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É possível a apresentação de defesa ou recurso na produção antecipada de prova?

A previsão do art. 382, §4º do CPC/15 refere-se tão somente à proibição de discussão sobre o mérito da eventual e futura demanda (na qual a prova será avaliada), de forma que são admissíveis defesas e recursos que versarem sobre a admissibilidade e legalidade da produção antecipada da prova.

3/7/2019

No CPC/15, a produção antecipada de provas deixou de ser um procedimento cautelar específico, passando a destacar a autonomia do direito à produção da prova. Como consequência dessa nova visão, foi ampliado o rol de cabimento desta ação, sendo permitida a produção de qualquer prova, inclusive quando ausente a demonstração de urgência. Salutar as inovações trazidas pelo CPC/15, que têm o condão de viabilizar a autocomposição, embasar o ajuizamento de uma ação, diante do maior grau de certeza sobre um direito, ou até mesmo evitá-lo (art. 381, CPC/15).

Entretanto, o procedimento a ser adotado na produção antecipada de provas não parece estar claro, principalmente acerca da apresentação de defesa ou interposição de recurso. Isto, pois, o art. 382, §4º do CPC/15 determina que “[n]este procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário”, hipótese em que será cabível o recurso de apelação, já que julgada extinta a demanda.

Uma interpretação literal do referido diploma legal permitiria as seguintes conclusões: a) apesar da possibilidade de todos os interessados requererem produção de qualquer prova no mesmo procedimento (382, §3º do CPC/15), apenas o autor poderia recorrer do indeferimento total da produção da prova por si pleiteada; b) não caberia recurso de um indeferimento parcial da produção da prova; c) estaria vedada a possibilidade de apresentação de qualquer defesa ou recurso pelo réu, independente do seu conteúdo. Verifica-se, assim, que essas conclusões implicam a violação do princípio da isonomia, ampla defesa e contraditório.

Desta forma, uma interpretação literal mostra-se inconstitucional, principalmente sob a perspectiva do requerido. Apesar de citado, ele não teria qualquer possibilidade de influência no convencimento do julgador, seja sobre o seu próprio pedido de produção de prova, seja sobre a admissibilidade da produção da prova pleiteada originalmente pelo requerente.

Neste caso, deve ser feita uma análise sistemática do CPC/15 e uma interpretação conforme a Constituição Federal1.

Primeiramente, é necessário observar que “[o] juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas” (art. 382, § 2º, CPC/15). Conclui-se, portanto, que a cognição do julgador está limitada aos requisitos legais para a produção da prova, estando vedada a análise de controvérsia sobre os fatos a serem provados2.

Assim, diante da limitação cognitiva do julgador, o contraditório passa a ser reduzido. Conforme destaca Fredie Didier Jr.3, neste procedimento, é passível de discussão: o direito à produção da prova, a competência do órgão jurisdicional, a legitimidade, o interesse, o modo de produção da perícia, etc. Nota-se que a controvérsia paira sobre questões processuais e procedimentais, isto é, de admissibilidade e condução do procedimento, sendo vedada a análise do direito material que será, eventualmente, objeto de demanda posterior.

Percebe-se, ainda, a semelhança entre o art. 382, §4º do CPC/15 com o art. 865 do CPC/73, que determinava a inadmissibilidade de defesa ou recurso no processo de justificação. Em tal procedimento, de acordo com entendimento de Araken de Assis, Arruda Alvim e Eduardo Arruda Alvim4, era “possível contestar o pedido, pondo em causa os requisitos de justificação e eventuais vícios, que conduzam à extinção do processo (art. 267)”, estando vedada a produção de prova contrária pelo réu (o que hoje é permitido pelo §3º do art. 382).

Consideradas admissíveis, portanto, defesas e recursos que versem sobre matéria processual, de admissibilidade ou condução da produção da prova, mostra-se necessária a análise sobre qual é o recurso cabível.

Neste procedimento, possui natureza de sentença a decisão que atestar que elementos produzidos servem como prova judicial, tendo caráter homologatório5, ou a decisão que indeferir totalmente a produção da prova, sendo cabível o recurso de apelação. Por outro lado, a decisão que deferir total ou parcialmente a produção da prova tem natureza de decisão interlocutória, já que não põe fim à fase cognitiva. Logo, esta decisão é recorrível por agravo de instrumento. Entretanto, o agravante deve justificar o cabimento deste recurso no caso concreto, em detrimento a eventual apelação, em atenção ao binômio utilidade-necessidade6. Neste sentido, a tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo cabimento do recurso de agravo de instrumento, quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação7.

Nota-se que uma apelação que tratasse exclusivamente a ilegalidade da produção da prova antecipada seria carecedora de interesse recursal, uma vez que, no momento da sua interposição, a prova já teria sido produzida.

Diante do exposto, pela necessária interpretação sistemática entre o Código de Processo Civil e a Constituição Federal, a previsão do art. 382, §4º do CPC/15 refere-se tão somente à proibição de discussão sobre o mérito da eventual e futura demanda (na qual a prova será avaliada), de forma que são admissíveis defesas e recursos que versarem sobre a admissibilidade e legalidade da produção antecipada da prova.

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1 Defendendo a interpretação sistemática, veja-se: DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol. III, São Paulo: Malheiros, 2017, p. 118/119; e NETO, Elias Marques de Medeiros, et. al. A Defesa na Produção Antecipada de Provas – Uma leitura constitucional do artigo 382, § 4º, do novo CPC, disponível aqui.

2  Segundo Scarpinella Bueno, o julgador está limitado a “deferir o pedido relativo à sua proposição e a determinar sua respectiva produção”, em: BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 429

3 DIDIER JR., Fredie. Produção Antecipada da Prova, in: JOBIM, Marco Felix; FERREIRA, William Santos (coords.). Grandes Temas do Novo CPC, v. 5: Direito Probatório, Salvador, Juspodivm, 2015, p. 502

4 ARRUDA ALVIM, et al. Comentários ao Código de processo civil, Rio de Janeiro: GZ Ed, 2012- p. 1311/1312

5 THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 56. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. V. I, p. 919

6 Sobre o tema, veja-se: FERREIRA, William Santos. Cabimento do agravo de instrumento e a ótica prospectiva da utilidade – O direito ao interesse na recorribilidade de decisões interlocutórias in Revista de Processo nº 263, São Paulo: RT, jan. 2017, p. 193/203, disponível em aqui

7 Tema 988, STJ; RESP 1.696.396/MT, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 19.12.2018, transitado em julgado em 22.02.2019

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*Bruna Bessa de Medeiros é advogada do escritório Lefosse Advogados.

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