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Inovações tecnológicas e responsabilidade pelo inadimplemento contratual

O avanço da tecnolgia tem mudado concepções e negócios. O artigo traz a realidade de novas aplicações e questiona: o direito brasileiro está preparado para o este novo mercado?

28/6/2019

As inovações tecnológicas têm mudado as relações econômicas e a forma como os negócios são entabulados. Surgem novos institutos como a chamada economia de compartilhamento, exemplo típico da UBER e outros aplicativos. Outro ponto importante é o surgimento da chamada inteligência artificial, na qual a decisão humana, como tradicional expressão da autonomia da vontade de contratantes, é substituída por robôs ou aplicativos com base em algoritmos. Devemos questionar se o direito brasileiro está adaptado a este novo modelo de negócios e, enquanto não são editadas Leis específicas, qual será o comportamento das empresas que comercializam estes novos produtos.

Já é corrente que a inovação apresenta papel essencial no mercado, sendo considerada fonte geradora de valor frente a concorrentes, parceiros e clientes, de forma que o conceito de inovação não é restrito apenas às concepções de altos investimentos em tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, pois assume uma dimensão complexa diante de inúmeras oportunidades e desafios.

O problema realmente surge nos chamados robôs que possuem inteligência artificial (IA), permitindo-lhes "aprender" a partir das informação que são programadas e as ações que executam, e usar este “conhecimento” para tomar decisões em casos semelhantes. Não podemos negar que algumas destas decisões terão consequência jurídica direta, especialmente em um cenário cuja legislação foi ajustada para uma realidade (muito) longe destas novas aplicações.

Os exemplos destas novas tecnologias são vastos. Um deles é a BIA (acrônimo de Bradesco Inteligência Artificial), disponibilizado pelo banco Bradesco como uma assistente virtual com capacidade de inteligência artificial. Trata-se de um chatbot (ou robô) capaz de oferecer atendimento imediato às respostas dos clientes, com base na plataforma de computação cognitiva Watson em parceria com a IBM3, permitindo, inclusive realizar serviços transacionais, como, por exemplo, pagamento de contas via boleto, transferências bancárias, verificar extratos, faturas pendentes, entre outras possibilidades. O exemplo mais icônico e festejado é o dos veículos TESLA, cujo sistema permite a condução veicular autônoma. Os exemplos são inúmeros e em quantidade impactante.

A utilidade prática do tema é evidente, uma vez que se trata de movimento sem retorno nos mercados, com as consequências jurídicas advindas. Isto porque parte da utilidade destes mecanismos é, aparentemente, a capacidade de “aprenderem” com as interações humanas e tomarem decisões com base em informações alimentadas pelo próprio usuário. Cabe a investigação de como irá se comportar o ordenamento jurídico na hipótese de inadimplemento contratual durante o uso destas ferramentas, se será suficiente para regular estas questões.

Tirando algumas normas voltadas especialmente às questões tecnológicas, como marco civil da internet ou lei geral de proteção de dados, o regime jurídico brasileiro é bastante conservador, para não dizer insuficiente, para atender esta enxurrada tecnológica, especialmente se considerarmos as normas decorrentes de inadimplemento contratual. Na ausência de normas específicas, devemos continuar a aplicar a lei geral do Código Civil, cuja redação inicial data da década de 80 e que, certamente, não previa (nem de perto) a inovação tecnológica dos dias atuais. Deve-se, portanto, partir do pressuposto fático de que os instrumentos jurídicos existentes para a tratativa do inadimplemento contratual, não foram concebidos considerando estas novas tecnologias.

Então quem deverá, nas situações de grande inovação tecnológica, suportar os custos de uma tecnologia imperfeita em um novo mercado? E mais, os modelos jurídicos existentes estão prontos e são suficientes para as tratativas decorrentes de novos modelos tecnológicos de mercado?

É parte crítica definirmos que alguns destes riscos ocorrerão no âmbito de um contrato privado, além do fato de que o processo de criação de um novo Mercado poderá implicar em custos sociais. Isto ocorre porque, enquanto a tecnologia é desenvolvida, as empresas passam a comercializar seus bens (começo do século XX). Fato relevante e que não deverá ser colocado em escanteio é que, enquanto as tecnologias estão sendo desenvolvidas, os produtos são comercializados normalmente, a fim de atender a produção em massa demandada pelo mercado.

Estas questões tem levado vários legisladores a questionarem a necessidade de novas regras de responsabilização civil por danos causados por robôs. Na Europa, por exemplo, o tema vem sendo discutido desde 2017, uma vez que o parlamento europeu recomendou uma análise exaustiva da legislação aplicável à responsabilização civil, já que se chegou ao entendimento que as regras jurídicas existentes não são suficientes para o correto tratamento do tema. Um dos pontos principais é a impossibilidade fática de identificação da parte responsável pela indenização (Autoria).

Em abril de 2018, os países da União Europeia assinaram uma Declaração de Cooperação, que dispunha sobre a possibilidade de criação de arcabouço jurídico adequado sobre as questões de Inteligência Artificial. O Parlamento Europeu sugere, inclusive, que os danos imateriais causados pela Inteligência Artificial também devem ser compensados, o que demonstra a enorme preocupação que o tema vem causando nos operadores do Direito.

Infelizmente, não se verifica no Brasil movimento semelhante ao adotado na comunidade europeia e parece haver uma certa prostração do legislador nacional.

Responsabilidade pelo inadimplemento contratual

O adimplemento contratual é o foco de qualquer contrato, por significar a manifestação da vontade das partes, consubstanciada na prestação e contraprestação devidas, manifestação fática do princípio da integralidade contratual. Não é novidade que a responsabilização civil contratual constitui mecanismo ao restabelecimento do equilíbrio social, abalado pelo inadimplemento, assim caracterizada pela ausência da execução da obrigação imputável ao devedor. O Código Civil adotou o chamado princípio da “reparação integral”, que dispõe que o dano deverá ser indenizado ou compensado, trazendo satisfação ao lesado.

Pode-se afirmar que o inadimplemento das obrigações é fonte originária de danos de diversas espécies, os quais devem ser reparados nos moldes estabelecidos pelo instituto da responsabilidade civil, conforme corolário do disposto no artigo 389 do Código Civil. Consistem os contratos em um complexo de obrigações assumidas pelas partes que, uma vez cumpridas, resultam em seu adimplemento e no atendimento de sua finalidade, sem que dele nasça qualquer forma de responsabilidade. Com seu inadimplemento, porém, não raro as partes experimentam danos materiais e imateriais, os quais devem ser ressarcidos. Para a responsabilidade contratual, deverá estar presente conduta (que pode ser culposa ou não), nexo causal e dano, como elementos necessários à indenização.

A primeira dúvida já surge na largada: como determinar exatamente a Autoria de um inadimplemento contratual decorrente do uso de aplicações de inteligência artificial. Nos contratos que conhecemos normalmente e fazem parte do nosso dia-a-dia, a definição da Autoria é relativamente simples, bastando demonstrar-se tratar-se da parte devedora. Por outro lado, nas situações de interface com Inteligência Artificial, teremos a figura do desenvolvedor, do programa (ou software) e do usuário. Como definir a Autoria se, embora o software seja desenvolvido pelo contratado, é o contratante quem fará o seu “treinamento”?

Já se disse que tais ferramentas são capazes de responder e aprender conforme a utilização do usuário. Nos parece, portanto, extremamente tormentosa a questão da definição da Autoria nestas situações.

Além da Autoria, a culpa é um dos elementos que se destaca no inadimplemento contratual. Tal ilícito, por sua vez, decorre da transgressão de um dever jurídico, sendo a culpa, por seu turno, a violação desse dever jurídico por falta de cautela. A culpa tanto pode decorrer da infração ao comando legal ou violação da declaração de vontade individual. Em ambas as hipóteses há uma norma de comportamento estabelecida de um lado (a lei em sentido amplo) e de outro lado a declaração volitiva do indivíduo, e que a conduta operada pela vontade ao arrepio dessas normas de conduta configura a culpa. Uma parte da doutrina define a culpa contratual como a falta de previsão ou de prevenção do evento, no âmbito do negócio jurídico, assim caracterizada como deveres de diligência, prudência e perícia.

Na mesma linha do raciocínio acima, como definir-se a culpa decorrente de uso de inteligência artificial? Se estas ferramentas são capazes de aprender, aprimorar e realizar na exata medida em que as informações são inseridas, na eventualidade de erro, quem seria o responsável pela indenização? O desenvolvedor ou o operador do sistema? Estas são as perguntas que surgirão no mundo jurídico com maior frequência e que nossa legislação não é capaz de definir com exatidão.

A valoração do grau de culpa também é ponto que merece destaque, já que este é elemento básico para a configuração do inadimplemento para efeitos indenizatórios. No caso de novas tecnologias, é necessário verificar a culpa do inadimplente. A culpa exerce, portanto, função essencial para mensuração da extensão da indenização por perdas e danos.

Outro ponto que, no nosso entendimento, permanece sem resposta é a forma de cálculo dos danos efetivos e dos lucros cessantes. A indenização compreende aquilo que o credor perdeu, seja pela prestação desidiosa, seja ainda aquilo que deixou de lucrar.

Continuemos com o exemplo do mesmo banco. Parece que a questão dos danos emergente é de fácil solução, já que na hipótese de inadimplemento, os custos dispendidos no programa são de fácil percepção e obtenção. Poderia-se, inclusive, incluir os custos decorrentes de eventuais desligamentos de pessoas cuja informatização procurou-se otimizar. Portanto, parece que a regra legal satisfaz o seu papel e induz a um entendimento relativamente confortável.

Porém, o ponto tormentoso restaria à forma de cálculo dos lucros cessantes. Estes softwares prometem ganhos de eficiência: existem estudos que demonstram que os computadores conseguem ter velocidade superior a 200 (duzentas) vezes a velocidade dos humanos. No caso do inadimplemento do programa, uma perícia compararia as velocidades de análise contratual entre humanos e robôs? Como calcular os ganhos financeiros decorrentes das operações que deixaram de ser efetuadas por problemas de performance do dispositivo?

A questão também é delicada se considerarmos a situação o inadimplemento relativo e a mora. Ainda no exemplo do Banco, de um lado, o usuário alegará que o sistema não apresenta a velocidade de processamento necessário. De outro, o desenvolvedor alegará que a utilização e o aperfeiçoamento do robô não foi realizado de forma adequada. Assim, pergunta-se (cuja resposta não é de fácil solução), como se caracterizar o dia inicial da mora e, especialmente, as formas de purgação da mora, a teor do disposto no artigo 401 do Código Civil.

Como dito acima, somos do entendimento da extrema falta de precisão da legislação brasileira acerca da responsabilidade civil contratual decorrente de inovações tecnológicas. Mas, no mundo dos fatos, alguns dos contratos tecnológicos serão descumpridos e, até que uma solução legislativa seja dada de forma mais técnica e precisa, os casos demandarão solução.

Para suprir esta omissão, entendemos que as desenvolvedoras se protegerão através de mecanismos contratuais cada vez mais intrincados e complexos. Um destes exemplos será, obviamente, buscar eliminar as cláusulas penais moratórias, o que, obviamente, será possível, ante o aspecto de adesão de alguns dos instrumentos.

Outro mecanismo será a adoção de extensa lista (às vezes interminável) de cláusulas de declarações nas quais a desenvolvedora poderá caracterizar as hipóteses excludentes de responsabilidade, tais como problemas de performance, forma correta de uso do equipamento e, principalmente limitações cognitivas do mecanismo. Embora a adoção das cláusulas de declaração suscite diversas controvérsias a respeito de sua natureza jurídica e consequências, certamente as desenvolvedoras se apegarão ao mecanismo.

Através destas cláusulas, a ofertante também procurará evitar a caracterização do denominado “dolo informativo”, com extensa lista de funcionalidades e limitações dos sistemas, evitando-se que a parte prejudicada alegue ter sido induzida a erro. Procurar-se-á, pela adoção destas cláusulas, evitar eventuais alegações de omissões informativas, ou uma falsa representação da realidade, situações típicas para configuração de dolo principal ou acidental.

Além dos temas acima, as desenvolvedoras se socorrerão da teoria do duty to mitigate the loss, que prevê que a vítima deverá empregar esforços razoáveis para reduzir o prejuízo que o inadimplemento contratual lhe causar. Assim, as desenvolvedoras se protegerão, cada vez mais, no argumento que os usuários concorreram com o dano (e, mais além, não cooperaram com o devedor). Nesses termos, a respeito da mitigação dos danos, é importante mencionar a regra do disposto no parágrafo único do artigo 944, que traz a possibilidade de redução da indenização em razão do grau de culpa dos agentes. Importante ponto é que a mitigação é ônus do Réu que, detentor da tecnologia desenvolvida terá maiores condições técnicas de provar a má utilização do sistema pelo credor. Além das questões de mitigação, os devedores também trarão conceitos relativos à culpa da vítima ou culpa concorrente (artigo 945 do Código Civil). Assim, certamente, as desenvolvedoras alegarão que, embora o sistema possa eventualmente conter alguma falha, foi a conduta da vítima quem maximizou e aumentou os danos.

 

Em conlusão, a legislação pátria atual poderá ocasionar diversas dúvidas ao operador do Direito e, embora a comunidade europeia já tenha começado a discutir tais questões, nosso legislador parece estar alheio ao novo movimento de mercado. Esta inatividade do legislador terá consequências práticas inafastáveis, e as desenvolvedoras procurarão, a todo custo, adotar mecanismos contratuais complexos a fim de ver diminuída ou eliminada a sua responsabilidade.

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*Henrique Zalaf é sócio do escritório Cláudio Zalaf Advogados Associados.

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