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O STJ e a relevância dos precedentes judiciais como fenômeno de transformação do Direito

Verifica-se que, na atualidade, mesmo no ambiente jurídico da Europa continental, a transcendência dos precedentes vem sobrelevada, sendo que boa parte da doutrina, certamente influenciada pela longa e profícua experiência histórica, tece importantes considerações acerca da sua força vinculante.

9/5/2019

1 Valor do precedente no discurso judicial

É certo que uma teoria da argumentação jurídica que porventura deixasse de considerar a importância dos precedentes judiciais como objeto de reflexão perderia um de seus mais valiosos elementos. 

Sim, porque, além dos escopos teórico e político, a função prática do discurso judicial deve ser apta a oferecer subsídios úteis para o desempenho da tarefa de arrazoar, produzir, interpretar e aplicar o Direito. Desse modo, os precedentes judiciais ingressam na complexa seara do raciocínio jurídico como elemento paradigmático visando, sobretudo, a persuadir e a convencer. 

Verifica-se que, na atualidade, mesmo no ambiente jurídico da Europa continental, a transcendência dos precedentes vem sobrelevada, sendo que boa parte da doutrina, certamente influenciada pela longa e profícua experiência histórica, tece importantes considerações acerca da sua força vinculante.

Partindo do pressuposto de que o produto da atividade judicial (Richterrecht) constitui fonte “irrecusável” de conhecimento do Direito, Giovanni Orrù, que escreveu importante monografia de comparação jurídica entre os Direitos italiano e alemão, arrola, em abono da tese da eficácia obrigatória dos precedentes, os seguintes argumentos:

1º) a jurisprudência consolidada garante a certeza e a previsibilidade do Direito, e, portanto, evita posteriores oscilações e discussões no que se refere à interpretação da lei. Os cidadãos baseiam as suas opções não apenas nos textos legais vigentes, mas, também, na tendência dos precedentes dos tribunais, que proporcionam àqueles, na medida do possível, o conhecimento de seus respectivos direitos. A uniformidade da jurisprudência integra o cálculo de natureza econômica, sendo a previsibilidade que daquela decorre um pressuposto inafastável para o seguro desenvolvimento do tráfico jurídico-comercial: uma mudança abrupta e não suficientemente justificada da orientação pretoriana solapa a estabilidade dos negócios;

2º) a jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça, porque situações assemelhadas são tratadas do mesmíssimo modo, e a democracia participativa exige a paridade de trato entre os membros da comunhão social. O tratamento desigual pelos tribunais é forte indício de injustiça em pelo menos um dos casos. Tão somente justificadas razões peculiares autorizam o desvio dos precedentes judiciais; 

3º) a jurisprudência consolidada evidencia submissão moral de respeito à sabedoria acumulada pela experiência, não de forma simplesmente mecânica, mas, sim, por meio de adesão crítica consciente, conseguindo detectar, entre várias situações, um núcleo central estável; e, por fim, 

4º) a jurisprudência consolidada constrói uma presunção (relativa) em prol da justiça do precedente, até porque, sem um razoável grau de confiança na anterior elaboração judicial, faltaria um dos fundamentos mais relevantes da evolução do Direito. É despiciendo dizer, nesse sentido, que um juiz solitário, colocado diante do texto legal, sem qualquer mediação oferecida pelos precedentes judiciais, não poderia, em curto espaço de tempo, chegar a resultados de qualidade.

A conciliação entre justiça e universalidade pode ser alcançada por meio da observância dos precedentes.

Orrù encerra a sua exposição afirmando que o juiz, contudo, jamais deve ser escravo do precedente judicial, porque certamente haveria aí uma abdicação da independência da livre persuasão racional, assegurada pelas modernas legislações.1 

Colocando de lado a polêmica acerca da natureza ontológica dos precedentes judiciais, quanto a ser ou não fonte primária de Direito, Robert Alexy, em obra específica sobre a argumentação jurídica, anota que a primordial justificação da utilização pragmática dos precedentes é ditada pelo “princípio da universalidade” ou da justiça formal, que impõe um tratamento isonômico para situações iguais.

A conciliação entre justiça e universalidade – segundo o referido jurista – pode ser alcançada, em regra, por meio da observância dos precedentes, sem embargo de admitir-se o abandono de uma determinada orientação pretoriana, desde que sobrevenham justificadas razões. E, ocorrendo esta hipótese, o ônus da argumentação deve ser imposto ao operador do Direito que pretenda afastar-se do precedente. Alexy (2001, p. 259) entende que, nesse particular, o princípio da inércia de Perelman é adequado, com sua exigência de que uma decisão só pode ser alterada se razões suficientes puderem ser aduzidas para tanto. 

Ao preservar a estabilidade, aplicando o precedente nas situações sucessivas análogas, os tribunais contribuem, a um só tempo, para a certeza jurídica e para a proteção da confiança na escolha do caminho trilhado pela decisão judicial.

2 O dogma da coisa julgada e a força do precedente judicial

Traçadas estas premissas, verifica-se que, após o trânsito em julgado, o pronunciamento judicial produz, em regra, coisa julgada material, tornando insuscetível de rediscussão o objeto do processo que se encerrou. A razão desse fenômeno é justificada pela exigência de estabilidade e consequente segurança das relações jurídicas. 

O selo da imutabilidade decorrente da coisa julgada é consagrado como garantia constitucional (Constituição Federal (CF), art. 5º, inciso XXXVI), não podendo ser violado nem mesmo pela lei.

Não obstante, no final do século XX, o dogma da coisa julgada passou a ser reapreciado por alguns juristas brasileiros, à luz de um valor ínsito à tutela jurisdicional, qual seja, o da justiça das decisões.

A doutrina e a jurisprudência começaram então – como destaca Dinamarco (2001, p. 13) – a despertar para a necessidade de revisar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na crença de que “não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas”. 

Assim, diante dessa nova visualização, o STF e, especialmente, o STJ, em algumas situações excepcionais, passaram a desconsiderar o caráter absoluto da coisa julgada.

Partindo do pressuposto de que a coisa julgada encontra-se sempre condicionada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, importante precedente judicial do STJ, no julgamento do RESp 240.712-SP, relatado pelo ministro José Augusto Delgado, afastou a res iudicata formada em detrimento do erário público.2 

Procurando estabelecer critérios para impedir que uma decisão judicial produza normalmente os efeitos previstos em lei, deve-se estabelecer um cotejo entre valores constitucionalmente assegurados. Observa, a propósito, Dinamarco (2001, p. 32-33) que, 

“aparentemente, a garantia da justa e prévia indenização poderia parecer destinada com exclusividade ao resguardo do direito de propriedade e, portanto, configurar-se apenas como uma proteção endereçada aos particulares em face do Estado, sem ter também este como destinatário. Essa insinuação vem não só da topologia da garantia, situada no capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivos, mas também de sua própria redação. Os precedentes jurisprudenciais que se formaram a esse respeito, todavia, apoiam-se, ainda que não tão explicitamente, em uma visão bipolar da garantia expressa pelo inc. XXIV do art. 5º constitucional. Nessa perspectiva, o preço justo figura como uma garantia com que ao mesmo tempo a Constituição Federal quer proteger a efetividade do direito de propriedade e também resguardar o Estado contra excessos indenizatórios. Nem haveria como entender de modo diferente o emprego do adjetivo justo, dado que a própria justiça é em si mesma um conceito bilateral, não se concebendo que algo seja ‘justo’ para um sujeito sem sê-lo para outro. Não se faz ‘justiça’ à custa de uma injustiça”

Entendemos que essa mesma perspectiva vale igualmente para dirimir o conflito entre coisa julgada v. direitos da personalidade, que também são garantidos pelo texto constitucional (art. 5º, inciso X).

Se, há duas décadas, alguém reproduzisse ação judicial de investigação de paternidade, cujo pedido tivesse sido julgado improcedente, certamente que o réu veria acolhida a exceção de coisa julgada que opusera. 

Hoje, contudo, o STJ, em reiterados precedentes, relativiza o princípio da auctoritas rei iudicata.

Com efeito, a segurança da prova pericial da paternidade, realizada pelo método de estudo das moléculas do DNA, tem sido reputada como um novo fundamento, a permitir a rediscussão da lide.

A força dos precedentes judiciais transcende o dogma da coisa julgada material.

A rigor, ambas as demandas – a anterior e a subsequente – irrompem absolutamente idênticas (eadem personae, causa petendi e petitum) e, por essa razão, sob o ponto de vista técnico-processual, não poderia ser admitida a análise do mérito na nova ação (art. 485, inciso V, do Código de Processo Civil – CPC). 

Todavia, dada a inequívoca relevância do interesse do demandante em ter reconhecida a sua paternidade, o STJ, não desconhecendo que a causa petendi proxima da ação de investigação somente pode ser o ato sexual, procura contornar o óbice legal, admitindo que a prova biológica pelo DNA ou, ainda, outra circunstância fática, constitui nova causa de pedir

Ficou assentado, nesse sentido, no julgamento do RESp 109.1142-RS, relatado pelo ministro César Asfor Rocha, que: 

“O fato de ter sido julgada improcedente a primeira ação de investigação da paternidade, que teve como causa de pedir a existência de concubinato, não impede o ajuizamento da segunda demanda, com outra causa petendi, qual seja, a existência do rapto consensual”.3

Extrai-se, no entanto, do texto do acórdão que o motivo precípuo do provimento do recurso foi exatamente a prova pericial que favoreceu a demandante, “com probabilidade positiva de 99%, conforme ‘laudo imunogenético de investigação de paternidade’, realizado que foi com base em amostras dos possíveis irmãos da autora [...]”. 

Em outro julgado, no RESp 226.436-PR, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, então relator, pontuou que: 

“Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido”.4 

Concluímos, destarte, que a força dos precedentes judiciais, no jogo do binômio segurançajustiça, transcende o dogma da coisa julgada material, firmando “posições que atendem aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum”,5 em prol da tutela jurisdicional justa.

3 Antecipação à lei e ruptura dos paradigmas

O desenvolvimento judicial do Direito constitui, sob o enfoque dinâmico, característica marcante da jurisprudência. Assim, em muitas situações, é possível verificar a lenta evolução de um determinado instituto, ou mesmo de uma situação fática relevante para o Direito, nas soluções que os tribunais pátrios, em particular, o STJ, conferem aos casos que lhes são submetidos à apreciação. 

Em matéria de Direito de Família, a quebra de paradigmas pela influência imediata dos precedentes é ainda mais acentuada. Inúmeras inovações inseridas em nosso vigente Código Civil (CC) nada mais representam do que a mera recepção, pela lei escrita, de orientação jurisprudencial sedimentada. Basta lembrar a reiteração de julgados acerca do crescente prestígio da figura paterna, em termos de guarda de filhos menores; ou ainda da mitigação do elemento culpa, para desconstituição da obrigação alimentar, que já vinha tomando corpo na jurisprudência mais recente.6 

Registre-se, a propósito, que a longa e rica trajetória dos direitos da concubina – desde o reconhecimento à indenização previdenciária, em caso de morte do segurado, até a plena regulamentação legislativa da união estável – constitui exemplo eloquente do desempenho de absoluta vanguarda dos precedentes judiciais. 

Concubinato era termo praticamente proscrito da legislação civil. Paulatinamente, logo após os primeiros julgados que atribuíram direito previdenciário à concubina, instituiu-se sólida corrente jurisprudencial no sentido de atenuar as injustiças decorrentes da falta de regulamentação legislativa acerca da matéria. Assim, o denominado concubinato passou a ser tratado como verdadeira sociedade de fato, por uma profusão de precedentes judiciais, no período de 1946 a 1963, ensejando a formulação da súmula 380 do STF, que instituiu a comunicação de aquestos, desde que comprovado o esforço comum, para a aquisição onerosa de bens.7 

Inicialmente, esse esforço comum era considerado, em inúmeras decisões judiciais, como a medida da participação efetiva de cada concubino para a partilha do patrimônio acumulado durante a união more uxorio.

Surgiu, então, novo posicionamento pretoriano, sustentando que, após cinco anos de concubinato, o julgamento deveria ser proferido com base na presunção iuris tantum da existência de esforço comum, o que implicava a inversão do ônus da prova para o concubino que tivesse os bens registrados em seu nome. 

Ocorre que, pouco a pouco, e mais uma vez por influxo marcante da iteração de precedentes do STJ, veio prestigiado o entendimento no sentido de que a expressão esforço comum, da mencionada súmula 380, não importava, necessariamente, participação efetiva no aumento patrimonial, bastando que a concubina houvesse contribuído indiretamente, com o seu trabalho na lida doméstica. 

Assim é que no julgamento do RESp 1.337.821-MG, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma do STJ assentou: 

“A tese de que até o advento da lei 9.278/96 se exige a comprovação do esforço comum, para que tenha o companheiro direito à metade dos bens onerosamente adquiridos na constância da união estável, é construção jurisprudencial que não se coaduna com a natureza própria de entidade familiar, conferida, muito antes, pela Constituição Federal, sob cujos influxos axiológicos deve ser interpretado todo o Direito infraconstitucional. Assim, o preenchimento do vácuo legislativo decorrente da ausência de regulamentação legal do § 3º do art. 226 da Constituição Federal impõe ao Juiz o dever de decidir no sentido que confira máxima efetividade ao dispositivo constitucional que reconhece a união estável como entidade familiar. Para tanto, observando aquilo que ordinariamente acontece – que a formação da família pressupõe o empenho mútuo, no plano material e/ou imaterial, necessário à realização plena de seus integrantes –, a solução da controvérsia outra não deve ser senão a de reconhecer, salvo as exceções legais ou se pactuado diversamente pelos companheiros, o emprego do esforço comum para a aquisição onerosa de bens no curso da vida a dois”. 

Verifica-se, afinal, que a evolução dos precedentes judiciais sobre essa importante questão social acabou tornando imperiosa a regulamentação legislativa da união estável, primeiramente, pelo art. 226, § 3º, da CF, até a disciplina dos arts. 1.723 a 1.727 do CC, que, em grande parte, positivou a linha de pensamento predominante no STJ, que, em seguida, passou a ser secundada pelos demais tribunais pátrios. 

Observe-se, outrossim, ainda na seara do Direito de Família, recente julgado da 4ª Turma do STJ, no Agravo Interno no RESp 1.738.888-PE, com voto condutor do ministro Raul Araújo, restou assentado que: 

“O Tribunal de origem manifestou-se em consonância ao entendimento desta Corte Superior de Justiça no sentido de ser possível o ajuizamento de ação de investigação de paternidade, mesmo na hipótese de existência de vínculo socioafetivo, uma vez que o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, assentado no princípio da dignidade da pessoa humana, podendo ser exercitado sem nenhuma restrição em face dos pais, não havendo falar que a existência de paternidade socioafetiva tenha o condão de obstar a busca pela verdade biológica da pessoa. O registro efetuado pelo pai afetivo não impede a busca pelo reconhecimento registral também do pai biológico, cujo reconhecimento do vínculo de filiação, com todas as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais, é seu consectário lógico. A jurisprudência desta eg. Corte é no sentido de que a inexistência de vínculo afetivo entre a investigante e o investigado não afasta o direito indisponível e imprescritível de reconhecimento da paternidade biológica”. 

Igualmente, o princípio geral da boa-fé objetiva norteou reiteradas decisões judiciais, mesmo antes da edição do Código de Defesa do Consumidor, tendo sido definitivamente recepcionado com todas letras pelo CC. 

É interessante notar que, no Brasil, o art. 131 do Código Comercial de 1850 contém regra cuja importância jamais lhe foi atribuída seja pela doutrina, seja pelos tribunais. Dispõe esse referido preceito que: 

“Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras [...]”.

Esquecido em seu contexto histórico, essa antiga norma não vinha, no mais das vezes,8 invocada nem mesmo por uma vertente jurisprudencial de vanguarda, que extrai os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio das prestações do atual texto constitucional que protege a dignidade da pessoa humana, prega a solidariedade social e garante a igualdade substancial.

O vigente CC agasalhou expressamente, nos arts. 113, 421 e 422, o princípio da boa-fé objetiva. Cumpre notar, todavia, que antes da positivação desse regramento impunha-se ao julgador que o acolhia extensa motivação da sentença para justificar a adoção de preceito não contemplado em nosso ordenamento jurídico.10

Nessa mesma linha de considerações sobre a contribuição dos precedentes judiciais, digna também de destaque foi a evolução dos chamados direitos da personalidade. De início, negava-se a sua existência sob o argumento de que não poderia haver direitos do homem sobre sua própria pessoa. Tão amplos direitos poderiam, até mesmo, fundamentar a legalidade do suicídio...

Coube à doutrina e à ju risprudência elaborar a distinção entre suicídio voluntário e suicídio involuntário.

Ocorre que, segundo entendimento que passou a ganhar terreno na doutrina e na jurisprudência, os direitos da personalidade prescindem de previsão legal, por decorrerem de princípios básicos do ordenamento jurídico. 

Diversas constituições incluem, tradicionalmente, entre os direitos e garantias individuais, inúmeros direitos da personalidade, tais como o direito à vida, à privacidade, a inviolabilidade de domicílio e de correspondência. Alguns países, como Itália, Portugal, França, Argentina e, mais recentemente, o Brasil, inseriram, em seus respectivos CCs, normas sobre os direitos da personalidade. 

Na verdade, esses direitos inicialmente foram sendo moldados, em especial, pelo STJ, e somente em seguida é que se tornaram reconhecidos pela legislação.11 

Entre nós, muito antes da promulgação da Carta Magna de 1988, foram sem dúvida os precedentes judiciais que descortinaram os princípios e as características comuns dos diferentes direitos da personalidade, no sentido de delimitá-los e possibilitar a sua ulterior sistematização. 

Ainda uma vez, no campo do direito das obrigações, coube à doutrina e, em particular, à jurisprudência elaborar a distinção entre suicídio voluntário e suicídio involuntário para fins de incidência ou não da cláusula de não indenizar.12 

Foi somente com a promulgação do CC que essa matéria, sedimentada há muito tempo nos tribunais, veio regulamentada no art. 798: 

“O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros 2 (dois) anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente. Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado”.

A evolução dessa questão culminou com a posição pretoriana que vem sendo prestigiada pelo STJ, como se extrai de recente acórdão da 3ª turma, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em RESp 1.065.074-SP, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, textual: 

“O suicídio, nos contratos de seguro de vida individuais ou coletivos firmados sob a égide do Código Civil de 2002, é risco não coberto se cometido nos primeiros 2 (dois) anos de vigência da avença. Com a novel legislação, tornou-se inócuo definir a motivação do ato suicida, se voluntário ou involuntário, se premeditado ou não. Inaplicabilidade das súmulas 105/STF e 61/STJ, editadas com base no Código Civil de 1916. O art. 798 do CC/2002 estabeleceu novo critério, de índole temporal e objetiva, para a hipótese de suicídio do segurado no contrato de seguro de vida. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicidar no prazo de carência, sendo assegurado, todavia, o direito de ressarcimento do montante da reserva técnica já formada. Após esgotado esse prazo, a seguradora não poderá se eximir de pagar a indenização alegando que o suicídio foi premeditado. Os arts. 797, parágrafo único, e 798 do Código Civil de 2002 impõem à seguradora, na hipótese de morte do segurado por suicídio dentro do prazo de carência legal, a obrigação de restituir a reserva técnica ao beneficiário, sobretudo em razão do caráter previdenciário do contrato, sem fazer nenhuma ressalva quanto à espécie de seguro, se em grupo ou individual, não se conferindo ao intérprete proceder a uma interpretação restritiva na hipótese (art. 423 do CC/2002)”. 

É importante lembrar, ainda, que o CC de 1916 e tampouco a legislação extravagante não continham normas expressas sobre a lesão, como causa de invalidade do negócio jurídico (art. 157 do CC), sobre a resolução por excessiva onerosidade (arts. 478 a 480 do CC), ou mesmo acerca do enriquecimento sem causa (arts. 884 a 886 do CC). A despeito dessa lacuna, há incontáveis precedentes judiciais produzidos durante a vigência do diploma revogado, que permitiram, nas referidas situações, a revisão dos contratos ou decretaram a sua invalidade,13 ensejando verdadeira sistematização dogmática não positivada, mas que, em época posterior, foi expressamente contemplada pela legislação civil.

Inversamente, no entanto, alguns institutos previstos na lei passaram a ser desprezados pelos tribunais, até perderem toda a imperatividade ínsita às normas legais. 

Assim, por exemplo, o superamento cultural do crime de adultério gerou o completo desuso do correlato impedimento matrimonial entre o cônjuge adúltero e o seu corréu, até ser completamente abolido do texto art. 1.521 do CC em vigor. 

Também o defloramento da mulher, como causa de anulabilidade de casamento, perdeu força nos tribunais e, com o passar do tempo, foi acintosamente desconsiderado pelos precedentes judiciais, até deixar de ser deduzido como causa de pedir. 

Eis aí uma abreviada demonstração de múltiplos exemplos da inafastável influência dos precedentes judiciais, iluminados pela inexorável evolução social, como fenômeno de transformação do direito positivo. 

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1 Cf. Giovanni Orrù (1983, p. 74-85).

2 1a T., DJU de 24/4/2000. V., a respeito, Dinamarco (2001, p. 14-15).

3 Rev. do STJ, 153, 2002, p. 309 e ss. 

4 Rev. do STJ, 154, 2002, p. 403 e ss. 

5 STJ, 4ª T., REsp 226.436-PR, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU de 4/2/2002.

6 Cf., respectivamente, arts. 1.584 e 1.694, § 2º, do CC. 

7 Súmula 380 do STF: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. V., a respeito, Álvaro Villaça Azevedo (1986, p. 85 e ss.).

8 Invoque-se, como exceção, o acórdão da 4ª Turma do STJ, proferido no REsp 256.456-SP, relatado pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar (DJU de 1º/7/2002), em que houve modificação substancial do mercado, devendo ser suportada por ambas as partes contratantes, de acordo com a boa-fé objetiva (art. 131 do Código Comercial). 

9 V., e.g., Gustavo Tepedino (2000, p. 13). 10. Consulte-se, a propósito, interessante transcrição e comentário de vários julgados precursores da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, fazendo-se justamente referência à extensa fundamentação, dada a falta de regramento legal expresso na legislação pátria, Célia Barbosa Abreu Slawinski (2000, p. 77 e ss.). V., ainda, amplamente, acerca da conceituação, estrutura e função das cláusulas gerais, inclusive no CC em vigor, Judith Martins-Costa (2000, p. 328 e ss.). V., para uma análise crítica da inserção do princípio da boa-fé no art. 421 do CC, Antonio Junqueira de Azevedo (2000, p. 11 e ss.).

11 V., nesse sentido, Walter Moraes (1979, p. 39); Carlos Alberto Bittar (1989, p. 35). 

12 Cf., e.g., STJ, 3ª T., AgReg. no AgInstr 426.067-SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU de 17/6/2002; 4a T., REsp 16.560-SC, Rel. Min. Fontes de Alencar, DJU de 22/6/1992.

13 V., e.g., STJ, 6a T., REsp 36.279-SP, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU de 5/4/1999; 3a T., EmbDecl no REsp 46.723SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJU de 13/3/1995; 5a T., REsp 34.687-RS, Rel. Min. Assis Toledo, DJU de 2/8/1993. V., sobre a evolução histórica dos referidos institutos, dentre outros, Caio Mário da Silva Pereira (1999); Paulo Carneiro Maia (1959).

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.

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*José Rogério Cruz e Tucci é advogado, ex-presidente da AASP e professor titular da Faculdade de Direito da USP.

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