Ao Tribunal do Júri é incumbido o julgamento pela prática de crimes dolosos contra a vida – e seus conexos, seja em sua forma tentada, seja em sua forma consumada, consoante previsão legal processual penal e constitucional.
O cerne do júri popular é o julgamento realizado por pares do acusado.
Para Pereira e Silva, não se pode negar tal instituto. Frisa o referido autor que a Constituição da República de 1988 reconheceu o instituto do júri ao grau de direito e garantia fundamental, daí, ainda, o remontando à condição de cláusula pétrea, em relação à qual veda-se a abolição (PEREIRA E SILVA, 2010, p. 27/33).
O julgamento em questão neste rito é dividido em duas fases, as quais correspondem à judicium accusationis, encerrada pela sentença de pronúncia, dada quando o juiz togado se convence da existência do crime e de indícios suficientes de autoria do mesmo, reconhecendo a competência do Júri para decidir o caso, bem como à judicium causae, ou segunda etapa do julgamento propriamente realizado por um Conselho de Sentença, composto, em cada sessão de julgamento, por sete dentre vinte e cinco jurados que serão sorteados entre os alistados anualmente, consoante a disposição constante do artigo 447 do Código de Processo Penal brasileiro.
Prevê, ainda, o supracitado Códex, substancialmente alterado pela lei 11.689/08, a qual trouxe alterações profundas ao Código de Processo Penal especialmente no que trata dos delitos cuja competência para julgamento cabe ao Tribunal do Júri, que “finda a acusação, terá a palavra a defesa", e que “a acusação poderá replicar e a defesa treplicar, sendo admitida a reinquirição de testemunha já ouvida em plenário" (artigo 476, §§ 3o e 4o, respectivamente).
Pois bem.
Da redação de tais ditames legais, facilmente pode-se denotar que a intenção do legislador em nada mais se transparece do que na imposição de certa condicionante ao direito assegurado à defesa de ir à tréplica e, assim, de exercer plena e amplamente a defesa de seu(s) assistido(s) perante o tribunal popular.
Isto porque, pelo que reflete, a situação evidenciada na lei e erroneamente também vista na prática pelos plenários brasileiros afora, impende no fato de que, pouco importando os direitos e interesses de que dispõe a defesa, esta só poderá exercê-los caso o faça primeiro o órgão acusatorial, coincidentemente titular da ação penal e “fiscal da lei”, aí verificando-se uma evidente disparidade de armas, quando o correto seria o contrário, já que, no contexto da expressão, o vocábulo paridade significa outorgar as mesmas possibilidades de ação para acusação e defesa, de modo que, sendo imposta uma faculdade para a primeira e não sendo por esta utilizada, isto de modo algum poderia e deveria influenciar na faculdade também disponibilizada à segunda.
Vale destacar, sem prejuízo, outrossim, que em momento algum a letra de lei condiciona a oportunização da tréplica à réplica, não cabendo, destarte, ao intérprete, tal denotação, sendo, assim, também uma questão de hermenêutica a ser pensada, em que a interpretação extensiva da norma pode restringir direitos e garantias assegurados no ordenamento como fundamentais.
Ocorre que, para além de haver um real equívoco em como é regido o procedimento, as implicações são ainda mais significativas, já que, mesmo não estando o processo apto a julgamento ao ver de quem ocupa a posição que defende, o acusado a todo custo é submetido ao julgamento de pessoas leigas, na completa acepção da palavra, não atadas a regras jurídicas, muito menos tecnicamente experientes, somado ao fato de que muitas das vezes, o Parquet age de tal modo – não indo à réplica –, como um meio de tornar irrisório o debate de causas complexas, que demandariam certo aprofundamento, assim não assumindo o risco da dúvida quanto à compreensão ou não do Conselho de Sentença como fator determinante de possível eventual condenação, recaindo num desencadear de insegurança jurídica, visão crítica esta que é ressaltada por autores como Altavilla e Lopes Jr. (ALTAVILLA, 2003, p. 573; LOPES JR.,2016, p. 857).
Daí, em verdade, as consequências jurídicas tomam um deslinde muito mais peculiar e negativo, já que a fragilidade ora apontada também leva à inobservância do devido processo legal, assim como da ampla defesa, a qual por sua vez compreende o binômio autodefesa e defesa técnica – leia-se, efetiva – esta que, em tal viés, é incompatível com a não facultatividade da defesa de ir à tréplica, quando o Ministério Público optar por não o fazer, anteriormente, em réplica.
Vislumbra-se, assim, de tal análise, que o problema denota uma onipresença maior do que baforeja, ao passo em que tal desiquilíbrio ostenta situação de prejudicialidade e inefetividade do próprio Tribunal do Júri como instituição popular, porquanto se trata, por assim dizer, da forma de julgamento mais democrática do ordenamento jurídico, e, deste modo, como instrumento de garantia à própria consolidação de um Estado Democrático de Direito, consubstanciado na noção da existência de princípios, valores, direitos e garantias fundamentais assentados, que devem, ou ao menos deveriam, ser ponderados.
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ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária. Coimbra: Almedina, 2003, v. II.
KUHN, Guilherme. Disparidade de armas e o supremo poder da acusação. Acesso em 13.mar.2019. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/supremo-poder-da-acusacao/amp/>.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MARQUES, JADER. Lealdade e paridade de armas: tréplica sem réplica no Tribunal do Júri. Acesso em 13.mar.2019. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/lealdade-e-paridade-de-armas-treplica-sem-replica-no-tribunal-do-juri-por-jader-marques>.
PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz. Tribunal do Júri: O novo rito interpretado. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2010.
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*Débora Calil Nicolau Badaró é bacharela em Direito, pós-graduanda pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR) em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, pós-graduanda pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) em Direito e Processo Penal e advogada.