Migalhas de Peso

A Empresa Simples de Crédito e o lado fraco da força

Pode-se dizer que estarão presentes, em muitas das operações pretendidas, uma quantidade preponderante de fatores negativos do que positivos na análise do risco a ser assumido pelas ESCs, do que decorrerá, mais correntemente, a cobrança de juros mais elevados, até mesmo do que aqueles que os bancos tradicionais exigiriam dos interessados.

6/5/2019

Devemos abordar em seguida alguns aspectos potencialmente negativos da ESC, especialmente no tocante ao objetivo da prática de juros mais baixos do que os cobrados pelos grandes conglomerados financeiros.

Considere-se para tal fim, inicialmente o afastamento expresso por meio do art. 5º, § 4º da LC 167/19, das limitações da Lei da Usura e do Código Civil quanto às taxas de juros, fato que coloca o tema no campo da liberdade das convenções. Assim sendo, em tese, a taxa de juros livremente concertada entre as partes deverá seguir a chamada lei do mercado, a qual opera segundo alguns parâmetros bastante conhecidos: oferta e procura, risco, prazo, volume da operação, garantias, perfil financeiro do cliente, etc.

Vejamos criticamente esses parâmetros, a partir do perfil das ESCs e dos seus clientes para os quais estão voltadas nos termos de sua criação, sabendo-se que eles naturalmente se interligam:

(a) Quanto maior for a oferta de crédito, menor a taxa de juros

Assim sendo, será necessário que exista certo grau de multiplicidade de ESCs em um mesmo município para que o volume de oferta de crédito aumente entre elas mesmas e entre elas e os bancos tradicionais. É provável que não venha a existir significativa concorrência entre aquelas empresas e os bancos, que continuarão não tendo muito interesse em agir nesse mercado, a conferir.  Esse fator da criação de diversas ESCs no mesmo município dependerá de muitas circunstâncias, entre os quais o tamanho do município e a existência de certa quantidade de capitalistas desejosos de atuar no campo em tela.

(b) Quanto maior o risco, mais elevada a taxa de juros

A medida desse risco dependerá claramente do perfil financeiro do interessado na obtenção de crédito, o que dependerá do seu histórico e do nível de informações que a respeito daquele poderá obter a ESC, para o fim da redução da assimetria informacional. Claro o acesso ao Cadastro Positivo seria um elemento importante para esse fim, além das fontes tradicionalmente abertas aos interessados, de maneira geral, tema que será visto abaixo.

(c) Quanto maior o prazo, maior o risco

É evidente que uma operação de crédito tem o seu risco aumentado na medida em que o prazo se alonga. Isto porque, como todos sabemos, as circunstâncias sobre a possibilidade de adimplemento da obrigação ficam sujeitas a fatores diversos, a partir da economia como um todo, chegando à situação particular do tomador dos recursos, que pode ficar desempregado.

Tenha-se em conta os destinatários das operações com as ESCs, nos termos do art. 1º da LC 167/19, são precisamente aqueles que se revelam os primeiros agentes econômicos a serem afetados por ocasião de crises financeiras. Nos seus casos é sintomático que eles não terão gordura financeira suficiente para ser queimada até que sua situação possa normalizar-se, tornando-se inadimplentes em curto prazo perante os seus credores.

A economia brasileira vive de sobressaltos diários, mormente nos novos tempos, dentro dos quais o panorama econômico/financeiro tem se alterado (principalmente para o lado negativo) a cada fala desastrada dos governantes, o que tem se tornado uma regra. Nesse horizonte, não pode um dador de crédito estipular com alguma margem de certeza o nível de segurança de cada operação, elemente que diminui sensivelmente quanto maior for o seu prazo. E entre nós, da forma como a economia se encontra e é tradicional no Brasil, seis meses se revela como longuíssimo prazo.

(d) Quanto maior o volume da operação, mais elevada a taxa de juros

É evidente que, dentro do horizonte das operações das ESCs a definição de volume de crédito elevado é de natureza relativa. Assim sendo cinco mil reais para um tomador pode significar uma importância extremamente elevada em relação ao nível do seu negócio. E, conjugado esse fator com os demais, a probabilidade de inadimplemento total se eleva, não se prevendo que o credor venha a aceitar um pagamento parcial e deixe as coisas por isso mesmo. Neste sentido, a tese do adimplemento substancial tão cara aos consumeristas, não poderá ser acatada porque a repetição desse inadimplemento por certa parcela dos financiados determinará, por sua vez, a quebra da ESC, já que ela, de fato, não deverá ter reservas suficientes para suportar tal situação. Daí a cobrança de juros mais elevados quanto maior, relativamente, for o montante da operação.

(e) Quanto mais eficazes as garantias, menor a taxa de juros

Sabemos que no direito brasileiro, garantias eficazes não passam de ficção jurídica, considerada a realidade do que ocorre no plano processual. É interessante observar que, na prática, a melhor garantia soy jo, como é afirmado jocosamente em certas circunstâncias da vida. Se o devedor não pagar, para o credor o recurso à garantia da operação entrará no campo da baixíssima probabilidade de êxito, com custo relativo elevado. E se é assim, evidentemente os juros cobrados em patamar mais elevado compensarão esse risco adicional.

(f) Perfil financeiro do cliente

Esse fator é relevante em qualquer relação a todo e qualquer tipo de cliente, mas quanto aos destinatários dos empréstimos a serem concedidos pelas ESCs ele se revela de natureza fundamental, de acordo com algumas das considerações acima feitas. Muitas vezes nem sequer qualquer perfil financeiro terá o candidato a uma operação, porque ele estará começando o seu negócio e os recursos pretendidos representarão boa parte (ou até mesmo a integralidade) do capital que utilizará na sua atividade. Neste sentido o financiador estará agindo no escuro ao emprestar a importância almejada pelo cliente.

Ainda que a lei não seja clara a respeito, entende-se que, pela leitura a contrário senso do art. 5º, § 2º, as ESCs terão acesso ao cadastro positivo, já que elas têm a obrigação de fornecer informações sobre adimplemento e inadimplemento dos seus clientes para bancos de dados. O exercício desse direito lhes dará melhores informações sobre o perfil do seu cliente, com resultado positivo na diminuição da assimetria informacional existente, do que resulta a possibilidade da cobrança de juros mais baixos.

Em conclusão pode-se dizer que estarão presentes, em muitas das operações pretendidas, uma quantidade preponderante de fatores negativos do que positivos na análise do risco a ser assumido pelas ESCs, do que decorrerá, mais correntemente, a cobrança de juros mais elevados, até mesmo do que aqueles que os bancos tradicionais exigiriam dos interessados. Afinal de contas, para estes últimos, algumas perdas poderão ser suportadas pelo todo da carteira correspondente e, até mesmo diante de uma quebra mais generalizada dos favorecidos nessa carteira, pelo suporte que outras mais rentáveis possam dar aos bancos tradicionais.

Assim sendo, somente o futuro dirá se tal tipo de empresa financeira poderá ser efetivamente um instrumento para a baixa da taxa de juros diante desse tipo de clientes, ou se tudo não terá passado de mais um sonho de uma noite de verão

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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