Com origens no comércio internacional, as cláusulas da nação mais favorecida (NMF), que encerram o tratamento da nação mais favorecida, têm adquirido importância cada vez maior no antitruste e no direito de investimentos. Ainda que este último âmbito de aplicação seja mais recente, talvez precisamente por isso seja tão importante investigar a forma como essas cláusulas são tratadas em matéria de investimentos. É o que se propõe o presente artigo.
Trata-se de uma cláusula que, em linhas gerais, garante o tratamento mais favorável já concedido a um terceiro à contraparte de um acordo-base. Sua origem remonta à Carta de Havana1, oportunidade em que os Membros se comprometeram a “não discriminar os investidores estrangeiros”. Quando a cláusula foi positivada no acordo que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT) de 1994, o tratamento NMF tornou-se recorrente em múltiplos acordos a níveis bilateral, regional e multilateral, tanto no comércio internacional quanto em investimentos.
Com aplicação mais recorrente no comércio internacional, ramo em que a cláusula de nação mais favorecida é considerada um pilar, a redação das cláusulas NMF pode variar de forma significativa, a depender do conteúdo e do escopo de cada acordo em que é inserida. As principais funções encerradas pela cláusula NMF se mantêm, contudo, constantes a cada acordo.
Em linhas gerais, essas funções encerram o princípio da não discriminação, obrigação já há muito presente nas relações internacionais e que exige constante adaptação dos compromissos previstos. Schwarzenberger2 identifica quatro principais funções dessas cláusulas: (i) informacional, (ii) obrigação de cooperação, (iii) obrigação de vedar tratamento discriminatório, e (iv) exercício constante de contrapartida.
As duas primeiras encerram obrigações positivas para as Partes de um acordo que incluam disposições NMF. A primeira que os Estados signatários de um acordo tenham um bom conhecimento regulatório e econômico de seu país, para que consigam calcular os riscos das negociações comerciais. O devido controle de conhecimento diminui os custos e aumenta a previsibilidade das transações. Já a segunda se refere a uma obrigação positiva de cooperar, de fomentar as negociações em busca de vantagens recíprocas e interdependência comercial.
As duas últimas, por sua vez, dispõem sobre as funções negativas das Partes. A proibição de tratamento discriminatório exige que os Estados estendam, incondicionada e automaticamente, as condições anteriormente garantidas aos atuais parceiros. Trata-se de uma importante positivação do princípio de não discriminação que se encontra no preâmbulo do GATT. A quarta função tem caráter estabilizador, garantindo uma contrapartida entre benefícios observados e vantagens concedidas. Assim, a dinâmica do tratamento NMF, no que diz respeito aos direitos e às obrigações, consiste na exata contrapartida das vantagens concedidas pelo Estado-promissor.
Essas funções estão resumidas no quadro abaixo:
Fonte: MARSSOLA, Júlia. Acordos Internacionais de Investimentos no Brasil – Análise do tratamento da nação mais favorecida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
Vale lembrar que, pela natureza do tratamento NMF, sua aplicação depende do tratamento conferido a outros investidores ou Estados, ou seja, trata-se de uma cláusula contingente ou relativa. Assim, uma cláusula NMF pode ter o condão de estender ao país exportador de capital regras mais favoráveis já concedidas pelo país receptor de capital a terceiros Estados parceiros. Quando o país exportador de capital se vale dessa estrutura para adquirir condições mais vantajosas, pode se verificar o fenômeno do free rider, ou efeito carona, em português.
Este elemento é particularmente relevante quando avaliamos a inclusão do tratamento NMF em investimentos. Isso porque, diferentemente da aplicação clássica do conceito no bojo do comércio internacional, em que os acordos são firmados entre dois Estados; as cláusulas NMF inseridas em acordos de investimentos abarcam “investimentos e investidores”. Ou seja, a indicação de indivíduos como beneficiários desse tratamento não discriminatório não apenas altera o caráter interestatal das obrigações encerradas pela cláusula NMF no comércio internacional como também confere a possibilidade de que indivíduos litiguem internacionalmente contra Estados.
Além dessa característica, figuram entre as questões especialmente importantes para o tratamento NMF em investimentos a determinação do (i) escopo temporal do acordo – isto é, se será aplicado apenas à fase anterior ou às fases tanto anterior quanto posterior aos investimentos; (ii) das exceções de aplicação e (iii) da nacionalidade ou outro vínculo entre o investidor e seu país de origem, determinação particularmente difícil3.
Para além da importância do compromisso mesmo de não discriminação encerrado pela cláusula, o tratamento NMF busca também reduzir as diferenças de regime jurídico aplicável a cada um dos investidores de um acordo. Se o padrão desse tratamento está em praticamente todos os acordos de investimento4 e considerando que o Brasil, além de um dos maiores destinos de investimentos do mundo, tem presença cada vez maior de suas empresas e de seu capital no exterior, entender a aplicação da cláusula da nação mais favorecida nos acordos de investimentos é fundamental para que possamos adaptar nossas políticas públicas de proteção e promoção de investimentos internacionais.
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*Este artigo foi elaborado com base no livro MARSSOLA, Júlia. Acordos Internacionais de Investimentos no Brasil – Análise do tratamento da nação mais favorecida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
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1 Entre 1945 e 1948, o esforço conjunto da comunidade internacional em criar uma entidade multilateral do comércio foi materializado na Carta de Havana, que criou a primeira versão desta entidade, conhecida como International Trade Organization (ITO). Ainda que nunca tenha efetivamente produzido seus efeitos pretendidos, culminou na elaboração do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT) 1994, que deu origem, mais tarde, à Organização Mundial do Comércio (OMC) tal qual a conhecemos hoje. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Carta de Havana, abril de 1948; WILCOX, Clair. A Charter for World Trade. Nova York: Macmillan, 1949.
2 SCHWARZENBERGER, Georg. The principles and standards of international economic. Recueil des Cours, Leiden, v. 117, n. 1, p. 1-96, 1966, p. 71.
3 FONSECA, Karla C. Investimentos estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos Bilaterais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 104.
4 UNCTAD. Bilateral Investment Treaties 1995-2006 – Trends in Investment Rulemaking. Genebra: UNCTAD, 2007.
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*Júlia Marssola é advogada e consultora de Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados.