O atual Código de Processo Civil, efetivamente, criou a possibilidade do pagamento voluntário antecipado à intimação da instauração do cumprimento de sentença pelo credor, realizado independente de qualquer tipo de intimação, conforme podemos ver no artigo 526 do Código de Processo Civil.
Art. 526. É lícito ao réu, antes de ser intimado para o cumprimento da sentença, comparecer em juízo e oferecer em pagamento o valor que entender devido, apresentando memória discriminada do cálculo.
Deveras, o legislador não foi feliz quanto à completude do mecanismo de pagamento voluntário, uma vez, se por um lado, a possibilidade de liquidar antecipadamente anima no devedor o objetivo de ver-se livre da relação processual, de outro tanto, submete-o ao látego da incidência da multa.
É dizer, o devedor que almejou antecipar-se ao provimento executório, pode-se ver envolto à armadilha criada – ao menos em tese – pelo legislador.
Isso ocorre porque depois de realizado o pagamento de maneira espontânea dos valores que acredita ser o devido, o credor é intimado para dizer se concorda, podendo desde logo levantar o incontroverso:
§ 1º. O autor será ouvido no prazo de 5 (cinco) dias, podendo impugnar o valor depositado, sem prejuízo do levantamento do depósito a título de parcela incontroversa.
Todavia, caso o credor divirja quanto ao quantum debeatur e seja acatado pelo juiz, o devedor é submetido ao pagamento remanescente já incluidos os encargos da multa e honorários de que dispõe o art. 523, § 1º:
§ 2º. Concluindo o juiz pela insuficiência do depósito, sobre a diferença incidirão multa de dez por cento e honorários advocatícios, também fixados em dez por cento, seguindo-se a execução com penhora e atos subsequentes.
Indaga-se: Então qual a vantagem de o devedor buscar, de boa-fé, contribuir com a celeridade da tramitação do procedimento, dispondo-se a liquidar antecipadamente a dívida?
Essa inversão de procedimento esbarra na cláusula constitucional só contraditório e ampla defesa, porque de acordo com a sistemática do pagamento antecipado não há previsão legal de possibilidade de o devedor, diante da intimação do saldo remanescente, opor a impugnação prevista no art. 525 do Código de Processo Civil.
Ao não abrir possibilidade do devedor se manifestar, ou até mesmo impugnar o saldo remanescente, emerge contradição interna sistêmica aparente no Código de Processo Civil, porque o novo sistema veja a prolação de decisões surpresa:
Art. 9o. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Além das violações mencionadas, existe também o descrédito a boa-fé objetiva, uma vez que o devedor ao realizar o pagamento, o fez com a certeza que aquela quantia era a devida, e ao receber sanções diretas, reconhece implicitamente que o pagamento foi propositalmente feito a menor, ou seja, ocorre a aplicação da má-fé objetiva em relação a conduta do devedor.
O legislador não se atentou ao desenvolver o presente dispositivo, uma vez que ele somente traz benefícios ao credor, sem, contudo, observar a necessidade de garantir ao devedor a possibilidade de se manifestar acerca de uma eventual alegação de pagamento em quantia inferior aquela que o credor entende como devida.
O pagamento voluntário é modalidade com maior utilização por empresas de grande porte, como bancos, empresas telefonia, saúde suplementar, etc., haja vista, que em muitos casos a interposição de recurso somente trará maiores prejuízos, portanto, a opção pelo pagamento da condenação é a solução mais viável para pôr um fim lide.
Ocorre que os operadores do direito que efetivamente realizam tais pagamento, ainda não se atentaram as imposições do artigo 526 do Código de Processo Civil, seja por parte do devedor, seja por parte do credor, entretanto, é necessário realizar a presente reflexão, tendo em vista que dependendo do valor da quantia sendo paga, as imposições do parágrafo 2º podem causar danos de alto monta.
Sendo assim, deve o magistrado ao concluir pela insuficiência do pagamento realizado, intimar o devedor para que complemente o saldo devedor, abrindo-lhe a oportunidade de, em relação ao remanescente, pagar no prazo legal e exercer a faculdade de impugná-lo, sob a égide do art. 523 que regula a execução de sentença por quantia certa.
Em arremate, a aplicação aqui defendida não se trata mais do que a interpretação sistêmica e teleológica do processo, de modo a alinhar a Parte Especial à Parte Geral, o procedimento ao conteúdo principiológico.
Muito se diz atualmente a respeito do desformalismo processual, porém é preciso rememorar ao célebre professor Galeno Lacerda que, por ocasião dos dez anos de vigência do abrogado código, nos idos de 1983, defendia com visão futurística:
‘O processo é, sem dúvida, um meio de aferição de juízos de valor. Podemos afirmar que através dele se cria também o direito, no sentido, próprio da nossa contigência, de descoberta da norma adequada aos fatos controvertidos” (in Remédios Processuais da Administração e Contra a Administração. LACERDA, Galeno. Revista de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Disponível aqui. Acesso em 16.04.2019).
Dessa forma, a norma que se amolda ao quadro a partir de um enfrentamento abstratamente em colisão é o resultante de que o pagamento espontâneo não ceifa do devedor a possibilidade de opor, ao valor remanescente apresentado pelo credor, o pagamento no prazo de 15 dias e, em seguinda, a oportunidade de impugnar-lhe nos termos do art. 525 do Códex de 2015.
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*Cristiano Quinaia é mestre em Direito Constitucional e advogado do escritório JBM Advogados.
*Fernando Luiz Freitas é especialista em Direito Civil e Processual Civil e advogado do escritório JBM Advogados.