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A suspeição do juiz Moro

Anularem-se processos sem que se demonstre em que ponto ou pontos tais conversas prejudicaram os réus, influindo em sua condenação, significaria garantir a impunidade dos condenados e aí, sim, anular a finalidade e a relevância da justiça.

29/7/2019

É axiomático ser a imparcialidade requisito fundamental de um magistrado. “Juiz parcial” é contradição nos termos, típico oxímoro ético. Pois bem. Admitindo-se, para argumentar, a autenticidade das conversas entre o então juiz Sergio Fernando Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol, assim como a possibilidade -- apesar do modo criminoso com que foram obtidas -- de sua utilização como prova da pretensa suspeição do juiz, objetivando, entre outros fins, anular processos por ele conduzidos e nos quais proferiu sentenças condenatórias, cabe analisar-se se tais conversas caracterizariam fatos configuradores de parcialidade. Parece-nos negativa a resposta. Vejamos: 

Dispõe o art. 564, inciso I, do Código de Processo Penal (CPP) que a nulidade ocorre, entre outras hipóteses, quando houver suspeição do juiz, e o seu art. 254, inciso IV estabelece as hipóteses de suspeição, entre elas a retratada no inciso IV (aconselhamento de qualquer das partes). Na esfera penal, esse aconselhamento, como é claro, acarretaria a anulação se resultasse violação do devido processo legal. No entanto, até agora não consta tenha havido qualquer aconselhamento por parte do juiz. Em mais nenhum outro inciso do artigo 254 do CPP a conduta do juiz poderia ser enquadrada, relevando observar que se trata aí de rol taxativo, impossível de ser ampliado.

É significativo atentar para o fato de que o sistema processual penal alberga o princípio que impede o reconhecimento de nulidade sem ocorrência de prejuízo (“pas de nullité sans grief”). Encontra-se revelado na norma do art. 563 do CPP, segundo o qual “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”.

Não há, portanto, pelo menos por ora, nenhum elemento fático que possa configurar parcialidade do juiz no caso em exame. Concluir-se pela existência de suspeição derivada das conversas do juiz com o procurador configura um sofisma a partir de premissas errôneas, e que a lógica formal classifica como ignorância do assunto (“ignorantia elenchi”), consistente na argumentação de quem ignora o assunto em pauta, ou trata de matéria que não está em discussão, isto porque, das conversas havidas, nada se extrai, pelo menos até o presente momento, que pudesse ter alterado a verdade dos fatos apurados ou prejudicado o direito dos réus ao devido processo legal, consistente no conjunto de garantias processuais, aperfeiçoado ao longo da história, mercê de um movimento civilizatório contínuo, e que protege todos quantos submetidos a processos de qualquer natureza, principalmente os penais.

 

O art. 8° do Código de Ética da Magistratura declara que magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, exatamente o modo como o Juiz Moro se comportou nos processos em relação aos quais se reclama. Basta a leitura de suas sentenças nesses casos para capacitar-se disso. Por outro lado, não deflui das conversas vazadas nada que denote favoritismo, predisposição ou preconceito, figuras enumeradas nesse mesmo artigo como caracterizadoras de parcialidade.

 

Se houve algum aconselhamento do juiz ao procurador, o que se admite para argumentar,  sua finalidade não seria a de prejudicar qualquer direito dos réus, mas a de velar para que a máquina da justiça funcionasse com eficácia, o que revelaria apenas diligência, zelo e cuidado no cumprimento de sua alta missão constitucional, mais elevada ainda em razão da enorme e gravíssima responsabilidade pelo julgamento de delitos praticados por organizações criminosas que, como público e notório, afetaram gravemente não apenas as finanças, mas a própria integridade de instituições nacionais, organizações essas formadas por empresários de grosso calibre, funcionários adrede nomeados por conhecidos próceres da República  para ocuparem cargos em empresas públicas e de economia mista a serem rapinadas, e certos políticos altamente experientes no arrombamento dos cofres públicos,  cujo poder de obstrução da justiça, de manipulação de testemunhas, de destruição de provas materiais, enfim, de alteração da verdade dos fatos, e de procrastinação do andamento processual, a fim de alcançar a prescrição da punibilidade, é de público e notório conhecimento. Aliás, a própria invasão da privacidade alheia, no caso, de integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, mediante a prática do crime de invasão de dispositivo informático, seguido da divulgação do conteúdo obtido, é prova eloquente do seu modus operandi.

 

Também é muito claro que o que mais desejavam -- e certamente continuam desejando --, os integrantes de tais organizações, submetidos à competência jurisdicional da 13ª. Vara Federal Criminal do Paraná, era e continua sendo desaforar os processos, a pretexto de submetê-los ao “juiz natural”, mas imaginando, na verdade, encontrar juízes menos preparados para a análise da complexidade das operações de lavagem de dinheiro, e que, talvez por isso, não viessem a tratar com o necessário rigor a criação de incidentes processuais artificiais e a utilização de argumentos falsos, tudo visando a alcançar o desideratum da prescrição. Os que abusam do direito de defesa detestam juízes rigorosos e conscientes de sua alta missão constitucional, uma vez que estes, obviamente, cortam cerce as tentativas de alteração da verdade e as táticas procrastinatórias. A propósito do tema, é importante lembrar que, de acordo com o art. 20 do Código de Ética da Magistratura, cumpre ao magistrado velar para que os atos processuais se celebrem com a máxima pontualidade e para que os processos a seu cargo sejam solucionados em prazo razoável, reprimindo toda e qualquer iniciativa dilatória ou atentatória à boa-fé processual.

Incontestável que o direito de defesa é sagrado. O autor destas linhas, advogado há 50 anos, é e sempre foi defensor intransigente desse direito e, consequentemente, da importância, relevância e inafastabilidade da Advocacia, a qual, aliás, deve sempre andar em pé de igualdade com os demais partícipes do processo (Juiz e Ministério Público), em termos de respeito e de dignidade, mesmo porque não há hierarquia entre eles. Mas, deixando hipocrisias e cinismos de lado, uma coisa é o direito de defesa, exercido com zelo, determinação, coragem e vigor, dentro dos parâmetros do direito; outra, o abuso desse direito, cuja designação correta é “chicana”, a qual, em recursos e outras medidas impetradas perante cortes “ad quem” sempre se tenta cinicamente mascarar com alegações de violação ao devido processo legal, as quais, na maioria dos casos, não apresentam o menor fundamento jurídico e só servem para fins procrastinatórios. 

O que os integrantes das organizações criminosas menos desejavam – e continuam não desejando -- era terem à testa dos processos juízes atentos, preparados, conhecedores dos métodos por elas utilizados, cônscios de suas responsabilidades institucionais, e que não se deixassem enredar por maquinações e mentiras. Tenha-se em linha de conta, demais disso que, embora o titular da ação penal seja o Ministério Público, impende ao juiz o dever de zelar pela proteção do interesse público que, no processo penal, apresenta dupla caracterização: de um lado, a exigência de que não haja violação ao devido processo legal, sendo incontestável que, no rol das garantias processuais também devem ser incluídas aquelas estabelecidas no art. 156 do CPP, por força do qual a prova da alegação incumbe a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz, de ofício, I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; e II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Entendo que essa norma decorre do princípio do devido processo legal, uma vez que a atuação probatória de ofício pode vir a ser benéfica tanto a quem acusa como a quem se defende. E simplesmente por se aprofundar no exame dos fatos, exigindo, de ofício, a realização de uma ou outra prova, autorizado legalmente a tanto, não se pode acoimar o juiz de parcial pela parte a quem a prova compromete.

E, se o devido processo legal deve ser rigorosamente respeitado, como sagrada conquista iniciada na Inglaterra nos idos de 1215, saliente-se, de outro lado, que o interesse público em que os processos penais atinjam suas finalidades e a justiça se faça de modo célere não o deve menos. É em face da necessidade do equilíbrio entre esses dois valores que deve ser apreciada a conduta do juiz Moro, assim como as conversas de cujo teor alguns menos avisados, ou outros mal-intencionados, procuram extrair indícios a partir dos quais pretendem concluir por sua suspeição ou parcialidade.

 

Anularem-se processos sem que se demonstre em que ponto ou pontos tais conversas prejudicaram os réus, influindo em sua condenação, significaria garantir a impunidade dos condenados e aí, sim, anular a finalidade e a relevância da justiça.

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*Texto atualizado em 29/7/19 às 13h35.

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*Lionel Zaclis é doutor e mestre em direito pela USP, advogado do escritório Azevedo Sette Advogados.

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