O processo de certificação de imóveis rurais no Sistema SIGEF/INCRA gradualmente se impõe perante o registro de imóveis e modifica os paradigmas da tradição e das regras do Direito Registral brasileiro. A última mudança está contida na recente lei 13.838. O efeito legal mais relevante da nova lei foi consolidar a natureza declaratória da averbação dos polígonos dos imóveis rurais na matrícula respectiva.
A lei 13.838 dispensou a anuência entre confrontantes em procedimentos de certificação de georreferenciamento de imóveis rurais perante o INCRA e posterior averbação no Registro de Imóveis. A mudança consolida evolução legislativa (Figura 1) introduzida pela lei 10.267, no ano de 2001.
O procedimento de certificação de georreferenciamento do imóvel rural processado perante o Sistema SIGEF/INCRA tem natureza declaratória. O profissional habilitado insere no sistema os dados cadastrais dos imóveis, o que inclui as coordenadas dos vértices que formam o polígono da área. Este ato cria a posição poligonal do imóvel na superfície terrestre, o que impede a sobreposição. Em seguida, o polígono certificado é averbado no Registro de Imóveis, o que gera nova matrícula.
Este procedimento é unilateral e está baseado na confiança, capacidade e responsabilidade técnica do profissional que levanta o polígono, analisa o registro e insere os dados. O efeito imediato da averbação da certificação é atestar que naquele polígono não existe sobreposição, o que resulta em certa presunção de conformidade entre a matrícula, a área certificada e a realidade ou verdade física do imóvel. No entanto, esta presunção não cria direito que possa ser oposto a terceiros. Neste ponto, surge a diferença e a mudança em relação ao sistema tradicional.
Na nova sistemática, a eficácia erga omnes da averbação do polígono do imóvel rural na matrícula é substituída pelo ato declaratório de certificação do polígono sem sobreposição. O ato, portanto, não tem o efeito registral usual de valer contra terceiros.
Os motivos que deram causa à recente mudança no procedimento estão expressos com muita clareza nos anais do Congresso Nacional.
A origem da lei 13.838 é o projeto de lei 7.790/14, Câmara dos Deputados, convertido no Senado ao número PLC 120/17, de autoria do então deputado Irajá Abreu, hoje senador. Na defesa do projeto, o senador assim explicou a motivação da proposta legislativa1:
“Imagine você, um produtor de boa-fé, que fez todo o procedimento dentro da legalidade, depois que chega ao cartório, precisar ir atrás dos vizinhos e não localizar o vizinho – o vizinho mudou de Estado, mudou de país. Às vezes, você tem uma diferença de ordem pessoal com o vizinho. O vizinho, por má-fé, não assina a carta de confrontação. O que acontece? Você fica refém da boa vontade dos vizinhos e não pode ter o seu georreferenciamento reconhecido pelo cartório competente. Portanto, esse projeto tem apenas este cunho: o da simplificação, o da desburocratização do georreferenciamento. É uma medida importante porque vai destravar milhares de projetos em todo o Brasil.”
O parecer2 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania ao PLC 120/17, assinado pelo senador Antonio Anastasia, examinou a matéria com o enfoque mais jurídico e situa muito bem o conflito de interpretação existente, sobretudo no âmbito das corregedorias:
“Para o § 3º do art. 176 da lei de Registros Públicos, essa identificação georreferenciada do imóvel deve ser feita por meio de um memorial descritivo subscrito por profissional habilitado com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART. O texto é omisso acerca da necessidade ou não de haver anuência expressa dos vizinhos confrontantes. Diante dessa omissão, vários cartórios de registros de imóveis adotam a interpretação de que estaria implícita essa obrigatoriedade, valendo-se, por analogia, da exigência de consentimento dos vizinhos contíguos nos procedimentos de retificação de registro (art. 213 da lei de Registros Públicos) e de usucapião extrajudicial (art. 216-A da lei de Registros Públicos). E há normas de corregedorias dos Tribunais impondo essa interpretação aos oficiais de registros de imóveis, a exemplo do que sucede no Estado de São Paulo, conforme o item 59.2 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Há, pois, necessidade de a lei ser explícita quanto à necessidade ou não de haver a anuência dos confrontantes ao memorial descritivo.
A proposição em pauta segue o caminho mais adequado, o de dispensar essa anuência, que, na prática, serve para retardar e até mesmo inviabilizar a purificação das matrículas imobiliárias das descrições perimetrais imprecisas.”
A mudança processada parece ser interessante no plano social por múltiplas razões. Algumas, podem ser citadas.
As informações sobre o imóvel ficam disponíveis no banco de dados do SIGEF e acessível para qualquer usuário da Internet. A informação efetivamente é pública. Não há possibilidade de sobreposição entre imóveis. A malha fundiária cria certa presunção de verdade, ainda que declaratória, o que orienta melhor a ação dos agentes interessados. Os conflitos ficam evidenciados e permitem exame seletivo. O uso impróprio no lançamento de dados no SIGEF tem as punições próprias da lei.
Em virtude da nova sistemática legal, o proprietário poderá adotar algumas cautelas:
a) certificar o polígono do seu imóvel rural no INCRA com posterior averbação na matrícula, protegendo-o de erros e malícias de terceiros ou confinantes;
b) sempre que possível, ajustar com os seus vizinhos os limites, mediante anuência mútua, facultado averbar na matrícula esta anuência. Este último ponto, assegura segurança jurídica que o ato declaratório não produz.
No âmbito público, o grande desafio para o futuro é a integração entre os dois sistemas (o registro imobiliário e sistema SIGEF/INCRA) de tal modo que o polígono da matrícula, o polígono real e o polígono certificado (georreferenciado) estejam cada vez mais alinhados, pacificados e aptos a produzirem a segurança jurídica que se almeja.
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1 Diário do Senado Federal, 9 de maio de 2019, página 87.