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O problema dos honorários advocatícios na lei de improbidade administrativa

O tema deve ser olhado com mais zelo, primeiro porque, processualmente, tratam-se de ritos distintos, sem previsão expressa de aplicação, mesmo subsidiária, da lei de ação civil pública à lei de improbidade administrativa. Mas, sobretudo, porque, vê-se um constrangimento ao sistema jurídico, no uso político das ações de improbidade administrativa.

10/7/2019

Questão pouco debatida, mas de grande importância prática é o regramento sobre honorários advocatícios nas ações de improbidade administrativa. A lei 8.429 de 2 de junho de 1992 trata dessas ações, dispondo inclusive de seus aspectos processuais. É que há um rito próprio para as ações que versem sobre o tema. Apesar disso, o diploma nada menciona a respeito da questão dos honorários advocatícios.

 

A lei de improbidade administrativa trata a respeito da legitimação para a ação, conferida ao MP e à pessoa jurídica interessada (artigo 17, caput). A prova e a causa de pedir em tais ações também têm delimitação própria, pois exige-se “documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade” (artigo 17, § 6º).

 

O rito caracteriza-se pela necessidade, para o processamento da ação, de uma notificação ao demandado, que pode oferecer manifestação por escrito, antes do recebimento da petição inicial (artigo 17, § 7º). Isso porque o juiz pode, de plano, rejeitar a ação se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita. Somente se superada essa fase, a petição inicial será recebida, procedendo-se a citação do demando, que, só então, conforma o polo passivo da ação, tornando-se réu.

 

Ao lado da lei de improbidade administrativa está a lei 12.846 de 1 de agosto de 2013, esta chamada “Lei de Combate à Corrupção”. Juntas tutelam, na esfera cível e no caso desta última também na esfera administrativa - portanto, em ambas sem exclusão da possível responsabilização penal pelos mesmos atos -, o interesse público na proteção do princípio da moralidade, disposto expressamente no caput do artigo 37 da Constituição da República, dentre os princípios jurídicos regentes da administração pública.

 

A lei de improbidade administrativa enuncia penalidades destinadas, prioritariamente, às pessoas físicas; enquanto a lei de combate à corrupção enuncia penalidades destinadas, prioritariamente, às pessoas jurídicas. Juntas formam o que se convencionou chamar de um microssistema de tutela da moralidade pública.

 

Noutro giro, a precursora no direito positivo brasileiro e marco normativo na defesa dos diretos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos foi a lei de ação civil pública, lei 7.437 de 24 de julho de 1985, destinada a tutela da “responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.

 

Pois bem, guardada a enunciação pioneira promovida por este último diploma, tem-se que a especialidade de cada uma das leis sobrepõe-se, por obvio, na aplicação da lei de 1985.

 

A lei de combate à corrução dispôs em seu artigo 21 que “Nas ações de responsabilização judicial, será adotado o rito previsto na lei 7.347 de 24 de julho de 1985”. Foi expressa em dizer que o rito adotado para o processamento em sejam aplicadas as normas materiais ali dispostas é aquele previsto na lei de ação civil pública.    

 

Ou melhor, a lei 12.846/13, quando aplicadas sanções na esfera judicial – isso porque, como dissemos, esse mesmo diploma destina-se também a normatizar de sanções administrativas -, não deixa dúvida da aplicação da lei de ação civil pública, por disposição expressa do legislador, sem qualquer ressalva.  

 

Por outro lado, a lei de improbidade administrativa - lembremos: de tutela da moralidade com sanções voltadas às pessoas físicas - não dispõe da aplicação da lei de ação civil pública, 7.437/85, sequer de maneira subsidiária.

 

O que vê-se, entretanto, na prática, é a ação de improbidade administrativa ser impropriamente nomeada de “Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa”, com a aplicação, sem previsão legislativa, do regramento de 1985.

 

 Então, a lei de ação civil pública vem sendo aplicada nas ações de improbidade administrativa, erroneamente, quanto ao regramento de honorários advocatícios.

 

Tem-se construído norma jurídica com suporte na redação do artigo 18 da lei 7.347/85, que enuncia: “Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais”.

 

A vedação ao recebimento e, por simetria, ao pagamento, de honorários advocatícios no caso do MP decorre, antes, de cláusula geral de sua atuação: a lei Orgânica Nacional do Ministério Público, lei 8.625/93, é expressa em dizer da inexistência de honorários advocatícios para seus membros (artigo 44, inciso I). A norma não sofre qualquer ressalva e impõe-se em toda atuação do órgão, portanto, também para as ações de improbidade administrativa.

 

Agora, pontuemos outro aspecto antes de seguir no raciocínio: lembramos que o direito é um sistema fechado, é um objeto cultural caracterizado por uma gramaticalidade própria, porque tem linguagem só sua, que funciona através de formalidades que o habilita para o exercício de certas competências públicas.

 

O que se tem visto, então, - esse o ponto onde queríamos chegar -, é o uso da ação de improbidade administrativa como mecanismo de atuação política - esta já outra linguagem, não pertencente ao direito, mas que pode tocá-lo, desde que “traduzida” validamente ao sistema jurídico – fomentada em razão da erronia aplicação da norma de “isenção” de honorários advocatícios, com suporte na lei de ação civil pública, quando da atuação dos legitimados para a propositura da ação de improbidade como “pessoa jurídica interessada”, ao lado do MP, conforme prevê o artigo 17 da lei 8.429/92.

 

As pessoas jurídicas interessadas são mais comumente entes públicos, dito em termos de volume de atuação nesse sentido, prefeituras municipais, e quando da troca de gestão política, o combate à corrupção não raras vezes é cena, na verdade, de simples perseguição.

 

Lembramos, por zelo, do intocável argumento do acesso à justiça, norma de índole constitucional, para dizer que não é dela que tratamos aqui. O tema encontra abrigo na boa-fé objetiva no bojo do processo judicial.

 

Quando, nos termos da lei, pessoas jurídicas interessadas se valem de ações de improbidade administrativa para agir politicamente, sem ônus financeiro, em razão da inexistência de honorários advocatícios em seu desfavor, mas pleiteando, via de regra, condenação de honorários em favor de seus procuradores, tudo sem suporte em norma jurídica, vê-se, então, a lesiva comunicação entre sistema político e sistema jurídico.

 

O problema está também em que, nesses casos, atribui-se às ações de improbidade um valor da causa propositalmente desarrazoado para dificultar (ou impedir) o acesso ao judiciário pelo lado da defesa, quando precisa arcar com elevadas custas processuais (notadamente: custas recursais).

                                        

Registre-se, para tais casos, a natureza da responsabilização dos atos estatais, porque a norma de exclusão dos honorários advocatícios pela lei da ação civil pública - ainda que fosse aplicável - se dá em favor da defesa do interesse público, mas a violação deste, representada pela má-fé, deve ser percebida também como ato ilícito praticado pelo Estado - incidindo, para tais hipóteses, a previsão expressa de conduta de má-fé disposta no artigo 18 da lei 7.347/85, que autoriza a cobrança dos honorários contrários aos legitimados para a ação.

 

Nesse sentido, a inovação legislativa na lei de introdução às normas do direito brasileiro, pela lei 13.655/18, trouxe uma norma de reforço ao comando constitucional do artigo 37, § 6º, segundo o qual, o Estado responde por danos causados a terceiros, “assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” e, agora também como norma geral disposta no artigo 28 da LINDB, qualquer agente público “responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.  

 

Parece-nos, enfim, que o tema deve ser olhado com mais zelo, primeiro porque, processualmente, tratam-se de ritos distintos, sem previsão expressa de aplicação, mesmo subsidiária, da lei de ação civil pública à lei de improbidade administrativa. Mas, sobretudo, porque, vê-se um constrangimento ao sistema jurídico, no uso político das ações de improbidade administrativa.

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*Marília Barros Xavier é mestre e doutoranda em direito do estado pela PUC/SP. 

 

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