A lei Maria da Penha, desde sua edição, em vigor olímpico, vem num crescente interpretativo na sua aplicação, ultrapassando e em muito o seu conteúdo originário. Inicialmente, e para muitos essa era a intenção do legislador, o dispositivo legal teria aplicação somente para proteger a mulher no âmbito da violência doméstica. Atritou-se referida lei com a lei 9.099/95, o que fez com que o Superior Tribunal de Justiça editasse a súmula 542, vazada nos seguintes termos: "a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública e incondicionada".
Posteriormente, ainda na evolução jurisprudencial, foi mitigada a aplicação dos princípios da insignificância e da bagatela imprópria com referência aos crimes e contravenções praticados contra a mulher, no âmbito das relações domésticas. A última inserção feita na lei Maria da Penha está relacionada com os casos em que ocorrer risco atual ou iminente à vida ou integridade física da mulher e seus dependentes, cuja competência para determinar o afastamento é exclusiva do juiz, desloca-se para o delegado de polícia quando município não for sede de comarca e, nesse caso, não havendo delegado, torna-se legitimado o policial encarregado de receber a denúncia. Nessas hipóteses o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e, após manifestação do Ministério Público, decidirá a respeito da manutenção ou revogação da medida aplicada.
É de se indagar, no entanto, com toda evolução interpretativa que vem experimentando a lei: no caso em que a mulher se torna a agressora do homem, há previsão legal para idêntico tratamento?
Não há na lei específica nenhuma orientação para tanto. Porém, ao intérprete cabe realizar a escavação legislativa para encontrar a interpretação que seja mais adequada e proporcional ao caso. Maximiliano, referência da Hermenêutica no Brasil, foi incisivo em afirmar ser o "intérprete o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita".1
A lei, como se percebe no caso específico, trata exclusivamente da mulher, excluindo o homem do polo protetivo. Porém, em razão do princípio da isonomia legal, no âmbito da convivência doméstica, se uma determinada conduta provocada pela mulher contra o homem causa temor com relação a eventuais agressões, pode sim ele se valer da mesma lei para a solução do conflito.
Hart, com a pena precisa, elucida a questão: "o direito deve referir-se preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como manifestações das classificações gerais feitas pelas leis".2
Havendo provas suficientes de que a mulher está provocando violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral ou outras, contra o homem com quem foi casada ou viveu em união estável, a Justiça poderá intervir em favor dele, expedindo em seu favor as medidas protetivas adequadas. O não cumprimento por parte da agressora incidirá nas penas do crime tipificado no artigo 24-A, da lei 13.641/18. O mesmo benefício se estende, como corolário do princípio da isonomia material, às crianças, adolescentes, homens e idosos que se vejam na mesma situação.
Tanto é verdade que várias decisões já foram proferidas no sentido de ampliá-la e, posteriormente, para alcançar o homem, a criança, o idoso, os conviventes homoafetivos quando forem vítimas de violência doméstica e familiar. Nesta ginástica interpretativa, chega-se à conclusão, por analogia e com a aplicação do princípio da isonomia que, em situação não idêntica, porém bem parecida, a lei aplica-se a todos, sem qualquer distinção, desde que a violência ocorra intramuros familiar.
1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 10.
2 Hart. H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 161.
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