1.O concurso de credores é o instrumento jurídico-processual adequado para distribuir, isonômica e proporcionalmente, pagamentos a uma coletividade de credores de devedor insolvente. Verifica-se a insolvência quando o patrimônio do devedor (ativo) não for suficiente para quitar todas as suas dívidas (passivo), e tem como exemplos a recuperação judicial, a falência, a insolvência (stritu sensu), a liquidação, dentre outros.
2.Tem por principal objetivo a otimização e maximização dos recursos do devedor para pagamento de seus credores, buscando resguardar a função social da atividade empresária (geração de empregos, recolhimento de tributos, fortalecimento da economia, etc.).
3.Em todos os procedimentos de concurso de credores existe classificação de créditos, a ser respeitada e observada, cujos pagamentos devem ser efetuados na ordem, na forma e no tempo descritos em lei. Um dos efeitos imediatos da instalação do regime concursal é a suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor.1 A qualificação de determinado crédito, destinada a situá-lo em uma das diversas classes de credores, segundo a ordem de preferência legal, há de ter tratamento único, seja na recuperação judicial, seja na falência, naturalmente para dar consecução ao declarado propósito de conferir tratamento isonômico aos titulares do crédito de uma mesma categoria.2
4.A rotina forense tem demonstrado, todavia, uma crescente e reiterada quebra do concurso, onde detentores de créditos de diferentes origens lançam mão de medidas para perseguirem individualmente seus créditos, em prejuízo aos demais credores, ao devedor, ao ordenamento jurídico e, em última análise, à própria sociedade como um todo. De um lado, sobrecarregam o Poder Judiciário (pretensões, defesas e recursos perante juízos singulares, juízo universal e tribunais) e, de outro, subvertem a ordem de pagamentos, ferindo a função social da atividade empresária e o estímulo à atividade econômica.
5.Inicialmente, interessante analisar duas hipóteses bastante recorrentes que, embora não violem diretamente dispositivos legais, acabam, na prática, por produzir efeitos negativos ao concurso: execuções de créditos com garantia fiduciária e de origem fiscal.
6.O primeiro caso refere-se a créditos com garantia fiduciária, normalmente – e em larga escala – utilizada por instituições financeiras. Evidentemente que não se trata de ilegalidade (há expressa exceção, inclusive, no artigo 49, § 3º, da lei 11.101/05, para a recuperação judicial, e no artigo 20 da lei 9.514/97, para a Falência), mas a consolidação da propriedade fiduciária em desfavor do devedor em crise, na prática, também acaba por esvaziar seu patrimônio, em prejuízo dos demais credores.
7.Curioso notar que o instituto da garantia fiduciária foi introduzido no ordenamento brasileiro, pela primeira vez, no âmbito do mercado financeiro e de capitais (lei 4.728/65), posteriormente utilizado dentro do sistema de financiamento imobiliário (lei 9.514/97, que instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel), e apenas mais recentemente conceituado pelo Código Civil (lei 10.406/02, artigos 1.361 e seguintes). Ainda assim, desenvolveu-se em larga escala a prática, por parte das instituições financeiras, de exigir garantias fiduciárias em troca de empréstimos, seja por meio de alienação (onde o objeto do contrato é a transmissão de um bem) ou da cessão, cujo objeto é a transmissão de um direito creditório, popularmente chamada de “trava bancária”.
8.É bastante recorrente que empresas em crise busquem tomar créditos para tentar superar suas dificuldades econômico-financeiras, os quais, em contrapartida, tendem a ser mais caros e a exigir mais garantias, proporcionalmente à agudeza da crise. Todavia, é questionável que a garantia exigida (à qual o devedor dificilmente tem alternativa) pelos bancos conceda-lhes preferência absoluta sobre determinado bem ou direito creditório do devedor, em detrimento de outros credores, cujos títulos, muitas vezes, foram constituídos anteriormente àqueles. Mesmo que viessem sendo dispendiosamente executados pelos seus titulares (vale dizer, normalmente fornecedores e prestadores de serviços, cumprindo sua função social naquela cadeia econômica), as garantias fiduciárias são mais rapidamente consolidadas, retirando o bem ou direito do acervo patrimonial do devedor antes de outros credores alcançarem a constrição.
9.Neste sentido, bem leciona Fábio Ulhoa Coelho3 que “a regra da individualidade da execução torna-se injusta. Isto porque não dá aos credores de uma mesma categoria de crédito as mesmas chances. Aquele que se antecipasse na propositura da execução possivelmente receberia a totalidade do seu crédito, enquanto os que se demorasse até porque, eventualmente, nem tivesse ainda vencido a respectiva obrigações muito provavelmente não receberiam nada, posto encontrarem o patrimônio do devedor já totalmente exaurido.”
10.Tudo isso, claro, em um cenário de pré-insolvência, antes de inaugurado qualquer dos procedimentos concursais. Mas, mesmo após a concessão do regime, os créditos ou bens garantidos por cessão ou alienação fiduciária não se submetem aos efeitos da recuperação judicial4 , da falência5 ou da liquidação extrajudicial6 , garantindo aos seus titulares, de um lado, bens livres e desembaraçados e, de outro, a desobrigação de participar de oneroso e trabalhoso processo de concurso de credores. O STJ, porém, em recente decisão, reconheceu que, se os bens gravados por garantia de alienação fiduciária cumprem função essencial à atividade produtiva de sociedade recuperanda, devem, excepcionalmente, se submeter aos efeitos da recuperação judicial.7
11.É intuitivo que cada credor busque meios de garantir, da maneira mais rápida e menos onerosa possível, a satisfação de seu crédito. Porém, tendo em mira que a função social da atividade empresária e a higidez da cadeia econômica constituem objetivos da lei 11.101/05, e que a insolvência de uma empresa é um problema que recai sobre toda a sociedade brasileira8 , é questionável que as instituições financeiras, valendo-se de seu maior poder econômico e diante da debilidade financeira do devedor, insistam em expedientes que as assegurem de ficar de fora de um eventual (e muitas vezes previsível) concurso de credores, ao qual todos os demais credores ficarão (ou deveriam ficar) submetidos.
12.Na segunda hipótese (execuções de crédito fiscal), não só não há vedação legal, como o artigo 187 do Código Tributário Nacional ainda prevê que a “cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.”
13.A lei 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da fazenda pública e dá outras providências, repete o mesmo comando normativo em seu artigo 29: “A cobrança judicial da dívida ativa da fazenda pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento.”
14.Isso significa que os créditos fiscais não estariam submetidos ao concurso de credores, instaurado com a decretação do regime de insolvência (falência ou liquidação) ou com o deferimento da recuperação judicial e, por consequência, as execuções fiscais têm seu curso normal.
15.Em verdade, a doutrina distingue concurso formal (com relação ao direito processual) de concurso material (relacionado ao direito material que dá lastro à obrigação), lecionando que, apesar de os créditos fiscais estarem excluídos do concurso formal, não estão desobrigados à obediência do concurso material:9
A universalidade manifesta-se sob os aspectos formal (ou processual) e material (ou obrigacional).
Ao dispor que "o juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido" (art. 76), a nova Lei de Falências refere-se à unicidade formal ou processual (competência do Juízo falimentar).
Diversamente, ao determinar a suspensão das providências individuais dos credores (art. 6º, caput), submetendo-os a concurso, escalonado em diversos graus de preferência (art. 83), conforme a natureza da obrigação (trabalhistas, com garantia real, tributárias, com privilégio, quirografárias e subordinadas), o legislador impõe a universalidade material ou obrigacional.
A universalidade, tanto formal quanto material, não é absoluta.
A nova Lei de Falências, nos §§ 1º, 2º e 7º do art. 6º e na parte final do art. 76, traz exceções à universalidade formal. Os credores não se submetem processualmente ao Juízo falimentar; contudo, estão adstritos ao concurso obrigacional, não podendo ser satisfeitos antes daqueles mais privilegiados. É o caso dos credores tributários: suas ações não se processam perante o Juízo falimentar (§ 7º do art. 6º e parte final do art. 76); porém, não podem receber seus créditos antes dos credores trabalhistas e daqueles com garantia real (art. 83, I, II e III).
16.Isso significa que os credores fiscais ficam desobrigados à habilitação de crédito perante o juízo universal (não há obrigação, mas o Fisco tem a prerrogativa de optar entre o ajuizamento de execução fiscal ou a habilitação de crédito), mas não podem receber seus créditos – nem promover atos de expropriação de bens do devedor – sem autorização do juízo universal.
17.Embora existam essas travas que repelem impulsos de credores em avançar sobre o patrimônio do devedor (desrespeitando o concurso), é inegável que este tem de empregar esforços – e gastos – extras para articular meios de defesa (o que, em última análise, depaupera o devedor e consome recursos que poderiam ser destinados para pagamento de credores), além de sobrecarregar e onerar ainda mais o Poder Judiciário com mais ações, mais defesas e mais recursos.
18.A legislação vigente, ao introduzir as normas em comento, talvez pretendera atribuir independência e maior autonomia aos Entes Fiscais na busca da satisfação de seus créditos, mas acabou por aliena-los dos procedimentos concursais. Não parece razoável insistir nas execuções fiscais individuais se a satisfação de seus créditos só poderá ocorrer após o pagamento de credores mais privilegiados, como, v.g., trabalhistas e com garantia real10. Melhor seria, como de fato vem ocorrendo11 , a subsunção ao concurso, possibilitando o credor fiscal, inclusive, de participar mais ativamente do processo universal, podendo contribuir para o seu melhor deslinde.
19.De outro giro, ainda mais prejudicial ao concurso de credores reside numa terceira hipótese, desta vez em desrespeito à legislação, consistente no avanço de execuções individuais em juízos diversos, com medidas tendentes (ou efetivadas) à expropriação e à constrição de bens, sem autorização (ou mesmo conhecimento) do juízo universal, com evidente prejuízo ao concurso de credores.
20.Em execuções de natureza cível, fundadas em títulos judiciais e extrajudiciais (direito do consumidor, fornecimento, prestação de serviços, imobiliário, indenizações, contratos, cobranças, títulos de crédito, dentre outros), a jurisprudência dos Tribunais de Justiça vacila muito, havendo precedentes importantes voltados à suspensão da pretensão executória para subordinação do crédito ao concurso de credores12 .
21.De outro lado, se acumulam julgados contra liberação de constrição de bens do devedor em execuções individuais, principalmente em sede de liquidação extrajudicial, inclusive nos Tribunais Superiores13 . Não se pode olvidar que o regime de liquidação extrajudicial, apesar de procedimento administrativo instaurado por órgão regulador (e não ter, portanto, juízo universal jurisdicional), possui os mesmos objetivos e princípios do direito falimentar, inclusive com relação à formação do concurso de credores. Neste sentido, aliás, a lei determina expressamente a “suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras, enquanto durar a liquidação” (artigo 18, “a”, lei 6.024/74).14
22.Tamanha a importância do tema que a primeira seção do STJ afetou (Tema 987)15 a discussão acerca da possibilidade da prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal (determinando-se a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes até a fixação da tese em sede de repetitivo).
23.De se questionar, portanto, a utilidade e a conveniência do prosseguimento de constrições e da efetivação de atos expropriatórios em processos executórios singulares. A uma, porque é de competência exclusiva do juízo da insolvência a análise e deliberação acerca de atos de constrição sobre o patrimônio dos devedores16 (único modo de garantir tratamento isonômico entre os credores). A duas, porque, mesmo que ultimadas medidas expropriatórias em execuções individuais, o saldo obtido deve (ou deveria) ser remetido ao juízo universal, para pagamento na ordem de preferência17 , mesmo que realizadas na Justiça do Trabalho.18 A três, porque a expropriação de bem individualmente considerado fere a ordem legal de preferência, prevista no artigo 140 da lei 11.101/05, potencialmente diminuindo o valor que poderia ser obtido se incluído em um bloco. A quatro, porque não faz sentido ao exequente empregar recursos em medidas expropriatórias em execuções individuais se o produto deve ser destinado ao concurso, correndo o risco deste credor, dependendo da classe de seu crédito, receber valor ou menor ou mesmo nem receber. Aliás, Fabio Ulhoa Coelho19 leciona que seria “despropositado que os credores pudessem continuar exercendo individualmente seu direito à cobrança judicial, concomitante à tramitação do concurso”, pois estariam “sendo desenvolvidas duas medidas judiciais de idênticas finalidades (...)”. A cinco, pois o juízo da insolvência, além de possivelmente mais especializado,20 detém visão holística da situação do devedor, dos credores e é auxiliado por administrador judicial, ao passo que o juízo da execução singular muito provavelmente terá assimetria das informações, o que pode levar a distorções e eventuais prejuízos. E, por fim, a seis, porque, tendo em mira a boa fé objetiva das relações sociais e processuais, se existe concurso de credores instalado, não deve um credor singular tentar se sobrepor aos demais, em respeito ao par conditio creditorum.
24.Nas execuções de créditos provenientes da legislação do trabalho em trâmite na Justiça Especializada, entretanto, é cada vez mais recorrente (e preocupante) a quantidade de constrições e expropriações que ignoram ou desautorizam o concurso de credores instalado, desafiando a interposição recursos (e gerando mais ônus) que sequer deveriam ser necessários.
25.Mesmo após a edição do Provimento 01/2012 da CGJT (Corregedoria-Geral da Justiça Do Trabalho),21 e de reiteradas decisões dos Tribunais Superiores que prestigiam o concurso de credores e a submissão dos créditos laborais a ele,22 inclusive com relação aos créditos previdenciários23 , inúmeros são os conflitos de competência 24 gerados por decisões da Justiça especializada que insistem em prosseguimento de execuções singulares. A situação se agrava quando o regime concursal é o de liquidação extrajudicial, havendo orientação jurisprudencial expressa (OJ 143-SDI1-TST)25 para continuidade da execução singular, ainda utilizada atualmente26 .
26.Essa sanha em executar créditos individuais e passar por cima do concurso acarreta, além dos já citados diversos prejuízos ao devedor e a seus credores, enorme disparidade entre credores da mesma classe, já que não raro alguns recebem integralmente (até mesmo com juros e multas) e outros não recebem nada, gerando verdadeira sensação de insegurança e injustiça.
27.Apenas para ilustrar a gravidade dessas distorções, destaque-se o pagamento determinado em processo27 cuja ré, empresa à época em regime de liquidação extrajudicial, registrava em seu passivo mais de quatrocentos créditos trabalhistas, acumulando mais de doze milhões de reais em dívidas apenas nesta classe. O valor bloqueado na Justiça do Trabalho era inferior à divida laboral total e, por consequência, foi pago, no ano de 2013, o equivalente a menos da metade de todos os débitos (os critérios adotados para distribuição dos pagamentos são desconhecidos). Atualmente, o devedor está em regime falimentar e a maioria de seus credores trabalhistas originários ainda aguarda, até hoje, a quitação de seus débitos, apesar de dezenas de seus pares terem recebido seus créditos, indiscriminada e integralmente, cinco anos antes.
28.Em se tratando de procedimentos concursais de insolvência, para se evitar distorções e injustiças na distribuição dos pagamentos, e fazer prevalecer o concurso de credores sobre execuções individuais de créditos, é necessário que todos os credores se conscientizem de que os interesses comuns a uma coletividade devem se sobrepor aos interesses individuais,28 de que cada centavo recebido inadvertidamente (ao arrepio do concurso) por um credor acarreta prejuízo direto e imediato a seu semelhante. Isso não é sonho nem, muito menos, utopia. É norma positivada e cogente.
29.Enquanto esse estado de consciência não for plenamente alcançado, cabe ao sistema jurídico adotar medidas que previnam e combatam atitudes e comportamentos dissidentes, como aplicação de multa e indenizações.
30.De se lembrar, neste ponto, que as normas que estabelecem a formação do concurso universal e a suspensão de execuções singulares e de medidas tendentes a exproprias bens do devedor insolvente são voltadas a todos os stakeholders do processo, inclusive – e especialmente – os credores.
31.Em caso de descumprimento, o ordenamento jurídico brasileiro prevê medidas que podem (e devem) ser adotadas. O Código de Processo Civil prevê, em seus artigos 79 e 80, que:
Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente.
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidente manifestamente infundado;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
32.Adiante, em seu artigo 81, o Codex determina que “de ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou”, prevendo, ainda, em seus parágrafos:
§ 1º Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2º Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.
§ 3º O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos.
33.Em perfunctória análise da proposição genericamente posta e sua subsunção à norma, parece que a insistência na perseguição individual do crédito, em detrimento do concurso, constitui dedução pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso, alteração da verdade dos fatos, utilização do processo para conseguir objetivo ilegal e, também, proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, enquadrando-se facilmente nas hipóteses legais dos incisos I, II, III e V do artigo 80.
34.Por consequência, deve responder por perdas e danos (art. 79 do CPC), pagar multa, e indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas (art. 81 do CPC). Essa medida deve ser tomada de ofício, tanto pelo juízo da execução singular onde se atenta contra o concurso, como pelo juízo universal, ou pode ser requerida por qualquer das partes.
35.A aplicação de medidas punitivas a credores que atentam contra o concurso é prevista em ordenamentos jurídicos de outros países. Explica o Prof. Dr. Daniel Carnio Costa29 que:
No modelo norte-americano, a violação à ordem de stay traz como consequência a aplicação de penalidades judiciais, na medida em que o credor que prosseguiu indevidamente com sua execução contra a devedora incorreu em contempt of the court.
Conforme dispõe a Sessão 362 (a), do US Bankruptcy Code, todas as ações ou medidas executivas promovidas pelos credores em violação à ordem de stay devem ser consideradas nulas e sem nenhum efeito.
Mas não é só. Além da nulidade do ato executivo, as violações intencionais também serão puníveis nos termos da Sessão 362 (k) do US Bankruptcy Code. Vale dizer, o credor estará sujeito a indenizar a devedora recuperanda pelos prejuízos materiais, inclusive custas e honorários advocatícios, bem como ao pagamento de multa pelo juízo em razão do descumprimento da ordem judicial.
36.De fato, em breve análise ao direito comparado, verifica-se que assim ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América. O código norte-americano (U.S. Code) traz, em seu título 11 (Title 11. Bankruptcy) normas sobre insolvência. O mais conhecido capítulo 11, “chapter 11” (Reorganization - §§ 1101 – 1174), é a forma mais comum de falência das empresas (embora possa servir a pessoas físicas, caso preenchidos os critérios). Além deste, há o Capítulo 7 (Liquidation - §§ 701 – 784) e Capítulo 13 (Adjustment Of Debts Of An Individual With Regular Income - §§ 1301 – 1330), os dois tipos mais comuns de procedimentos de insolvência utilizados por pessoas naturais, e também o Capítulo 12 (Adjustment Of Debts Of A Family Farmer Or Fisherman With Regular Annual Income - §§ 1201 – 1232), mais específico para produtores rurais.30
37.A instauração destes procedimentos naquele ordenamento tem, dentre suas consequências, a suspensão automática (stay period) que proíbe quase todas as atividades de cobrança, incluindo continuidade ou ingresso de novas ações (excetuam-se, por exemplo, processos criminais, pensão alimentícia a menores e certos casos de despejo), penhora e expropriação de bens e, até mesmo, contato por telefone ou correio, na tentativa de cobrar uma dívida.
38.Em caso de descumprimento por parte do credor, o tribunal pode impor multas, condenar em honorários advocatícios e impor o pagamento de indenização por danos eventualmente causados, inclusive danos morais.31 Note-se que a violação da suspensão (stay) não depende da intenção do credor de violar o comando normativo, bastando apenas que inicie ou continue procedimentos de cobrança para que se caracterize a violação.
39.Felizmente, essa postura começa a ser mais proeminentemente adotada pelo Judiciário pátrio, consoante se constata nas brilhantes considerações apostas em recente decisão proferida pelo Prof. João de Oliveira Rodrigues Filho,32 juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo/SP, que merecem ser colacionadas:
Todavia, mesmo com a determinação do stay period e a jurisprudência consolidada do STJ sobre a competência do Juízo da recuperação judicial para deliberar sobre a essencialidade dos bens de propriedade ou posse da recuperanda, a realidade tem demonstrado a existência de diversos atos de constrição patrimonial contra a devedora emanados de Juízos diversos, por provocação de credores sujeitos ou não à recuperação judicial.
Essa situação, além de ocasionar um imenso número de conflitos de competência desnecessários diante do entendimento já consolidado do STJ, compromete o fluxo de caixa e as atividades operacionais da atividade em recuperação, em razão da paralisia que se impõe sobre o bem no caso concreto, impedindo sua utilização justamente no momento de maior necessidade da recuperanda, além de tumultuar o ambiente de negociação buscado pela Lei 11.101/2005, que se faz presente durante o processamento da recuperação judicial.
A boa-fé objetiva nas relações de ordem privada, consistente na verificação de eticidade da parte através de suas condutas, já presente em nosso ordenamento desde o advento da Constituição Federal de 1988 e mais especificada com o Código Civil de 2002, ganhou reforço para sua incidência no âmbito do processo civil, diante de sua previsão expressa no art. 5º ao lado da obrigação de cooperação processual pelas partes, elencada no art. 6º, todos do CPC.
Diante de tais premissas, inegável que a pretensão de qualquer credor, sujeito ou não à recuperação judicial, inerente à excussão de bens componentes da esfera patrimonial da recuperanda ou inseridos em sua cadeia de produção, para fins de exercício de direitos, necessita de prévio pronunciamento do Juízo da recuperação judicial sobre sua essencialidade, levando-se em consideração as particularidades da operação empresarial e o contexto fático apresentado nos autos.
Assim, seja pela previsão contida no art. 49, caput e parágrafo 3º in fine, seja pela obrigação ex vi legis contida no art. 6º, caput, todos da Lei 11.101/2005, qualquer ato de credor, sujeito ou não à recuperação judicial, que busque pagamento fora dos termos da recuperação judicial ou excussão de bens essenciais à atividade, respectivamente, através de medidas adotadas em esfera administrativa ou Juízos diversos que não o recuperacional, sem prévia discussão sobre a essencialidade do bem com vistas ao soerguimento da atividade, estará violando determinação legal e judicial, em absoluta contrariedade aos postulados da boa-fé e da cooperação processual, de modo a ser possível tal conduta ser enquadrada como ato atentatório à dignidade da justiça, conforme previsão do inciso IV do art. 77 do CPC, analisadas as particularidades de cada caso e o elemento subjetivo do credor diante das circunstância de fato e de direito da espécie.
Diante do exposto, nos termos do parágrafo 1º do art. 77 do CPC, ficam todos os credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, advertidos da necessidade de discussão sobre a essencialidade ou não de bem ou direito inserido na esfera patrimonial ou da cadeia de produção do grupo em recuperação judicial neste Juízo recuperacional, recomendando-se a abstenção da busca de atos de constrição de bens e direitos contra a recuperanda, em Juízos diversos ou em via administrativa, sem a prévia deliberação sobre a essencialidade, pela possibilidade de aplicação da sanção contida no parágrafo 2º do aludido artigo de lei, consistente em imposição de multa de até 20% do valor da causa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis nas esfera processual, civil e criminal.
40.Espera-se, com isso, poder atingir o objetivo maior que é a preservação do concurso, com o tratamento isonômico dos credores e rateio proporcional, e propiciar a realização de procedimentos mais rápidos, limpos, enxutos e menos onerosos, tanto de reestruturação (caso da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial) como de saneamento de mercado (falência e liquidação extrajudicial), e quem sabe contribuir para uma sociedade mais justa.
_______________
1 Art. 52, III, para a recuperação judicial, art. 99, V, para a falência, e art. 6º, para ambos os regimes, todos da lei nº 11.101/05; e art. 18, “a”, da lei nº 6.024/74, para a liquidação extrajudicial.
2 STJ, REsp 1649774/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 12/02/2019, DJe 15/02/2019
3 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 17ª Ed
4 Precedentes do STJ: REsp 1653976/RJ, Rel. Ministro Lázaro Guimarães, Rel. p/ o acórdão Min. Antonio Carlos Ferreira. Quarta Turma, julgado em 8.5.2018, DJe 1.8.2018; Aglnt no AREsp 884.153/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 19/09/2017, DJe 28/09/2017; Ag.lnt. no AREsp 912.237/SP, Rel. Ministro Raul Araújo. Quarta Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 20/06/2017.
5 STJ: REsp 1302734/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 03/03/2015, DJe 16/03/2015; REsp 1164667/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/05/2013, DJe 14/05/2013; CC 128.194/GO, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 28/06/2017, DJe 01/08/2017.
6 STJ: REsp 1738724/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 11/12/2018, DJe 13/12/2018
7 STJ, AgInt no CC 162.066/CE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 08/05/2019, DJe 15/05/2019
8 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 3. 15ª edição. São Paulo, Ed. Saraiva, 2014, p. 396
9 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (Coord.). Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 83-84
10 Conforme preceitua o artigo 83 da lei nº 11.101/05.
11 Precedentes do STJ: REsp 1466200/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 04/12/2018, DJe 12/02/2019; AgRg no Ag 713.217/RS, Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 19/11/2009, DJe 01/12/2009.
12 Precedentes: TJ/SP, Agravo nº : 2055751-45.2017.8.26.0000, Rel. Des. Viviani Nicolau, j. 22/06/2017, V.U.; TJ/SC, Agravo de Instrumento n. 0033615-79.2016.8.24.0000, de Blumenau, rel. Des. Janice Goulart Garcia Ubialli, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 17-07-2018; TJ/RJ, Agravo de Instrumento n. 0059988-20.2018.8.19.0000, Nona Câmara Cível, Rel. Des(a). Adolpho Correa De Andrade Mello Junior - Julgamento: 16/04/2019.
13 STJ, REsp 1159521/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 27/03/2014, DJe 14/04/2014; TST, AIRR-947-96.2011.5.02.0031, Rel. Min. Vania Maria da Rocha Abensur, j. 17/09/2014; TJ/SP, AI nº 2259871-84.2016.8.26.0000. Rel. Des. Fábio Quadros, j. em 23/03/2017, V.U.
14 Aplicável em diversos segmentos regulados do mercado, v.g.: instituições financeiras (art. 34 da lei nº 6.024/74); operadoras de planos de saúde suplementar (art. 24-D da lei nº 9.656/98); entidades de previdência complementar (art. 62 da Lei Complementar nº 109/01); e sociedades seguradoras (art. 107 do Decreto-lei nº 73/66).
15 STJ, ProAfR no REsp 1712484/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 20/02/2018, DJe 27/02/2018 (afetação conjunta: REsp 1.694.261/SP, REsp 1.694.316 e REsp 1.712.484/SP)
16 Precedentes: STJ, AgRg nos EDcl no CC 136.571/MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 24/05/2017, DJe 31/05/2017; TJ/SP, AI nº 2058107-76.2018.8.26.0000, Rel. Des. Azuma Nishi, j. em 25/07/2018; TJ/SP, AI nº 2190802-28.2017.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. em 18/12/2017.
17 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2203879-07.2017.8.26.0000, Rel. Des. J.B. Paula Lima, j. 12/03/2019
18 STJ, CC 37.680/PR, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Segunda Seção, julgado em 23/02/2005, DJ 07/03/2005; STJ, CC 34.635/GO, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Segunda Seção, julgado em 24/09/2003, DJ 01/03/2004, p. 119; STJ, Rcl 1.066/RJ, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 2ª Seção, julgado em 13/11/2002, DJ 17/02/2003, p. 214
19 COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 73.
21 O Provimento dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pelos MM. Juízos do Trabalho relativamente a credores trabalhistas de Empresa Falida ou em Recuperação Judicial e dá outras providências, e em seu artigo 1º estabelece, expressamente, que no “caso de execução de crédito trabalhista em que se tenha dado a decretação da falência do executado ou este se encontre em recuperação judicial, caberá aos MM. Juízos das Varas do Trabalho orientar os respectivos credores para que providenciem a habilitação dos seus créditos perante o Administrador Judicial da Empresa Falida ou em Recuperação Judicial, expedindo para tanto Certidão de Habilitação de Crédito.”
22 STJ, REsp 1721993/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/05/2019, DJe 16/05/2019; TST, AIRR-417-55.2017.5.06.0004, 8ª Turma, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DEJT 13/06/2019.
23 TST, AIRR-11348-55.2015.5.03.0042, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 30/05/2019
24 STJ, AgInt nos EDcl no CC 160.280/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 30/04/2019, DJe 06/05/2019; STJ, AgInt no CC 148.987/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/09/2017, DJe 21/09/2017; STJ, AgInt no CC 147.032/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/09/2017, DJe 19/09/2017
25 OJ-SDI1-143: EMPRESA EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL. EXECUÇÃO. CRÉDITOS TRABALHISTAS. LEI Nº 6.024/74. Inserida em 27.11.98. A execução trabalhista deve prosseguir diretamente na Justiça do Trabalho mesmo após a decretação da liquidação extrajudicial. Lei nº 6.830/80, arts. 5º e 29, aplicados supletivamente (CLT, art. 889 e CF/1988, art. 114).
26 TRT-2ª Região/SP, Agravo de Petição nº 1000486-78.2017.5.02.0005, Rel. Des. Adriana Prado Lima, j. 14/05/2019.
27 TRT-2ª Região/SP, Recurso Ordinário nº 0000947-96.2011.5.02.0031, Rel. Des. Sérgio Winnik, j. 09/04/2013
28 Com a devida venia, em contraponto ao “homem cordial”, descrito por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (termo cunhado por Ruy Ribeiro Couto)
30 Clique aqui, acessado em 17/06/2019
31 Clique aqui, acessado em 17/06/2019
32 Processo nº 1057756-77.2019.8.26.0100, em trâmite na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP
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COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 3. 15ª edição. São Paulo, Ed. Saraiva, 2014.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 17ª Ed.. São Paulo: Saraiva, 2006.
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (Coord.). Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
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*Fabiano Fabri Bayarri é advogado, liquidante e administrador judicial. Possui extensão em “Recuperação Judicial de Empresas e Falência” (PUC/Cogeae); MBA em “Gestão Empresarial” (FGV); Especialização em “Direito Tributário” (IBET).