A ficção imita a vida tanto quanto a vida imita a ficção. Por isso, é muito fácil encontrarmos - nos filmes, séries, novelas e demais reproduções artísticas - cenas parecidas com as que nos deparamos na vida real. Nessa mesma linha de raciocínio, também é natural verificarmos uma reprodução dos comportamentos transmitidos na “telinha” pelas famílias brasileiras, que, em sua maioria, seguem modas e modos dos personagens mais impactantes ou populares das tramas.
A aclamada série Game of Thrones não difere da ideia acima trazida, pois abarca dentro de si uma reprodução fantástica dos comportamentos humanos de uma forma palpável. Por isso, para quem se permite entrar no mundo medieval nela retratado, é possível estabelecer uma identificação com o mundo real, nos benefícios e nas mazelas vividas pelas famílias patriarcais da trama, o que torna os episódios cada vez mais atrativos.
Como fã incondicional da série, não poderia deixar de estabelecer um enquadramento das situações nucleares vividas pelas principais famílias da ficção (Stark e Lannister) com o ramo do Direito que atuo (Direito de Família), em sua forma mais atual, principalmente levando-se em consideração que GOT chegou ao seu tão aguardado fim.
Nos tópicos abaixo algumas questões familiares serão abordadas, vejamos:
Os casamentos inválidos de Sansa Stark
Como os assíduos espectadores da série bem sabem, Sansa Stark se casou por duas vezes durante a trama. Entretanto, em virtude dos motivos torpes que envolveram tais uniões, os casamentos foram simplesmente desastrosos e de nada valeram.
O primeiro casamento da jovem foi contraído com Tyrion Lannister, em virtude de uma armação do Patriarca Lannister (Tywin), que destruiu os planos da união de Sansa com Willas Tyrell, já que empurrou seu filho para a moça sob fortes ameaças, pois sabia que com a morte de Robb Stark, irmão de Sansa, a pretendente herdaria Winterfell.
Esse casamento bizarro também foi alvo de grandes piadas e ameaças por parte do Rei Joffrey Baratheon, que sempre fazia questão de zombar da estatura de seu tio (Tyrion) e de dizer que faria atrocidades com a jovem, como estuprá-la, por exemplo.
Entretanto, é importante destacar que, apesar de pertencer à família Lannister, o esposo Tyrion tinha plena consciência do quanto a jovem estava “forçada” ao se casar. Por isso, em respeito à ausência de vontade plena de Sansa para a união, deixou de consumar o casamento, ou seja, não manteve relações sexuais com a moça (ausência de coabitação).
Não obstante a série não seja brasileira, levando em consideração o que dita a legislação civil pátria sobre o assunto, podemos dizer que tal casamento, no Brasil, seria considerado inválido e poderia ser alvo de anulabilidade, tendo em vista que o art. 1.558, do Código Civil, esclarece que o consentimento de um dos cônjuges captado com “fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares” caracteriza coação
Veja-se, nesse caso, que somente a própria Sansa Stark poderia pleitear a anulação de seu casamento, pelo teor do art. 1.559, do Código Civil, observando o prazo de 4 anos, a contar da data da celebração (art. 1.560, inciso IV, do mesmo Diploma Legal), e a inexistência de coabitação como requisitos indispensáveis para tanto.
Ultrapassado tal ponto, o segundo casamento de Sansa Stark foi simplesmente traumatizante. A moça não teve a mesma sorte de contar com um esposo gentil que se preocupava com sua integridade física e mental.
Iludida e enganada sobre as reais intenções de Ramsay Bolton, Sansa foi estuprada em sua própria noite de núpcias. Tal ato assistido por Theon Greyjoy, amigo de infância da jovem e escravo de torturas de Ramsay. Cenas de horror foram vistas nesse capítulo específico da série.
Levando-se em consideração as consequências jurídicas de tal situação, é possível afirmar ser cabível o pleito de anulação do casamento fundado em erro essencial quanto à pessoa do outro, pois verificou-se vício de vontade por parte de Sansa, que acreditava que Ramsay tratava-se de pessoa completamente diferente daquela que demonstrou ser depois de se casar e nunca imaginou que ele seria capaz de violentá-la.
Segundo o art. 1.557, inciso I, do Código Civil, “considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”, hipótese legal essa que se enquadra perfeitamente no caso fictício.
Observando-se referido fato, o prazo para o pedido de anulação seria de três anos, também contado da data de celebração da união conjugal (art. 1.560, inciso III).
A adoção à brasileira de John Snow
A história de vida de Jon Snow é, no mínimo, intrigante, pois envolve supostos abandonos e acolhimentos no decorrer de Game of Thrones.
Na maior parte da série os espectadores são levados a pensar que Jon Snow é um filho havido fora do casamento, abandonado por sua mãe biológica e acolhido por seu pai Ned Stark, patriarca que pede a compreensão da esposa Catelyn Stark para a criação do menino, o que, de fato, não ocorre.
Jon segue sendo chamado de bastardo durante boa parte de sua trajetória e, apesar de reconhecido por seus irmãos, ele nunca se sente um verdadeiro Stark.
Para sua surpresa, em virtude das reviravoltas da trama (visão concedida a Bradon Stark e achado de informações por Samwell Tarly, na biblioteca da Cidadela), Jon toma conhecimento de que, na verdade, é filho de Aegon Targaryen e Lyanna Stark, que tiveram um relacionamento secreto gerador de diversos desentendimentos com Robert Baratheon, personagem para quem Lyanna estava “prometida”.
Veja-se que Ned Stark promoveu a “adoção” de Jon a pedido de sua irmã Lyanna, que tinha certeza que seu filho seria morto se Robert soubesse de sua existência. Apesar de ser tio do menino, Ned, então, disse a todos que Jon era seu filho havido fora do casamento, o que causou grandes intrigas e acabou manchando, de certa forma, sua reputação de homem correto.
A atitude tomada por Ned Stark pode ser enquadrada como caso de “adoção à brasileira”, que trata-se de uma “adoção ilegal”, geralmente caracterizada pela entrega de criança por parte de sua família biológica a estranho(s), que, provavelmente, a registrará(ão) como se seu filho fosse, burlando o processo de adoção regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 39 a 52-D).
Referida prática pode configurar os crimes de “parto suposto, supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido” (art. 242, do Código Penal) e de “falsificação de documento público” (art. 297, do mesmo Diploma Legal), quando inseridas informações falsas no registro da criança.
Veja-se que, apesar da punição existente na esfera penal, por vezes o Poder Judiciário tem sido maleável em virtude do melhor interesse da criança, concedendo Habeas Corpus e afastando acolhimentos institucionais e determinações de busca e apreensão de menor, para deixar que a criança adotada irregularmente continue sob a guarda da família registral.
A impossibilidade de diferenciação entre filhos sob a ótica da família Stark
Como dito acima, na época em que era considerado bastardo, Jon Snow sempre recebeu um tratamento diferenciado por parte da sociedade em que convivia e, até mesmo, por parte da família Stark.
Exemplo a ser citado acerca desse desdém foi a entrega de um lobo albino a Jon, quando a família encontrou diversos filhotes desgarrados da mãe loba que havia morrido, em virtude de o animal ser considerado o mais fraco da alcateia.
O próprio sobrenome de Jon, qual seja “Snow”, era o fornecido aos filhos considerados bastardos que tivessem nascido no Norte. Por isso, quem o conhecia já sabia logo de plano que ele não poderia ser tratado como um Stark.
Porém, é importante destacar que essa diferenciação arcaica entre filhos é proibida na esfera jurídica brasileira.
A Constituição Federal, em seu art. 227, § 6º, preceitua que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Tal disposição é repetida no art. 1.596, do Código Civil, para salientar a proteção conferida aos filhos sem distinção de origem. Assim, qualquer prática ou indicação discriminatória direcionada a filhos havidos fora do casamento é vedada, cabendo a quem se sentir ofendido procurar guarida nas esferas cível e criminal, a depender do caso.
Os impedimentos para o casamento/união estável: Cersei e Jamie Lannister
O amor de Cersei e Jamie Lannister é demonstrado desde o início da série, tanto que o casal além de nascer junto também morre junto, como se viu no quinto episódio desta última temporada.
Os gêmeos retratam o típico caso de incesto, repugnado pela legislação brasileira que repele a possibilidade de união conjugal ou estável por irmãos, como se verifica nos artigos 1.521, inciso IV e 1.723, § 1º, do Código Civil. É o famoso caso de impedimento matrimonial, também aplicável à união de fato.
Ressalte-se que, eventualmente, se os referidos irmãos conseguissem se casar ou contraíssem união estável, qualquer desses relacionamentos seria eivado de nulidade, pela infringência de impedimento (art. 1.548, inciso I, do Código Civil).
A quebra de promessa de casamento por Robb Stark
O episódio “Casamento Vermelho”, exibido na terceira temporada, é um dos mais marcantes da série pois retrata um verdadeiro “show de mortes” voltado aos Starks, com direito a facadas na barriga de uma gestante, flechadas no Rei do Norte e em seu lobo (Vento Cinzento) e corte no pescoço da matricarca Catelyn Stark.
Citada trama é protagonizada por Walder Frey, em virtude de uma aliança realizada com os Lannisters e os Boltons para tomar Winterfell dos Starks. Uma das motivações desse elo é a vingança pela quebra da promessa de casamento realizada por Robb Stark em relação a uma das filhas de Frey.
Robb deixa de cumprir com o prometido por ter se apaixonado por Talisa Maegyr, enfermeira que se tornou sua esposa e futura mãe de descendente Stark, o que não chegou a se concretizar por sua lastimável morte.
No Brasil, a quebra de promessa de casamento ou término de noivado/esponsais não recebe punição tamanha como a morte, fugindo totalmente dos extremos da ficção.
A legislação civil pátria não trata tal assunto de forma específica, por isso as decorrências do rompimento de noivado somente podem ser abarcadas pelas disposições genéricas que envolvem a prática de ato ilícito, contidas nos artigos 186 e 967, do Código Civil, que ditam, em suma, que a violação de direito ou a proporção de dano geram o dever de reparação.
Dessa forma, pela interpretação dos artigos mencionados é possível afirmar que somente a quebra de promessa de casamento que gere dano é passível de reparação. Nesse sentido, noivados encerrados de forma vexatória ou términos efetuados às vésperas da cerimônia são considerados motivos ensejadores de responsabilização pelo entendimento majoritário da jurisprudência pátria.
Portanto, conclui-se que ninguém é obrigado a permanecer numa relação contra sua vontade. Entretanto, o término de noivado deve ser ponderado de acordo com as circunstâncias e o momento da relação, de forma que não acarrete dano à outra parte que está envolvida no relacionamento.
Conclusão
A admirada série chega ao seu fim trazendo consigo uma oportunidade de discussão sobre as questões de fato que a envolvem.
Quem aplica o direito não consegue ficar alheio às situações problemáticas trazidas na trama, pois tais fatos podem ser alvo de decorrências jurídicas, como acima exposto.
Que a exposição aqui formulada tenha alcançado seu principal objetivo, qual seja: trazer reflexões aos fãs de GOT, que já se sentem saudosos pelo fim dessa longa trajetória, repleta de aventuras e emoções.
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*Paula Dias Cruz é advogada do escritório Braga Nascimento e Zilio Advogados Associados.