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Títulos e contratos eletrônicos

A questão que se coloca está no plano da existência, validade e eficácia dos contratos eletrônicos. A existência, no tocante especialmente a títulos de crédito eletrônicos é o menor problema, já tendo sido acatada pelo art. 889, § 3º do CC/02, onde se lê que “o título pode ser emitido "a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente”.

24/6/2019

A evolução tecnológica vem trazendo novidades na seara dos contratos, como aqueles dito eletrônicos, que incluiriam os smart contracts, devendo se verificar em uma abordagem não aprofundada, dada as naturais limitações desta obra, o que são e como se acomodam na teoria geral do contrato.

Os contratos eletrônicos são aqueles celebrados no ambiente da internet, no mais das vezes em operações configuradas como relações de consumo, que não fazem parte das preocupações específicas deste texto, como já foi dito acima.

Tem se buscado uma classificação desses contratos que possa abrangê-los na sua individualidade, da seguinte forma: (i) interpessoais; (ii) interativos; e (iii) inter sistêmicos.

Os contratos interpessoais seriam aqueles nos quais pessoas naturais e/ou jurídicas interagem entre si, dando-se a manifestação da vontade por via eletrônica (e-mail, aplicativos de mensagens, “chats”, etc.).

Os contratos interativos corresponderiam àqueles em relação aos quais uma pessoa interage com um sistema e adere às convenções previamente determinadas pelo fornecedor.

Por sua vez, nos contratos inter sistêmicos um sistema interage com outro, discutindo-se a natureza jurídica dessa operação, se é que ela existe

O que importa para a teoria geral do contrato é que eles são classificados como feitos à distância, entre ausentes, o que seria eventualmente discutível quando as discussões se dão em um ambiente em tese presencial como é o do Skipe por vídeo conferência. Mas se as tratativas assim se desenvolvem, a conclusão do acordo se dá pelo envio de uma mensagem escrita por e-mail que, a qualquer momento, pode ser versada em papel para eventual fim de prova. Para tal tipo de contratação também pode ser utilizado o WhatsApp.

Os contratos eletrônicos propriamente ditos seriam negociados dentro de sítios da internet, apresentando os fornecedores as informações mínimas necessárias para a análise do destinatário, cuidando-se de operações dirigidas a destinatários indeterminados. Observe-se que, neste caso, haverá o fornecedor de tomar cuidado em informar as condições mínimas (necessárias e suficientes) para a validade da oferta como o preço; se referida a um elemento temporal ou em vista da quantidade presente no estoque; lugar e prazo da retirada/entrega; etc. Assim sendo, por meio do recurso a clicks sucessivos em seu compactador, tablet ou celular, o interessado progride sucessivamente nas tratativas até fechar o negócio, pelo click final, depois de haver optado pela forma de pagamento acessível, condicionada à conclusão do acordo quando da confirmação do pagamento.

Nesse cenário não há qualquer elemento que faça esses contratos eletrônicos destoarem da sua inserção na teoria geral do contrato, muito mais ainda quando eventuais pendências judiciais (ou mesmo arbitrais nas câmaras mais atualizadas com os processos eletrônicos) nascem e se desenvolvem no ambiente virtual, sem a necessidade de se recorrer a qualquer documento físico.

Outra coisa diferente em grande medida é a questão dos smart contracts, entre nós chamados de contratos inteligentes. São operações realizadas em ambientes puramente virtuais sem a participação direta de pessoas naturais e sim de computadores dotados de inteligência artificial, chamados no mercado de robôs. O que se poderia dizer em princípio é que o contrato em si não é inteligente, mas sim esse “ser eletrônico” que lhe dá andamento desde as tratativas até a conclusão.

Uma pergunta preliminar, está em saber se já existe na realidade essa inteligência artificial, que funcionaria como uma máquina à qual se daria partida (ligando-se o computador de manhã) e, a partir desse momento ela tomaria a iniciativa de fechar negócios ao seu inteiro alvedrio e, quem sabe, adotar outros parâmetros de conduta negocial que não tenham constato originalmente do seu programa e, dessa forma, assumindo uma personalidade própria das pessoas. Se isso for verdade, qual seria a natureza jurídica da relação entre o criador do robô e esse novo ser dentro do direito? Talvez ela possa ser explicada no campo do trust puro mas, em tal caso,  pergunta-se, como se daria a responsabilidade do agente, robô, no caso em que fugisse pelos seus atos à configuração original da operação. Seria ele uma pessoa de direito e, assim sendo, qual seria o seu patrimônio, suscetível de sofrer uma medida de indenização por alguém prejudicado?

Como nos parece nenhum teste de Turing até agora tenha detectado a existência efetiva de uma inteligência artificial – mesmo que esses robôs aprendam cada vez mais no dia-a-dia de sua vida – devemos concluir que a sua natureza jurídica, se assim podemos dizer, corresponde à de um preposto eletrônico de quem o programou e o colocou no mercado com um nome de identificação qualquer, sempre sem sobrenome, porque ele não tem genealogia1.

Como se sabe, a contratação eletrônica em geral vem sendo desenvolvida e aceita progressivamente pelo direito, a partir da longa discussão que se estabeleceu no campo dos títulos de crédito. Deve-se ter em vista que esta última área é uma das poucas do Direito Comercial na qual a forma é de essência para o fim do nascimento e circulação das relações jurídicas correspondentes, diferentemente do campo do direito contratual no qual opera o princípio da autônoma da vontade. Neste sentido, atendida a forma exigida em lei ou qualquer outra desde que seja lícita quando não há forma exigida, os contratos podem ser livremente convencionados nos limites da autonomia privada.

Observe-se que para todos os casos de negócios no ambiente eletrônico a prova da manifestação da vontade se dá pela utilização de certificados digitais e por meio de certificação disponibilizada pela ICP-Brasil, que se presume verdadeira. Isto tem por base a medida provisória 2.200-2, de 24/8/02, que institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil.

No direito bancário deu-se a legalização das operações eletrônicas quando realizadas por Sociedades de Crédito Direto (SCD) ou por Sociedades de Empréstimo entre Pessoas (SEP, na forma da resolução 4.656, de 26/4/18, que criou as instituições financeiras acima citadas, como modalidade de fintechs (instituições financeiras de tecnologia, em tradução livre). Nos termos do art.  2º daquela resolução podem ser realizadas operações financeiras por aquelas instituições por meio da utilização de contratos ou de títulos de crédito fazendo-se a utilização de plataformas eletrônicas, conectando-se os credores e devedores a sítios ou aplicativos na internet.

Há um problema jurídico ingente nesse campo, qual seja o da qualificação dos contratos eletrônicos como títulos executivos extrajudiciais, na forma do art. 784 do NCPC, que exige em seu inciso III a assinatura de duas testemunhas no documento, o que se revela inviável na vida de tais contratos2.

A questão que se coloca está no plano da existência, validade e eficácia dos contratos eletrônicos. A existência, no tocante especialmente a títulos de crédito eletrônicos é o menor problema, já tendo sido acatada pelo art. 889, § 3º do CC/02, onde se lê que “o título pode ser emitido "a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente”.

Do ponto de vista de sua validade e eficácia coloca-se a decisão do STJ no REsp. 999577/MG, da 3ª¨T, rel. min. Nancy Andrigh, onde se lê que:

“- o contrato escrito, com assinatura de duas testemunhas, não é requisito de validade de um contrato, salvo hipóteses expressas previstas em lei. A assinatura de duas testemunhas no instrumento, por sua vez, presta-se apenas a atribuir-lhe a eficácia de título executivo, em nada modificando sua validade como ajuste de vontades

- Se é válida a contratação, igualmente válida é a nota promissória emitida em garantia do ajuste. A ausência de duas testemunhas no contrato, portanto, não retira da cambial sua eficácia executiva”.

Por sua vez, observe-se que em recursos especial o STJ já reconheceu a executividade dos contratos, dispensada a assinatura de duas testemunhas (REsp 1.495.920-DF, rel. min. Paulo Sanseverino), quando utilizada assinatura digital por meio de criptografia assimétrica:

Dessa forma abre-se o caminho para que fique superada a questão da existência, validade e eficácia dos títulos de crédito e, no que nos interessa diretamente, dos contratos eletrônicos.

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1 Esse teste foi criado por Alan Turing, pesquisador britânico, em artigo de 1950 ("Computing Machinery and Intelligence"), para o fim de aquilatar a capacidade de uma máquina no sentido de apresentar um comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano ou que não possa distimguir-se deste.

2 Em uma reunião no grupo permanente de estudos bancários do IASP aventou um participante a solução desse problema pela criação de um aplicativo de testemunhas do tipo Uber. O interessado faria a chamada de duas testemunhas que, pelo preço combinado, assinariam como tal, eletronicamente, no título de crédito ou no contrato.

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Nota: Esse texto fará parte do Vol. 4 (Fundamentos da Teoria Geral dos Contratos) da Coleção de Direito Comercial desse autor, a ser brevemente publicada pela Ed. Quartier Latin.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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