A MP 881 de 2019 traz ao ordenamento jurídico brasileiro a denominada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, como ferramenta executiva de favorecimento e estímulo ao incentivo da iniciativa privada.
A MP pode ser comparada ao projeto de Franklin Roosevelt, o famoso “New Deal”, pelo qual o então presidente dos Estados Unidos da América, implementou medidas de estímulo ao crescimento econômico para superação da crise após a quebra da bolsa de valores de 1929 e a imersão de grande parte da população na pobreza.
Claramente as ideais do New Deal foram influenciais por Keynes. Como diria o grande economista “a mais importante agenda do Estado não está relacionada com as atividades que os indivíduos já realizam a nível particular, mas às funções que estão fora do âmbito individual, àquelas decisões que ninguém adota se o Estado não o faz” (in: General theory of employment, interest and money).
Assim como Keynes, o ministro da fazenda do atual Governo brasileiro possui formação liberal na Escola de Chicago oriunda dos pensamentos de Friedman a respeito da intervenção mínima do Estado, como a privatização.
Feita tal introdução teórica, anote-se que a MP 881 vem ao mercado retraído, com grande número de desemprego, pouca injeção de dinheiro no mercado, talvez oriundo do medo diante das investigações da Lava Jato e a promessa de endurecimento de crimes econômicos. De acordo com dados do IBGE a economia retraiu 0,99% no primeiro trimestre de 2019.
A grande questão é que essa retração é cíclica, eis que a crise dos setores se espalha daí a razão pela qual, como disse Keynes, o Estado tem que dizer e fazer aquilo que o setor privado não pode.
Pois bem. Entre as questões promovidas destaca-se a ingerência no Direito Contratual. A MP 881 promove alteração pontual no Código Civil Brasileiro modificando o artigo 421 para acrescer a seguinte redação: “Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.”
O referido dispositivo ressuscita o vetusto pacta sunt servanda e significa claramente óbice à revisão dos contratos pelo Poder Judiciário. A redação não é ocasional. Quando se lê “forma externa” se consagra que a revisão dos contratos deve se dar por vontade das próprias partes contratantes e não por interferência de terceiro.
Buscando na Teoria Geral do Processo a forma externa de resolução de conflitos é justamente a ingerência pelo Terceiro Estado-Juiz que atua em substituição à vontade das partes, decidindo o conflito com traço de definitividade (a potencial formação da coisa julgada).
Hans Wehberg traz notícia histórica de que o pacta sunt servanda possui assento no Alcorão no qual se encontra a redação “seja verdadeiro com as obrigações assumidas [...] Sua obrigação assumida em presença de Alá [...] Alá é seu testemunho” (in: R. Cio poI., Rio de Janeiro, (3): 57·69, juI.set. 1969).
O contrato, portanto, se atribuía essa natureza sacramental como algo indissolúvel. Somado a isto o contrato é a forma de o particular legislar entre si a partir e dentro das autorizações contidas em lei.
Assim, por meio do instrumento contratual o particular celebraria entre si uma lei, um compromisso inderrogável, de modo que decorreria a impossibilidade da quebra da avença. Eis a compreensão do pacta sunt servanda do ponto de vista filosófico do contrato.
A possibilidade de o contrato ser revisado é uma conquista de poucas décadas. No Brasil o Código de Defesa do Consumidor possibilita a irrestrita revisão para afastar cláusulas abusivas, nos termos do art. 6º, V.
Nas relações privadas (excluindo, portanto, o manto de proteção do CDC) somente em 2002 com o advento do (novo) Código Civil é que se passou a cogitar de tal possibilidade, diante do princípio da função social disposto no art. 421 que dispunha na versão original “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
A possibilidade de revisar contratos é amplamente utilizada nos contratos bancários. Percebe-se claramente a mudança de paradigma pelo Superior Tribunal de Justiça. Em 2004 o STJ editou a seguinte sumula: “Súmula 286. A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”.
Esta súmula possibilita a renegociação e a discussão a respeito de ilegalidades contratuais, ainda que a dívida tenha sido objeto de confissão, considerando que é práxis a concessão de elastério e a diluição de parcelas para opportuno tempore.
Porém, pouco tempo depois, no ano de 2008, o STJ aprovou nova súmula: “súmula 381. Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. O resultado desta mudança é a restrição da intervenção de “forma externa” a qual alude, agora, a MP 881.
Assim, os reflexos da MP 881 se sentirão na seara dos contratos bancários com a restrição da possibilidade revisional, devendo, agora, se prestigiar o que está no contrato em detrimento da interferência do Estado-juiz.
Certamente haverá discussão sobre a aplicação da MP 881 no âmbito do Código de Defesa do Consumidor, que se constitui em microssistema próprio de regulamentação, ou se a restrição se conterá no âmbito das relações civis.
De todo, para além dos contratos bancários, a MP 881 impactara na revisão dos contratos em geral como mudança de paradigma da forma como o Estado enxerga o contrato, que retorna ao seu status quo de um lei entre as partes que excepcionalmente pode sofrer controle externo.
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*Cristiano Aparecido Quinaia é mestre em Direito Constitucional - CEUB