no seu planeta para ali se estabelecer uma colônia.

Um dos efeitos da má criatividade no campo acima é que garantias não são mais garantias, tendo se tornado um mero enfeite na Árvore de Natal das empresas recuperandas, sob as quais somente são encontrados presentes para os devedores. Com muita razão, claro, porque os credores não foram meninos bonzinhos e, por isto, Papai Noel não os contemplou. Voltaremos a este assunto qualquer dia.

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1 Julgados preguiçosos são, por exemplo, os feitos mediante a utilização automática de sentenças anteriores, em relação às quais o julgador não se aprofunda no estudo do caso concreto. Também dessa natureza são as decisões fundamentadas em enunciados, fruto do trabalho de lobbies durante convescotes judiciários periodicamente organizados e contra os quais este autor tem sistematicamente se insurgido porque eles passaram a ser aplicados no patamar superior como súmulas.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.    of. Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

 

 
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