O benefício da vida em sociedade consiste na partilha e fruição das trocas de acordo com uma divisão do trabalho. Há nisso uma racionalidade existenciária: não ter que procurar água nas fontes, se outros se ocupam da sua distribuição; não ter que produzir fogo, quando há quem forneça energia; não ter que ir à caça de alimentos, porque há empresas (projeções individuais ou corporativas da personalidade) que os produzem, incrementam e vendem; não ter, enfim, de fazer de cada dia uma aventura incerta, perigosa e sem roteiro; e, com isso, gozar de (algum) tempo (que seja) para l’ozio creativo, isto é, para o momento da singularidade. O homem, afinal, não nasceu para ser um ser gregário, um animal de rebanho (Aristóteles); nasceu para fazer-se a si e, assim, ao fazer-se, deixando pai e mãe (Marcos, 10;7), ser único; o homem, enfim, é o que há de mais espantoso em todo o orbe da Terra (Sófocles). Ele é esse espaço aberto entre a necessidade e o desejo de criação; ele é o próprio espaço da liberdade, no qual se move a complexidade da existência. Nele se desenvolve a vida-de-relação, que prefere a permuta ao arrebatamento; a organização à gambiarra; o pensamento à força; a iniciativa à servidão. É a vida a começar do rés do chão da realidade, a engendrar o novo e a promover a circulação de ideias e bens; é a vida a medrar, a crescer e a se expandir para o alto.
Tudo isso – perdoem-nos o leitor por todas as obviedades ditas até aqui – é anterior, paralelo, subsistente e resistente ao Estado. A solidariedade social não decorre de nenhum decreto de autoridade; nesse princípio, que é, no fundo, um princípio ascético – de uma religião, aliás, decaída –, reside um dos erros originários de todas as doutrinas eudaimônicas da salvação. A solidariedade decorre do pathos vital, da tensão do arco retesado da existência, do entrelaçamento, do adensamento, do desenvolvimento, do conhecimento, da complexidade, da crítica, da tolerância e, pois, do respeito entre as pessoas. É obra de uma pedagogia da vivência. Os indivíduos (agentes culturais e artífices do mundo) é que formam a sociedade; elas é que criam esse nexo de coesão. O Estado dele participa, para que esse nexo não se desintegre – para isso coleta impostos, com vistas à manutenção das estruturas essenciais; o Estado dele participa para que esse nexo se expanda – com a preservação das estruturas de produção. Não será – leia-se: não seja - o Estado, então, um estorvo às empresas (e, no limite, ao indivíduo). Não será ele – não seja! -, mais precisamente, a causa da sua ruína. Não será ele – não seja! -, enfim, a razão de ser da sociedade – um Estado para si mesmo, über alles.
Se o Estado, então, quer alguma coisa, dizia Pontes de Miranda, que o diga em lei – esse é o parâmetro de racionalidade para a sua ação (seguir a régua da legalidade) e a garantia mínima de proteção dos indivíduos. Se, no entanto, o Estado quer tudo, e essa é a lei explicitamente gravada na sua tábua, então trata-se de um Estado Totalitário. Agora, se o Estado quer tudo, não o diz assim claramente em lei, mas, não obstante, o arrasta para si – por vários mecanismos, notadamente a partir de atos e interpretações oficiais -, então tem-se um Estado Absoluto mal dissimulado; um Estado que não é mais instrumental, mas um fim em si mesmo que a sociedade deve suportar e financiar (não era isso que fazia o Terceiro Estado e as camadas sem Estado na França Absolutista?).
Veja-se o exemplo das empresas em recuperação judicial. O Estado, como partícipe e mediador da coesão social, deveria ser o primeiro e mais combativo defensor da preservação das atividades empresariais, principalmente em casos de crise. Afinal, a empresa é uma unidade de organização interconectada com outros centros de interesses (trabalhadores, empregados, parceiros, consumidores e o próprio Estado). Sua sorte, então, é o proveito dos que com ela interagem. Seu revés, a desventura de todos. A crise fatal de uma grande empresa representa encerramento de postos de trabalho, desabastecimento, redução da arrecadação tributária, dentre outros gravíssimos problemas para a economia. Não por outra razão a lei, que deveria ser o instrumento e o limite à atuação estatal, reconheceu que o ônus da recuperação das empresas em crise é da sociedade, sem que se exclua dessa responsabilidade, por óbvio, o próprio Estado.
Isso porque, em alguma medida, todos os atores, na pujança ou na crise, participam do risco de uma empresa. A solidariedade social marca a existência e a estrutura de uma atividade empresarial. Essa é a lógica de uma ordem econômica fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, e que protege o regular funcionamento do mercado e dos atores que nele atuam (CF, art. 170). Então, como é natural: ubi bonus, ibi onus, de todos, em prol de todos. De modo que, sendo solvável e salvável a empresa – e é sempre o mercado que decide -, a sociedade inteira, por todos os seus atores, é concitada a participar da sua recuperação. Todos concorrem, inclusive o Estado. Ainda mais quando o mercado e a empresa, em comunhão, alcançam uma solução consensual na forma da lei.
Quisesse a lei o contrário – e a legalidade (art. 5, II, CF), lembre-se, é, na origem, uma proteção contra o próprio Estado; a legalidade, na sua acepção primeira, é uma restrição a iniciativas estatais não autorizadas –, quisesse, enfim, a lei que o Estado não participasse, tout court, e simplesmente, de nenhum risco empresarial, ela que assim o dissesse, com todas as letras. Mas ela não diz. Nem isso teria cabimento num Estado Republicano (art. 1º, CF), que, antes de mais nada, é o Estado da abolição ou da mitigação máxima dos privilégios. A lei, a esse respeito (art. 6º, §7º, da lei 11.101/05), apenas excepciona o indispensável ao funcionamento do Estado: tributos. A lei fala em “execuções de natureza fiscal”. Ela não iguala todos os créditos públicos, desigualando-os, de modo absoluto e desproporcional, dos créditos privados. Ela distingue, pois, e o faz bem, o que comporta distinção, ao excluir, do risco só o que diga respeito ao Fisco propriamente. Enfim, ao que é essencial e, mais do que isso, compulsório, e não ao que é acidental, tais como multas administrativas ou obrigações contratuais.
E o art. 4º, §4º, da lei 6.830/80, complementando essa lógica sistêmica e republicana, expressamente restringe a aplicação do Código Tributário Nacional – CTN ao regime jurídico do crédito não tributário. Ou seja, não se aplica ao crédito não tributário o disposto no art. 29 da lei 6.830/80, bem como o disposto no art. 187 do Código Tributário Nacional, já que expressamente excluídos, pelo art. 4º, §4º, acima mencionado. E são exatamente estes artigos que determinam a exclusão do crédito tributário (e não fiscal) do âmbito da recuperação judicial. O Estado, afinal, não vive de multas. Seria tomar a regra pela exceção, e o direito, pelo torto. Multas administrativas e dívidas não tributárias, portanto, submetem-se ao processo de recuperação judicial, devendo as execuções para sua cobrança ser suspensas, na forma da regra geral do art. 6º da lei 11.101/05. Não há nada, com efeito, que as excepcione.
O que o Estado vem defendendo, no entanto, nos mais diversos processos de recuperação judicial em curso, é um regalismo feudal contra legem: a igualdade do público seria diferente – na sua visão, seria melhor – da igualdade do privado (art. 5º, caput, CF). O Estado, em síntese, por seus vários entes, seria a grande banca que só ganha, e nunca perde. Seria a evolução histórica, ou melhor, seria a involução civilizatória do The King can do no wrong para o The State can never lose. Com uma agravante, aqui, enormíssima: o Estado, especialmente na pessoa de suas Agências Reguladoras, autarquias e demais órgãos especializados no sancionamento da iniciativa privada, contribuem, amiúde, de forma determinante e desproporcional, para o estado de crise de muitas empresas. Este, todavia, é outro problema, da qual já se tratou alhures: órgãos pretensamente reguladores, ao longo dos anos, têm se transformado de agências de fiscalização e fomento em órgãos políticos pautados pela desenfreada fome de arrecadação, sem nenhum compromisso com a racionalidade e a razoabilidade, nem muito menos com o próprio serviço regulado.
Bom exemplo se retira do julgamento do RESp 1.521.999/SP, pela primeira seção do STJ, afetado à sistemática dos recursos repetitivos. Naquele caso, foi apreciada a natureza jurídica do encargo legal de 20% (vinte por cento) previsto no artigo 1º do decreto-lei 1.025/69, bem como em qual categoria do art. 83 da lei 11.101/05 tal encargo deve ser enquadrado no âmbito de um processo de falência. E, mesmo após diversos ministros manifestarem entendimento de que o referido encargo teria natureza e faria as vezes de honorários em favor dos Procuradores Federais, o Estado obteve êxito na singela tese de que tal encargo, tão somente por ser cobrado por meio de execuções fiscais, deveria receber, em sede de falência, o mesmo privilégio conferido aos créditos de natureza tributária. Ou seja, a forma definiria o conteúdo; o frasco, a essência; e o nome, a coisa (obs: o precedente, no entanto, trata de falência, e não de recuperação judicial; aqui, essa lógica, de per si equivocada, seria impraticável; mas essa hipótese ainda não foi julgada).
Na raiz da causalidade da crise de muitas empresas, situa-se, portanto, o próprio Estado, que, no entanto, estrategicamente, quer se evadir integralmente do regime concursal, até mesmo naquilo que não pode ser considerado tributo, isto é, mesmo que não se trate de crédito de natureza fiscal. Mas dizer, como diz o Estado brasileiro, por outras palavras, que tudo é tributo, bastando que a cobrança do crédito público se dê por execução fiscal:
- é dizer que a sociedade civil organizada politicamente se faz de cima para baixo, de César para os súditos – que vibram nos coliseus por paliativos de pão e circo;
- é dizer, então, que tudo começa por César;
- é dizer, assim, que tudo é primeiramente de César;
- é dizer, ainda, que a César só importa arrecadar e seu manter na sua estrutural obesa, imperial e, pois, autoritária;
- é negar, também, o fundamento da nossa República, radicado na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III); afinal se essa locução vaga e imprecisa, de finalidade muitas vezes meramente retórica e demagógica, tiver algum significado e sentido útil e concreto, só poderá ser – não haveria outro – o de um compromisso sério e vinculante com o desenvolvimento da pessoa e das projeções de sua personalidade; o indivíduo, portanto, e não o coletivo; a pessoa, então, e não o Estado;
- é negar, então, o próprio sentido racional que a história, depois de tantos percalços, desvelou para a cláusula geral e estruturante do Estado de Direito como um Estado de distância (Kloepfer) do Estado, isto é, que assegura um espaço de autonomia aos indivíduos perante este;
- é negar, portanto, a realidade de que hoje, em tempos de pós-modernidade - depois de todas as teorias da salvação terem se desmilinguido como água e seus herdeiros inconsoláveis ainda chorarem lamúrias líquidas de desencanto -, quando se fala de democracia, só é possível admitir-se a democracia do cidadão (Häberle), do indivíduo, não mais as dos partidos, e sem mais retornos anacrônicos ao fantasma de Rousseau;
- é negar que, em tempos de República.com, o que se deve promover, sempre mais, é o acesso à informação (a internet é um relevante canal como jamais houve); a possibilidade de escolha (mercado); as soluções de consenso (contratos); e a (possibilidade de) discussão (personalizada) das questões (processos decisórios);
- é acreditar, ainda, na ideia falida e carcomida de que, tudo sendo político, cabe ao Estado a tudo mediar, quando a vida, nas suas vertentes socias, econômicas e culturais se move por lógicas auto referenciais e auto criativas (Luhmann); “The inner blessings – happiness, peace of mind, exaltation – must be sought by each man within himself alone” (Ludwig Von Mises);1
- é acreditar, pois, na figura irreal de que, em uma pós-modernidade a cada dia mais líquida (Bauman), a pesadíssima estrutura estatal será capaz de acompanhar e dirigir uma sociedade marcada pela velocidade, volatilidade e dinâmica;
- é acreditar, por fim, de modo arraigado e incurável, por demais na força da autoridade reacionária e de menos na dignidade e na capacidade inventiva do homem.
A sociedade, aliás, não corrompe o homem - daí já se vê quão ingênuos e tísicos (sem falar na generosa dose de cinismo e ressentimento aí embutida) são os pressupostos existenciários rousseauistas. O homem é que se corrompe – e o Poder, certamente, o ajuda. A sociedade é para promover a singularidade. Não tendo que se ocupar de tudo, cada um pode canalizar sua energia para aquilo que o realiza. Os jacobinos, no entanto, dirão, recitando a mesma ladainha murcha e molenga da velha cartilha: “o mundo é injusto”; ao que replicaremos: sim, mas o Estado é mais, especialmente o brasileiro! A História está aí para narrar o seu duro e seco testemunho: nunca houve, em tempo algum, um aparelhamento da força tão gelado e tão poderoso; nunca! Não é mais possível, então, supor – como supuseram as doutrinas da salvação, como supôs a Teoria Pura do Direito, e como ainda, herdeiros daquela, supõem os defensores do dirigismo –, que a vida tenha como marco zero uma Carta Política da qual tudo, já previamente mapeado, se possa deduzir (a Constituição, no entanto, não é aberta por incluir tudo; essa, na verdade, é a Constituição fechada; a Constituição aberta mantém-se aberta ao dinamismo da vida, que vem de baixo para cima). O preço é muito alto: o preço, que pagamos hoje, é o de a sociedade ter que trabalhar para manter esse Leviatã – que, afinal de contas, já nem mais nos protege de nos aniquilarmos a nós mesmos, uns aos outros, diariamente (ou seja, o Estado nem sequer dá mais conta da sua função primeira). A sociedade brasileira, antes excluída da organização política, migrou para outro excesso nefasto: entregou tudo à Constituição Federal de 1988. Hoje, passados mais de trinta anos, ela é refém do Estado. Hoje ela é uma sociedade infantilizada, depauperada, alquebrada e de mãos atadas: não há um passo que possa dar que não necessite antes de um aval estatal. Os sintomas disso são por demais explícitos na cultura, na economia, e nos costumes. O Estado, então, que não produz riquezas (e quando o faz, faz mal; e quando o faz bem, é que certamente poderia ser feito melhor; essa, ao menos, é a nossa experiência in terrae brasilis), traga tudo para si, com a força invencível do maior dos buracos negros. É isso o que se vê no Congresso; é isso o que se vê no Executivo; é isso o que se vê nas interpretações forenses (veja-se, ainda, só por curiosidade, a história da jurisprudência tributária no Brasil). É isso, aliás, o que se viu no acórdão acima. O publicismo está em vias de quebrar o país – em breve, caberá apenas administrar o seu espólio. De tudo, então (de um país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza), se terá feito nada, dando à luz um rato, num avesso milagre da criação.
Sim, jacobinos (e todos os seres iluminados que subiram a montanha, viram a verdade e depois desceram-na trazendo nas mãos ao povo sua tábua de valores com a fórmula definitiva do amor; e, junto com ela, todas as artimanhas de Procusto ...) o mundo é injusto; e o Direito é torto. Mas nada, nem ninguém, nem o Estado, jamais poderá tolher a possibilidade de uma boa ideia, de um bom pensamento, de um bom verso, de uma boa estória, de uma boa ação e de uma boa empresa (engenhosa, profícua e próspera). Nada, nem ninguém, nem nenhuma autoridade, jamais poderá impedir o homem de, ao criar e fazer algo no mundo, experimentar o sabor forte e tonificante da liberdade. Isso é o que nos restou no interior da caixa de Pandora. Na ontologia do humano, não basta ser. Ou, por outras palavras, ser não é apenas ser (Ortega y Gasset); ser é fazer(-se) e refazer(-se) continuamente. Mas nós erigimos o desfazer como meta (ah! sempre os modernistas...). Revolucionário é andar de tanga ... E ainda por cima essa associação maligna entre o não-fazer e o Estado-tudo-nos-prometer-sem-cumprir – nessa lógica deletéria de achar normal que o público deve esticar, difundir e procrastinar sua equação financeira deficitária, que não se paga. O Estado a ocupar, e a inflar, enfim, esse espaço ingente de uma inércia continental. Enquanto esse infame paradigma do homem brasileiro não se submeter a uma dura autocrítica e refutação, não seremos mais do que isso – non plus ultra.
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* PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, in “Comentários à Constituição de 1967”, Tomo V, art.153, §2º. Ed. Revista dos Tribunais, 2ª Edição: 1971, fl. 3.
1 VON MISES, Ludwig, in “Liberalism”, Indianapolis, Bettina Bien Greaves, 2005, p. 150.
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*Bruno Di Marino é mestre em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ; sócio do escritório Basilio Advogados.
*Rogerio Marinho é mestrando em Ciências Jurídico Políticas pela Universidade Portucalense/Porto e advogado do escritório Basilio Advogados.