Lá se vão dez anos desde a edição desta revista em comemoração aos 20 anos do STJ (AASP, 2009). E quantos fatos, desde então, foram acrescentados à farta crônica judiciária...
Naquela oportunidade escrevi sobre temas que a mim se mostravam palpitantes, momentosos, em relação aos quais a jurisprudência criminal da Corte cidadã parecia inclinar-se, considerados aspectos doutrinários e legais, apoiados em relevantes precedentes (RUIZ FILHO, 2009, p. 21). Arrisquei-me, ao final daqueles quatro lustros de existência do tribunal, a duas assertivas sobre temas de sua competência na área penal, a partir das quais construí meu raciocínio: descaminho é crime tributário; prazo para interceptação telefônica é de 30 dias.
Depois que o STF, em 2003, considerou requisito de procedibilidade que houvesse o esgotamento do processo administrativo para atribuir crime à sonegação fiscal, concluí ser inevitável que para o descaminho fosse se exigir o mesmo, tendo em conta que este crime não é senão a sonegação fiscal numa operação de comércio exterior.¹ Os bens jurídicos sob tutela penal são praticamente os mesmos e, portanto, nada justificaria haver tratamento desigual.
No auge da febril utilização das interceptações telefônicas como único meio possível para desvendar crimes, discutiam-se os limites de sua duração que, descumprindo texto expresso da lei (art. 5º da lei 9.296/96²), ultrapassavam 30 dias, estendendo-se por meses e até anos. A era da arapongagem desenfreada passou, felizmente, mas inúmeras operações policiais e do MP lastreadas em escutas mantidas por tempo ilimitado foram validadas nos tribunais, embora, ainda hoje, sejam objeto de questionamento.
Aliás, superada aquela fase de escutas a granel, atualmente vive-se uma nova onda, a era das colaborações premiadas como único meio e razão de investigar, que também já vai arrefecendo, todavia, ora por excesso na premiação, ora por concessões fora dos parâmetros legais (reconhecidamente lacunosos), ora, ainda, por se mostrarem inconvenientes e até imprestáveis. Mas fato é que os tribunais já vêm neutralizando alguns abusos – não todos que precisam ser enfrentados –, fazendo ver que tanto interceptações telefônicas quanto delações premiadas são instrumentos de investigação criminal para uso bem mais comedido, meios de obtenção de provas a serem utilizados sob circunstâncias peculiares e de certa excepcionalidade.
De todo modo, tentei vaticinar o que não ocorreu. Enganei-me, completamente, quanto ao que viria a prevalecer. Os crimes de descaminho não tiveram o mesmo tratamento da sonegação fiscal, prescindindo do procedimento administrativo para a sua configuração. As interceptações telefônicas foram sacramentadas, apesar de ultrapassarem o prazo legal, inclusive sem a fundamentação adequada que passou a ser exigida por orientação da Corte Suprema.
Nesta década de intervalo, entre uma revista e outra, curei-me do péssimo hábito de fazer previsões sobre temas jurídicos. Desta vez, tomarei rumo diferente de análise, almejando não ser desmentido com tanta veemência.
Quero dedicar-me a situações mais palpáveis, verificáveis sem um grande esforço teórico, sempre sem pretensão de ordem científica, originadas tão somente da observação de um usuário do sistema da justiça, para fazer alguns comentários do ponto de vista da atuação na área penal, com o objetivo de auxiliar, ainda que modestamente, a reflexão sobre questões que se sabe dificultar o melhor desempenho do STJ, segundo apreciação de seus ilustres ministros.
Crítica frequente é a de que se criou uma doutrina exótica quanto à abrangência do habeas corpus.
Vou abordar a questão da profusão de habeas corpus que entulham os gabinetes de suas Excelências, estabelecendo pletora invencível, congestionando as turmas criminais do STJ nem sempre com questões que, pela pouca importância, deveriam ser submetidas à superior instância.
Crítica frequente é a de que no país criou-se uma doutrina exótica quanto à abrangência do habeas corpus, que passou a servir para combater ilegalidades de uma forma geral, abundante, abusiva dizem alguns, ultrapassando as balizas próprias ao seu regular manejo, mesmo quando não se trate, imediatamente, do direito de ir e vir, casos em que a liberdade esteja em perigo iminente ou já sacrificada indevidamente pela ação persecutória do Estado.
Desejo fazer um contraponto a esse pensamento generalizado, dominante talvez, entre membros do MP e da alta magistratura, especialmente. Isto – a abundância de habeas corpus que chegam todos os dias aos tribunais – não é um defeito em si mesmo ou mal a ser combatido.
Não é causa, mas efeito. Antes de se antagonizar com uma certa liberalidade para o uso do remédio heroico, cumpre reconhecer que este se presta à contenção da verdadeira pandemia de ilegalidades que assolam os direitos dos investigados e réus. O excessivo uso do habeas corpus, assim visto pelos críticos, está a serviço da justiça e da ampla defesa, sendo, por essa razão, mais uma vantagem que um mal a ser combatido e extirpado. Se assim é, como, então, limitar esse instrumento processual que tomou proporções como meio de afastar arbitrariedades, oferecendo à defesa ferramenta eficaz para enfrentá-las?
Há de se reconhecer, ademais, que o alargamento do cabimento do writ – tão criticado nos meios judiciários – deve-se, em grande medida, à própria jurisprudência, que, corretamente, ao longo do tempo e por seguidas decisões ampliativas, foi transformando o habeas corpus num instrumento eficiente, menos demorado e capaz de levar as questões de interesse da defesa a julgamento, sem as barreiras impostas, intransponíveis muitas vezes, para outras modalidades de solução processual, notadamente os recursos cabíveis.
Assim, toda vez que se criam óbices à impetração de habeas corpus, retira-se da cidadania a possibilidade de revisão mais célere da prática de ilegalidades pelo aparato estatal, de tal forma a representar um retrocesso em termos de preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o que creio não seja intenção de ninguém.
Aliás, o art. 5º da Constituição Federal (CF) contribuiu sobremaneira para a abrangência do instituto, na medida em que veio constituir um conjunto de garantias que vale como exemplo até para democracias bem mais desenvolvidas que a brasileira, apesar de posto em xeque por decisões que brigam com a sua literalidade, como é o caso da presunção de inocência do inciso LVII, o que demandaria alongado debate, que aqui não cabe.
Para sanar ou amenizar a distorção que seria a abusiva quantidade de impetrações, ao longo do tempo foram surgindo restrições ao habeas corpus por meio de artifícios judiciais. Isto ocorreu com a edição da súmula 691 pelo STF, que teve por escopo impedir a impetração de habeas corpus contra decisões negativas de medida liminar, ou quando se passou a recusar impetrações consideradas substitutivas de recursos, criando-se a teratológica situação de não conhecer do mandamus por substituir- se ao recurso próprio; entretanto, muitas vezes, ante manifesta ilegalidade neste demonstrada, decidiu-se de ofício, pela oblíqua concessão, tudo isso na tentativa vã – como se sabe – de bloquear a verdadeira enxurrada de impetrações que continua, ainda agora, a invadir o tribunal.
Veja-se que, apesar de não alcançarem o efeito desejado – de criar um dique para a contenção de impetrações vistas como impertinentes –, tais restrições atingiram os habeas corpus em todos os casos, inclusive limitando aqueles voltados à sua elementar natureza de reagir à frustração do direito de ir e vir, como garantia da liberdade indevidamente suprimida.
O que se aponta como defeito – ser o habeas corpus utilizado imoderadamente – faz todo o sentido, entretanto, quando se trata da justiça penal, em que a dramaticidade de cada evento pode dilacerar imagens, encerrar carreiras, desorganizar famílias, tal o potencial nocivo da persecução criminal, que pode vir a sujeitar qualquer um de nós pelas mais diversas e injustas razões. Sendo assim, não se deve prescindir ou dificultar o manejo do remédio heroico, que se presta a minorar o sofrimento dos injustiçados, devolvendo-lhes o status dignitatis ou o sacrossanto direito à liberdade.
Trata-se, o suposto defeito, de um falso dilema, pois não há barreira capaz de impedir o impetrante de lançar mão do habeas corpus (disponível, inclusive, para manejo de qualquer do povo), nem há como impedir o juiz competente de conceder a ordem, ante as circunstâncias do caso concreto. É possível concluir, então, que os anteparos até hoje criados não resolveram o problema do excesso de demanda, que só fez aumentar, confirmando a tese de que não é esse o meio mais adequado para diminuir o número de impetrações.
Ao se criar obstáculos, por exemplo, nos casos de não conhecimento sob a alegação de se tratar de habeas corpus substitutivo, não é raro verificar-se que a defesa, por imperativo da sua própria natureza, acaba por interpor o recurso exigido, sem dispensar a impetração concomitante de habeas corpus, de tal modo a oferecer ao seu constituinte – o paciente – o mais amplo cabedal de possibilidades de solução para a coação ilegal.
Neste ponto cabe uma reflexão da maior relevância. Não se pode esperar do advogado de defesa que seja contido ao manejar os instrumentos que estão à sua disposição. Em contraposição a isso, ele tem a obrigação, para honrar seu mandato, de adotar todas as medidas que estiverem ao seu alcance, obviamente dentro dos parâmetros legais e éticos, para proteger os interesses e direitos do seu constituinte. O aprendiz de criminalista logo introjeta a perseverança como uma de suas qualidades essenciais. A combatividade está entre as suas virtudes profissionais mais exigidas. Não pode descansar enquanto não esgota tudo quanto é possível fazer em prol da defesa. Diante dessa característica imanente ao advogado de defesa, não há como esperar dele passividade, receio de não ser bem recebido ou de ver seu pleito indeferido por impertinência. Imagine-se um advogado explicando ao pai de um jovem encarcerado que não vai tentar um habeas corpus para poupar o tribunal de mais esse incômodo... Nunca, jamais. É da sua essência tentar e tentar, o que vai fazer desse profissional um criminalista merecedor de chancela.
O procurador da República Vladimir Aras, citado pelo ministro Rogerio Schietti (2019), glosou impetrações pitorescas, como, por exemplo, para obter inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sem o exame de ordem; para preventivamente impedir submissão ao bafômetro; visando ao trancamento de ação penal por tentativa de suborno em autodefesa; obtenção gratuita de cópias de inquérito; para incluir suposto corréu na denúncia... É claro que existem aberrações. Estas não devem mesmo ser conhecidas pelos tribunais e, quando se tratar de impetrante advogado, poderão ser comunicadas à OAB para as providências disciplinares. Mas, mesmo esses exemplos, que seguramente são mais raros, não devem justificar algum tipo de restrição ao habeas corpus.
Não se pode esperar do advogado de defesa que seja contido ao manejar os instrumentos à sua disposição.
Considerando que o habeas corpus atingiu importância vital para a defesa do cidadão e que seu amplo espectro de conhecimento está a serviço de combater ilegalidades, servindo de escudo contra a discricionária utilização do poder pelo aparelho repressor da criminalidade, como enfrentar, então, a verdadeira avalanche de impetrações que os tribunais têm grande dificuldade de vencer? A resposta parece conduzir a dois caminhos: a adoção de condutas para refrear ilegalidades, ao mesmo tempo oferecendo outras formas eficientes de reação processual à defesa. De um lado, coibir coações ilegais; de outro, dar maior eficácia aos recursos, mormente o recurso especial.
Ao refletir sobre a invencível utilização dos habeas corpus serve a imagem de um balão de ar, que premido por um lado, na mesma medida, expande-se para o outro. Para diminuir o número de impetrações é preciso, em primeiro lugar, combater as ilegalidades na origem, apontando às instâncias inferiores quais são os meios considerados legais de atuação para a justiça penal, assim o fazendo pelos mais diversos meios de contenção processual e administrativa, como, evidentemente, também por precedentes jurisprudenciais. Isto poderia ser objeto de maior interação entre tribunais, que se tem mostrado insuficiente. Não é raro, por exemplo, que decisões dos tribunais estaduais e regionais não atendam à jurisprudência dominante nas cortes superiores. Essa conduta deforma o sistema, no mais das vezes, em prejuízo da defesa, o que obriga à impetração de habeas corpus.
Em recente artigo anteriormente mencionado, o ministro Rogerio Schietti (2019) faz importante alerta:
“temos de reconhecer que também nos cabe uma parcela de responsabilidade por essa crise, pois ainda carecemos do aprimoramento concreto de algumas decisões penais – quanto ao dever de motivação do ato decisório – e de uma maior aceitação prática dos vínculos que devem ser observados em relação aos precedentes qualificados, formados pelas cortes de vértice, o STF e o STJ. Neste particular, se aceitarmos que a divisão de competência desses dois tribunais lhes atribui a interpretação última da Constituição e das leis federais, teremos, afinal, um sistema (na acepção própria da palavra) em regular funcionamento, com o aumento da segurança jurídica e estabilidade da função jurisdicional e, consequentemente, diminuição da litigiosidade produzida em habeas corpus, tributável, amiúde, à falta de uniformidade das soluções dadas pelos mais de 18 mil magistrados do país às questões jurídicas já sedimentadas na jurisprudência dos tribunais superiores”.
Há um percentual considerável de ordens de habeas corpus concedidas pelo STJ e pelo STF a indicar que, antes de alcançar as instâncias superiores, não se extirpou a ilegalidade reclamada na impetração e que mereceria ter sido recepcionada em momento processual anterior, evitando-se o indevido prolongamento da coação ilegal reclamada até se chegar às instâncias superiores.
Neste ponto, recordo-me de ilustre ministro da Corte, num seminário desta associação, que com manifesta estupefação reclamava ter de apreciar habeas corpus sobre o simples furto de um guarda-chuva. Mas o inusitado dessa história não é apenas um assoberbado ministro ter de dedicar seu precioso tempo a apreciar tão irrisória ocorrência. O incrível do episódio relatado é o caso do furto de um simples guarda-chuva não ter sido resolvido antes de chegar à instância extraordinária do STJ. É disso que se trata, de reconhecer que os tribunais estaduais e regionais estão deixando escapar a possibilidade de solucionar causas que poderiam receber tratamento diverso e satisfativo, resolvendo-se a reclamada ilegalidade já na sua esfera de competência.
Pode-se ainda referir, também, como causa de novas impetrações, por exemplo, o desaparecimento na jurisprudência do excesso de prazo da prisão preventiva, fazendo com que, ordinariamente, seja necessário perpassar por três tribunais para ver reconhecido – inclusive pelo tempo que dura essa tramitação de seguidos habeas corpus –,que efetivamente não se justifica uma prisão sem formação de culpa por longo período.
É preciso conter o volume de impetrações ampliando os movimentos para que as ilegalidades não avancem na direção da superior instância, antes disso, sendo resolvidas a contento e dentro dos parâmetros legais e jurisprudenciais.
Sempre conto aos mais jovens que, nas décadas de 1980 e 1990, era raro ter de recorrer a instâncias para além do Estado em que se desenvolvia a causa. Os casos eram decididos satisfatoriamente para a defesa sem a necessidade de pedir socorro às esferas superiores da justiça. Hoje, no entanto, não é incomum que a satisfação de pleito justo da defesa tenha de ocorrer por decisão do STJ ou do STF, invariavelmente por meio de habeas corpus.
Também é alvo de críticas frequentes por parte dos senhores ministros a inclusão nas impetrações de pedidos liminares desarrazoados, considerados “protocolares” ou absolutamente dispensáveis, especialmente quando não se trate de paciente preso. Isto decorre, segundo minha observação, do fato de que os advogados impetrantes têm a nítida sensação de que o pedido liminar, contrario sensu, sujeita a impetração a uma tramitação mais célere, ainda que a liminar venha a ser indeferida, relegando as impetrações sem pedido liminar a uma segunda classe de importância, como quem não tivesse convicção sobre o mérito a ponto de requerer a antecipação da cautela. De outro lado, já tive oportunidade de verificar a insólita situação de writ que mereceu um longo despacho de indeferimento do pedido liminar, inclusive ressalvando a necessidade de a matéria ser examinada pelo colegiado, para depois do parecer ministerial que nada acrescentava de diferente sobrevir decisão monocrática, amparada no art. 34, inciso XX, do Regimento Interno do STJ,³ não conhecendo da impetração.
É preciso fazer retornar o prestígio do recurso especial, esse enjeitado.
Talvez a solução fosse indicar, com muita clareza, que habeas corpus sem pedido liminar terá tramitação mais rápida porque, sem necessidade dessa apreciação antecipada, seguiria imediatamente para a fase seguinte de sua tramitação, sem gasto de tempo para apreciação da tutela de urgência, de tal modo a evidenciar que haverá vantagem para impetrante que não fizer uso de pedido liminar desnecessário.
Não se pode negar, como defeito do sistema, que os tribunais, frequentemente, dedicam-se a decisões prolixas para ao final considerar a impertinência da impetração, mesmo nos casos em que há visível desconexão da via eleita com a matéria suscitada. Decisões rápidas e suscintas de não conhecimento, ante impetrações nitidamente abusivas ou incabíveis, possivelmente, viriam a desestimular tal prática.
Noutra direção, é preciso fazer retornar o prestígio do recurso especial, esse enjeitado. Não estará longe de comprovação estatística a afirmação de que a enxurrada de habeas corpus guarda relação com o enorme volume de recursos especiais não recepcionados.
Os advogados militantes na área penal sabem que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que fazer subir um recurso especial. O juízo de prelibação, operado nos tribunais a quo, adotam como regra não recepcionar a irresignação dirigida aos tribunais superiores. Isto acarreta como consequência o agravo contra despacho denegatório de recurso, que, respeitados os pressupostos de admissibilidade, sobe ao tribunal ad quem. Por sua vez, os tribunais ad quem quase sempre ratificam a decisão de não conhecimento do recurso, criando uma lógica esquizofrênica, no sentido de que os tribunais superiores não analisam os recursos especiais e extraordinários, mas dedicam atenção ao agravo, cuja negativa também é quase certa.
Se há abuso de impetrações de habeas corpus, de outro lado abusa-se demasiadamente da súmula 7 para negar seguimento a recursos especiais, mesmo quando não há questionamento de mérito nas razões recursais. A dita demonstração analítica do dissídio jurisprudencial nunca se encontra nos parâmetros que podem servir à Corte. Os mais diversos fundamentos são lançados para não dar seguimento ao recurso especial, criando um outro efeito perverso e desestabilizador do sistema, qual seja, não estabelecer a necessária jurisprudência sobre tal ou qual tema, passível de evitar novas ilegalidades e mais habeas corpus. O insuficiente volume de decisões em recursos especiais não gera extrato jurisprudencial considerá- vel, sendo este mais um motivo para coações ilegais e novos habeas corpus. Ademais, nega-se que as decisões em habeas corpus possam servir para estabelecer o dissídio jurisprudencial, dessa forma estreitando ainda mais as possibilidades recursais da defesa, que se vê obrigada a reagir impetrando habeas corpus.
Cumpre que haja mais flexibilidade na aceitação do recurso especial para que a ele se dê seguimento num maior número de casos, haja vista que, pelo padrão de decisões atualmente utilizado, se faz deste recurso, geralmente, um natimorto. Induvidosamente, esta é uma fonte de novos recursos, mas, também, de habeas corpus, inclusive para levar questões importantes para a defesa ao julgamento do STJ, em momento processual anterior, sabendo-se da impossibilidade de ver esses temas apreciados pelo julgamento do recurso especial. Neste ponto vale advertir para algo que já deve ter merecido a atenção de suas Excelências: a execução provisória da pena há de ser um novo manancial de habeas corpus.
Quando se consegue, por obra do inusitado, vencer todas essas barreiras impostas para ver conhecido e processado o recurso especial, apontasse para 1,64% de provimento dos recursos efetivamente julgados quanto ao mérito,4 o que tem de ser considerada uma distorção, muito distante de trazer algum ganho ou servir para demonstrar que os recorrentes quase nunca têm razão. Não é razoável, nem do ponto de vista meramente estatístico, que, após esse périplo para ver conhecido o recurso especial, apenas essa margem absurdamente diminuta, insignificante, mereça provimento, sendo parte desse percentual de provimentos dedicada apenas à diminuição da pena.
Segundo citação do ministro Schietti (2019), o habeas corpus transformou-se, com frequência, em instrumento jurídico com função de “sub-rogado universal de impugnações recursais”, conforme a Exposição de Motivos do novo Código de Processo Penal, em trâmite no Congresso Nacional.
Porém, é preciso reconhecer que o acúmulo de habeas corpus também decorre do desprestígio do recurso especial como meio eficiente de defesa.
Buscar maior uniformidade das decisões, o que, aliás, está na essência da criação do STJ, reduzindo as oscilações da jurisprudência e, consequentemente, aumentando a previsibilidade judicial e a segurança jurídica, são medidas que podem contribuir para a diminuição do número de habeas corpus, sem olvidar que os precedentes e as decisões sumuladas também têm de vir em socorro da defesa, e não apenas da acusação.
Reprimir a demanda judiciária por meio de empecilhos à impetração de habeas corpus, bem ao gosto da assim chamada jurisprudência defensiva, não atinge o efeito desejado, ao mesmo tempo em que afasta da cidadania esse inegável instrumento realizador de justiça. Evidentemente, não é esse o melhor caminho, especialmente se respeitadas as melhores tradições da Corte cidadã.
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1 Código Penal (descaminho): “Art. 334 - Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.
2 Art. 5º da Lei nº 9.296/1996: “A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.
3 “Art. 34 - São Atribuições do relator: [...] XX - decidir o habeas corpus quando for inadmissível, prejudicado ou quando a decisão impugnada se conformar com tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência dominante acerca do tema ou as confrontar [...].”
4 Pesquisa divulgada pelo STJ.
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REVISTA DO ADVOGADO. 20 anos do STJ, São Paulo: AASP, ano 29, n. 103, maio 2009.
RUIZ FILHO, Antonio. Decisões conforme a lei. Revista do Advogado, 20 anos do STJ, São Paulo: AASP, ano 29, n. 103, maio 2009.
SCHIETTI, Rogerio. Por uma lei do Habeas Corpus. Justiça & Cidadania, Rio de Janeiro: Editora JC, ed. 222, fev. 2019
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
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