Desde o final do ano de 2018, com a promulgação da lei 13.786/18 (“Lei dos Distratos Imobiliários”), algumas discussões vieram à tona tanto com relação ao direito material, quanto com relação ao direito processual.
De início, pode-se observar que alguns juristas, em especial aqueles que defendem associações de consumidores, se colocaram contrários à lei, mormente, no que tange aos percentuais de cláusula penal fixados no referido diploma legal (teto de 50% para imóveis construídos sob o regime do patrimônio de afetação).
Ocorre que, alguns desses entendimentos contrários, fugiram do debate técnico imobiliário, limitando-se a “levantar a bandeira do direito dos consumidores” e bradando que os percentuais e as hipóteses de aplicação seriam abusivos.
Diante dessa insurgência, entendemos necessário realizar uma breve explicação sobre alguns conceitos ainda nebulosos para uma parte daqueles que militam com o Direito Imobiliário, com a finalidade de proporcionar uma melhor compreensão do quanto ora se debate. Assim vejamos:
- Incorporação Imobiliária: Trata-se da atividade empresarial exercida com o intuito de promover e realizar a construção de edificações compostas de unidades autônomas para a sua alienação total ou parcial pelo Incorporador. (Parágrafo Único do art. 28 da lei 4.591/64);
- Sociedade de Propósito Específico (SPE): as SPEs são sociedades empresárias constituídas pela incorporadora com o objetivo certo e determinado de incorporar determinado empreendimento, daí o nome de Propósito Específico. Com a conclusão das obras as quais havia sido destinada, a sociedade perderá seu objeto e será extinta;
- Patrimônio de Afetação: [...] mecanismo [que] funciona mediante destaque dos recursos e obrigações ligados ao empreendimento do patrimônio geral restante, mantendo-os atrelados à construção do empreendimento em benefício dos dois grupos de credores [adquirentes das unidades e financiador da obra] em especial. Em nenhum momento deixa o incorporador de exercer suas qualidades de proprietário e/ou construtor da obra, mas tal exercício passa a ser atrelado a deveres fiduciários quanto à conclusão da obra e regularização das matrículas”.1;
- Distrato: é uma das modalidades de extinção contratual. De forma técnica, se utiliza a expressão distrato quando ambas as partes concordam com a dissolução do contrato firmado. Sua definição “encontra inserta na própria definição de contrato, como acordo para constituir, regular ou extinguir relações jurídicas patrimoniais” (LOUREIRO). Assim, por se tratar de um contrato [liberatório], deve ser feito através de instrumento próprio, o qual deverá seguir os mesmos parâmetros utilizados no instrumento contratual constitutivo;
- Cláusula penal: Previsão contratual que estipula uma prefixação das perdas e danos decorrentes de eventual inadimplemento, por uma das partes, da prestação obrigacional que lhe cabia, prevista no contrato. Não se trata de punição, mas de ressarcimento à parte que foi lesada pelo descumprimento contratual. É o caso do incorporador que, ao atrasar a conclusão das obras, deve indenizar o consumidor; e, por outro lado, o consumidor, ao deixar de adimplir com os pagamentos aos quais se obrigou, ressarce os prejuízos ao incorporador; e, por fim,
- Percentual de retenção: montante que incide sobre o valor pago pelo consumidor e que deverá ser revertido em favor do incorporador, em caso de resilição contratual imotivada, ou em decorrência de sua inadimplência.
Com esses conceitos em mente, vamos prosseguir com o nosso debate, em especial com relação à possibilidade de aplicação da lei 13.786/18, para resolução de litígios envolvendo contratos firmados anteriormente à vigência dessa lei.
Muito se questiona acerca da aplicabilidade da “Lei dos Distratos” em contratos anteriores à sua vigência, defendendo-se a tese de que os direitos e obrigações contraídos com a assinatura destes instrumentos já seriam ato jurídico perfeito e, portanto, não poderiam ser atingidos por lei posterior. Inclusive, já existem algumas decisões proferida no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo apontando nesse sentido.
Contudo, tais decisões têm se limitado apenas à aplicação da lei para análise de cláusulas contratuais (previsão de cláusula de tolerância, necessidade de previsão de quadro resumo, entre outras), não enveredando para questões atinentes às indenizações decorrentes da mora de quaisquer das partes.
Desta feita, direcionaremos o breve estudo para a possibilidade de aplicação de lei 13.786/18 para resolução de conflitos que tenham por objeto indenizações por inadimplemento.
Até a entrada em vigor dessa lei, as decisões acerca de indenizações se baseavam em normas gerais (art. 413, do Código Civil, p.ex.) e nos usos e costumes (fixação de percentual para indenização mensal). Contudo, a partir de dezembro de 2018, o legislador passou a prever hipóteses e percentuais claros, com o intuito de atribuir a essas relações maior segurança jurídica às partes.
Com o advento da nova lei, foram criadas as seguintes modalidades de cláusula penal:
- Em caso de rescisão de contrato firmado para aquisição de unidade autônoma que não tenha sido incorporada no regime de patrimônio de afetação e que seja decorrente exclusivamente de inadimplemento do consumidor, a incorporadora poderá reter o percentual máximo de 25% sobre os valores efetivamente pagos pelo consumidor;
- Em caso de rescisão de contrato firmado para aquisição de unidade autônoma que tenha sido incorporada no regime de patrimônio de afetação e que seja decorrente exclusivamente de inadimplemento do consumidor, a incorporadora poderá reter o percentual máximo de 50% sobre os valores efetivamente pagos pelo consumidor; e
- Em caso de rescisão de contrato firmado para aquisição de lote, decorrente exclusivamente de inadimplemento do consumidor, a loteadora poderá reter o percentual máximo de 10% sobre o valor atualizado do contrato firmado.
As referidas distinções não surgiram a esmo, uma vez que, em uma incorporação imobiliária erigida dentro do regime de patrimônio de afetação, o prejuízo ocasionado pelo distrato de uma unidade é muito mais relevante do que quando se incorpora sem a utilização desse instituto.
Como visto acima, ao optar por instituir o regime de patrimônio de afetação para a construção de determinado empreendimento imobiliário, a incorporadora vincula diretamente a essa incorporação todo o aporte inicial e todos os valores recebidos das aquisições de unidade futuras.
Tal fato importa dizer que todos os valores pagos pelos adquirentes são exclusivamente voltados para a conclusão da própria obra, através da compra de material, do pagamento da folha salarial, de fornecedores, etc.
Desta forma, amplamente justificado que o percentual de retenção máximo seja de 50% sobre os valores a serem restituídos, não havendo que se cogitar qualquer tipo de abusividade.
Ora, o risco do negócio é todo da incorporadora – fora todo os demais componentes do risco Brasil que se envolvem no negócio – sendo de rigor a diminuição ao máximo de prejuízos que decorram de inadimplência do consumidor.
Com isso em mente, temos que uma questão pertinente é se os parâmetros de retenção acima arrolados, e introduzidos em nosso ordenamento jurídico através da publicação da lei 13.786/18, podem ser utilizados em demandas cujo objeto seja contratos de venda e compra firmados em momento anterior à entrada em vigência da lei?
A nosso ver, a resposta é o famigerado “depende”.
Isso porque, dependeria do objeto e do pedido da ação intentada.
Ou seja, caso o autor pleiteasse a nulidade da previsão contratual e fixação pelo juízo dos valores que eventualmente poderão ser restituídos, entendemos que é o caso de se aplicar as previsões dispostas na lei 13.786/18.
Isso porque o próprio autor da ação busca a desconstituição do contrato celebrado do qual se busca a preservação do ato jurídico perfeito – ante a jurisprudência já consolidada de possibilidade de rescisão de compromisso de venda e compra.
Dessa forma, em caso de ajuizamento de ação de “rescisão contratual”, em que a culpa pela ruptura seja do consumidor adquirente, e em que se pleiteie a restituição de valores de modo diverso daquele previsto em contrato, reputamos perfeitamente cabível a utilização dos parâmetros fixados pela lei 13.786/18, respeitadas as demais especificidades de cada demanda.
Por outro lado, se o autor visa a rescisão contratual, com a consequente restituição de valores nos exatos termos do que constam no contrato firmado, entendemos que a lei não deve ser aplicada, mantendo-se a higidez do ato jurídico perfeito — situação na qual os tribunais pátrios têm modulado o percentual de retenção.
Contudo, para completar, ainda existe um ponto crucial que precisa ser melhor entendido: aparentemente, ainda que tenha sido previsto expressamente em lei um teto para a fixação da retenção, pode ser que o legislador tenha mantido a possibilidade para o judiciário modular o percentual de retenção.
Essa situação salta aos olhos quando da analise, de forma um pouco mais atenta, do quanto consta na letra da lei.
O legislador utilizou as expressões (i) “não poderá exceder a 25%” (inciso II do art. 67-A introduzido na lei 4.591/64); (ii) “percentual máximo de 50%” (§5º do mesmo art. 67-A); e, (iii) “limitado a um desconto de 10%”, (art. 32-A introduzido na lei 4.591/64).
A questão gira em torno da pergunta: tais expressões revelariam a natureza de “cláusula aberta” da norma insculpida em cada um dos dispositivos, ou teriam sido apenas fruto de técnica de redação?
Vejam que as normas abertas ou gerais tratam-se daquelas que apresentam definição ampla, que permite ao seu aplicador realizar interpretação de grande amplitude. Isso significa que ao magistrado é franqueada a possibilidade de interpretação da mesma norma para aplicação à diversas situações diferentes para solução da questão.
Nota-se, portanto, que da forma que foram escritos os dispositivos supramencionados, aparentemente seria possível haver uma modulação/ajuste desses percentuais máximos de retenção pelo judiciário, permanecendo a aplicação da regra geral do art. 413 do Código Civil para os casos de pedido de desistência da aquisição.
Apesar disso, entendemos que a faculdade é quanto a elaboração da cláusula penal, que terá um teto máximo para fixação. Não se trataria, portanto, da possibilidade de modulação, especialmente em respeito ao princípio da pacta sunt servanda, devendo ser cumprido o quanto avençado pelos contratantes.
Contudo, em que pesem aos diversos argumentos e posicionamentos quanto aos temas, teremos que aguardar o desenrolar da atuação jurisdicional para, somente então, chegarmos às conclusões que buscamos – como se comportará o judiciário frente aos novos desafios surgidos com a nova “Lei dos Distratos”.
Até lá, vale a reflexão: a lei 13.786/18 conseguiria, de fato, resolver o problema relativos aos distratos do compromisso de compra e venda de imóveis em incorporação imobiliária, trazendo maior segurança jurídica aos negócios realizados?
Spoiler alert: “Pensamos que sim”
1 BARRETO, P; TERSI, V. O patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias e a destruição de dividendos: frágil proteção do art. 31-A da Lei n. 4.591/64. Operações Imobiliárias: estruturação e tributação. São Paulo, p. 956/975, 2016
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*Eduardo Vasconcelos de Moraes é advogado especialista em Direito Imobiliário pela FGV/SP.
*Fernando Flamini Cordeiro é advogado contencioso imobiliário estratégico e pós-graduando em Direito Imobiliário.