Embora não esteja explicitamente redigida no Código Eleitoral (lei 4.737, de 15 de julho de 1965), a doação de recursos não contabilizados a campanhas eleitorais é considerada conduta infratora do artigo 350, que tipifica como crime o ato de “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.
A subsunção dessa conduta ao tipo penal sempre foi tema de amplo debate jurídico, tendo como marco expressivo o julgamento do “Mensalão” (ação penal 470 - STF), no qual Ministros da Suprema Corte firmaram entendimento de que a doação não declarada, popularmente chamada de “caixa dois”, constitui crime eleitoral, na medida em que é obrigação do donatário e do doador firmar declaração de que, respectivamente, recebeu e doou recursos destinados a campanha de candidato de cargo eletivo.
Desde então, o tema vem sendo cada vez mais frequente nas pautas do Poder Judiciário, principalmente a partir da Operação Lava Jato, na qual acordos de colaboração premiada e de leniência revelaram a prática de doação não declarada de recursos financeiros a campanhas eleitorais de diversos candidatos – eleitos ou não.
Em decorrência disso, os órgãos de fiscalização e, em especial, o Ministério Público vêm promovendo uma série de medidas buscando investigar e condenar os infratores da legislação eleitoral, na amplitude de esferas que circundam a conduta ilícita – penal, cível e administrativa –. Uma dessas medidas é, notadamente, a ação de improbidade administrativa, regida pela lei federal 8.429, de 2 de junho de 1992, na qual o Parquet, verificando indícios ou provas de doação não contabilizada a determinado candidato eleito, promove a demanda em face do então agente público – e eventuais interlocutores que em nome deste tenham contribuído para a doação não contabilizada – e dos agentes privados, doadores dos recursos.
Todavia, é importante destacar e relembrar que a prática da conduta tipificada no Código Eleitoral, por parte de agente público – ou candidato a agente público –, nem sempre caracterizará, automática e necessariamente, ato de improbidade administrativa.
Para compreensão do tema, é imprescindível analisar o conceito de improbidade administrativa trazido pela lei federal 8.429/92 e a subsunção da conduta de agente público ou candidato a cargo eletivo em receber, solicitar ou participar de doação de recursos a campanhas eleitorais não contabilizados à Lei de Improbidade Administrativa.
Nesse sentido, e logo nos primeiros artigos, o diploma legal define atos de improbidade como aqueles “(...) praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual” (art. 1º), cujas disposições também “(...) são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” (art. 3º).
Na sequência, a lei federal 8.429/92 elenca, nos artigos 9º, 10 e 11, os atos que caracterizam e constituem improbidade administrativa. Da leitura sistemática da Lei de Improbidade, é possível extrair que um ato ilícito somente será caracterizado como improbidade administrativa se (1) praticado, de forma dolosa, por um agente público ou terceiro, (2) contra a Administração, em todas as suas esferas, órgãos, empresas, entes e entidades, e que (3) importem em enriquecimento ilícito, em razão do cargo por ele exercido (art. 9º), e/ou (4) causem lesão ao erário (art. 10), e/ou (4) atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
WALDO FAZZIO JR explica que “o delineamento da improbidade administrativa denota a inobservância de um dever, o de exercer função pública com objetivos públicos. Os fins do exercício de qualquer posição administrativa apontam para o dever de concretizar os direitos republicanos que respaldam o serviço público” e que “as condutas estigmatizadas pelo desvio dos deveres formais de uma função pública para a obtenção de benefícios privados pecuniários ou de prestígio formam a massa mais expressiva dos atos de improbidade administrativa” (FAZZIO JÚNIOR, 2016).
Das lições supra, portanto, pode-se inserir como um dos requisitos necessários à caracterização de ato ímprobo a condição de desvio do dever do agente público, enquanto no exercício de sua função.
Conclui-se, assim, que qualquer ilícito, seja ele civil ou administrativo, praticado por agente público que não esteja no exercício de sua função pública não poderá ser caracterizado como ato de improbidade administrativa, já que se faz necessário o elemento do desvio de seu dever funcional.
Feita essa breve introdução do conceito e dos requisitos para a caracterização de ato de improbidade administrativa trazidos pelo diploma legal, cabe analisar a definição e as características da doação não contabilizada e não declarada (“caixa dois”), em campanhas eleitorais.
Nesse sentido, e como dito anteriormente, considera-se “caixa dois” as doações realizadas por pessoa física ou jurídica1 a um candidato (pessoa física) a cargo eletivo, as quais não foram oficialmente contabilizadas e declaradas à Justiça Eleitoral.
Cabe ressalvar, neste ponto, que “caixa dois” eleitoral, em que pese ser considerado crime, não é, necessariamente, sinônimo de corrupção, também ilícito penal2. Isso porque, enquanto o caixa dois é um ato tipificado no artigo 350 do Código Eleitoral como a omissão, em documento público, de declaração prestada à Justiça Eleitoral, relativa ao recebimento, origem e utilização de valores na campanha de determinado candidato a cargo eletivo, o ato de corrupção passiva é aquele praticado por agente público, que solicita ou recebe vantagem indevida em razão de sua função pública, nos termos do artigo 317 do Código Penal.
Outro ponto que diferencia os ilícitos penais é o sujeito ativo. Enquanto o “caixa dois” pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum) como, por exemplo, aquele que se candidata a um cargo eletivo e que, portanto, não é considerado agente público ou político, a corrupção passiva exige, necessariamente, a prática do ato por agente público, em razão de sua função pública (crime próprio).
Ainda no campo da evidente distinção entre os aludidos ilícitos, destaca-se a motivação do agente público. No caso em que a doação recebida por um particular candidato a cargo eletivo, cujo montante não foi contabilizado e que se destina exclusivamente ao custeio de campanha eleitoral, há a configuração do “caixa dois” eleitoral. Situação contrária ocorre na prática do crime de corrupção passiva, em que o agente público recebe, solicita ou aceita promessa indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, em razão de sua função, por já ter prestado ou ao menos com a intenção de prestar, omitir ou retardar ato de ofício, infringindo dever funcional.
Assim, tem-se as seguintes premissas, importantes para a análise do tema proposto:
(i) Caracteriza-se ato de improbidade administrativa aquele (1) praticado, de forma dolosa, por agente público, no exercício de sua função pública, (2) contra a Administração, em todas as suas esferas, órgãos, empresas, entes e entidades, e que (3) importe enriquecimento ilícito, em razão do cargo por ele exercido (art. 9º), e/ou (4) cause lesão ao erário (art. 10), e/ou (4) atente contra os princípios da Administração Pública (art. 11);
(ii) Caracteriza-se como doação não contabilizada, ou “caixa dois”, o ato de um candidato a cargo eletivo – e, portanto, ainda não considerado agente público ou político – receber recursos financeiros para campanha eleitoral e não os declarar em sua prestação de contas à Justiça Eleitoral, conduta esta tipificada no artigo 350 do Código Eleitoral;
(iii) “Caixa dois” e “corrupção” são ilícitos penais que, embora em algumas situações práticas possam estar simultaneamente presentes, tratam-se de tipos distintos, sendo importante destacar que também se diferencia o sujeito ativo de cada um; enquanto o “caixa dois” não exige a prática por agente público, o ato de corrupção necessariamente deverá ser realizado por indivíduo investido em função pública e com motivação a ela correlata.
Do raciocínio que se construiu até aqui, a conclusão que se chega é a de que “caixa dois” nem sempre se enquadrará, de forma automática, nos requisitos caracterizadores do ato de improbidade administrativa.
Isso porque, o sujeito ativo deve, necessariamente, ser um agente público, de modo que o donatário de recurso não contabilizado e declarado à Justiça Eleitoral não necessariamente será agente público, pelo menos enquanto no exercício de campanha eleitoral.
Veja-se que, nesse sentido, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define que “[d]ois são os requisitos para a caracterização do agente público: um, de ordem objetiva, isto é, a natureza estatal da atividade desempenhada; outro, de ordem subjetiva: a investidura nela” (BANDEIRA DE MELLO, 2010. P. 244-245).
Ou seja, para caracterizar um indivíduo como agente público, deverá ser verificado se (i) sua atividade tem natureza estatal, bem como se (ii) aquele indivíduo está investido nesta função.
Sendo um candidato a cargo eletivo um sujeito que almeja um mandato e função pública, conclui-se, portanto, que a ele não se pode atribuir a característica de agente público, visto que ainda não exerce atividade de natureza estatal e, muito menos, está investido na função ou cargo a que se propõe ser eleito.
É nesse sentido a literalidade do artigo 9º da Lei de Improbidade, que confirma esse raciocínio, na medida em que dispõe que “constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° (...)”.
Exige-se, portanto, não só que o sujeito ativo seja agente público, como também que esteja no exercício de seu cargo, mandato, função, emprego ou atividade pública.
Um candidato a cargo eletivo, portanto, ainda não está no exercício de seu mandato, de modo que não se aplicam as disposições da lei federal 8.429/92.
Por fim, é importante destacar que a conclusão a que se chega no presente artigo não se aplica aos casos nos
O tema ainda é bastante debatido, porém a conclusão a que se chega é de que a doação não declarada de recursos (“caixa dois”) em campanha eleitoral nem sempre será enquadrada como ato de improbidade administrativa, sendo imprescindível a análise da conduta dos agentes envolvidos e do uso efetivo de suas funções públicas para constatar se a obtenção dos recursos se deu em troca de vantagem indevida a particular, e que implique em enriquecimento ilícito do agente público, bem como em lesão ao erário ou ao patrimônio público e/ou infração aos princípios da Administração Pública.
___________________
1 A partir do ano de 2015, após o julgamento da ADI nº 4650, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a doação de recursos de pessoas jurídicas para financiamento eleitoral.
2 Nesse sentido, vide Ação Penal nº 1.003, proposta pelo Ministério Público em face de Gleisi Hoffmann, em trâmite perante o STF, em que os Ministros Relator e Revisor desclassificaram a conduta de crime de corrupção passiva, mas a condenaram por “caixa dois”. Os votos foram vencidos, e a Ré foi absolvida, no entanto, o exemplo é importante para corroborar que um ilícito não é sinônimo de outro, nem está intimamente a ele ligado.
___________________
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
___________________
*Camillo Giamundo é especialista e mestrando em Direito Administrativo e advogado no escritório Giamundo Neto Advogados.