Migalhas de Peso

O paraíso registrário-empresarial brasileiro

Argumento aqui que advogados e empresários deveriam refletir com profundidade sobre os riscos trazidos pela MP 876/19, que vem sendo festejada como ferramenta eficiente de desburocratização.

8/4/2019

A edição da MP 876/19 pode redefinir a posição do Brasil no cenário mundial. Assim como os paraísos fiscais, onde a lei facilita sobremaneira o fluxo de capitais, a lei brasileira também estaria facilitando bastante a abertura de empresas novas, com o “deferimento automático” de pedidos de arquivamento.

Argumento aqui que advogados e empresários deveriam refletir com profundidade sobre os riscos trazidos pela MP 876/19, que vem sendo festejada como ferramenta eficiente de desburocratização. 

Acolho a premissa de que o Estado é como o árbitro de futebol, que entra em campo para garantir o cumprimento das regras do jogo do livre mercado. Árbitros erram muito, é verdade. Mas, se não houvesse alguém para garantir o cumprimento mínimo das regras, seria ainda pior, porque as pessoas poderiam se digladiar para vencer. O jogo acabaria antes de começar. 

Para que possamos extrair do livre mercado os benefícios que todos esperamos, isto é, a alocação ótima de recursos graças à bendita capacidade humana de agir racionalmente, é preciso assegurar o cumprimento das regras de mercado. É claro que libertários e anarquistas não concordarão com o argumento, mas é preciso fixá-lo para seguir adiante. 

Nesse cenário espinhoso, forçoso reconhecer que as juntas comerciais exercem função de polícia administrativa da atividade empresarial. Costumam ser vistas, entretanto, como uma espécie de “primo pobre” de um ecossistema de regulação muito maior que envolve instituições como a CVM, o CADE, o BACEN, as agências reguladoras etc. 

A razão pela qual as juntas comerciais são tratadas porventura com menoscabo – se comparadas a outras instituições de igual importância no referido ecossistema regulatório – é um certo consenso sobre a interpretação da Lei de Registro de Empresas. Defendem alguns que o art. 40 da Lei de Registro abrevia a competência das juntas à análise das “formalidades legais” dos documentos levados a registro. Mas o que isso realmente quer dizer? Acaso há forma que não encerre algum conteúdo? 

Os que baseiam sua visão no referido art. 40 da lei raramente articulam uma interpretação sistemática da norma construída com base também no disposto no art. 35, I, segundo o qual as juntas comerciais devem negar o registro de documentos que contrariarem as “prescrições legais e regulamentares”.  

Por conseguinte, a atribuição das juntas comerciais é impedir o registro de atos ilegais, leia-se: atos ilegais em sentido amplo. A tal ideia de “formalidade” contribuiu desde sempre com muito pouco ou quase nada para estimar a exata competência das juntas comerciais. 

É preciso ter em vista, alhures, que a ordem econômica não é o único princípio capaz de restringir a livre iniciativa. A lei restringe a livre iniciativa à luz de outros princípios, como é natural numa ordem constitucional fundada em valores. Por exemplo, o Código Civil impede a integralização do capital de empresas com bens imóveis de menores sem autorização judicial e também que pessoas casadas pelo regime da separação obrigatória constituam sociedade entre si. Certa ou errada, esta é a lei. E a quem cabe garantir o cumprimento da lei? Cabe às juntas comerciais. 

É verdade que a discussão trazida pela novel medida provisória não é se a lei deve ou não ser cumprida, mas, sim, em qual momento a lei deve ser cumprida. 

De largada, a legislação já causa dúvida. Como será realizado o “deferimento automático”? Trata-se de processo informático realmente automatizado? Ou o objetivo é simplesmente obrigar os servidores a deferir os pedidos dos usuários, contanto que uma documentação específica seja apresentada? 

Considere-se, primeiramente, a adoção de um processo automatizado. Assim, se por exemplo um empresário falido tentar efetuar o registro como empresário, hoje terá o pedido negado. Com a nova medida provisória, o falido será registrado e, só após, a junta cancelará o registro. Indaga-se: que pretensa “desburocratização” seria essa?  

Tome-se como parâmetro, a partir de agora, a Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro – Jucerja. Atualmente, a Jucerja abre em apenas duas horas novas sociedades limitadas, Eireli e empresários naturais, que são precisamente o alvo da MP. 

Qual a vantagem em se permitir o registro de atos ilegais que serão cancelados duas horas após o arquivamento? Não pareceria muito mais sensato aguardar o prazo de registro, sobretudo considerando que os atos de sociedades irregulares atraem responsabilidade ilimitada? 

O mesmo ocorreria com qualquer outra junta comercial, quer abra empresas em duas horas ou em dois dias úteis. Ver-se-á que o arquivamento automático é tanto mais arriscado quanto mais demorado for o tempo que a junta comercial levar para decidir, já que o período entre o arquivamento do ato ilegal e o seu cancelamento será maior. 

O registro de atos inválidos também trará preocupação justo nos casos que atualmente são os mais simples: a correção de vícios sanáveis. 

Mantido o exemplo na Jucerja, tem-se que é corriqueiro o cumprimento das exigências pelos usuários em prazo superior a trinta dias, bastando apresentar pedido de dilação do prazo. 

Agora, imagine-se um pedido de abertura de empresa eivado de vício sanável. Por exemplo, o de representação civil. Geralmente, a junta comercial exigiria a juntada da prova da representação, tal como a procuração, no mandato, ou o contrato, na administração de sociedade estrangeira etc. 

No novo regime instaurado pela MP, as juntas comerciais terão duas opções após constatar o arquivamento de ato com vício de representação.  

A primeira alternativa consistirá no cancelamento do registro, obrigando o empresário a arquivar outro ato com o pagamento de novas taxas. A segunda alternativa será determinar, em dois dias úteis, a correção do vício pelo usuário, no prazo de trinta dias. Assim, será de 2 dias úteis mais 30 dias seguidos o prazo para que atos ilegais permaneçam legalmente arquivados. Parece um evidente contrassenso.  

Note-se que, no caso de cancelamento do registro, a situação do empresário será piorada, pois para corrigir terá de pagar novas taxas. No caso de exigência após o registro, o mercado arcará com a insegurança jurídica de não saber se a representação é verdadeira, ou não, muito embora o representante já estará agindo no interesse do representado, com base em documento legitimado pelo Poder Público.  

Logo, apesar de fundada no atendimento ao legítimo clamor social por desburocratização, a medida provisória aparentemente não gera celeridade, não gera segurança e não gera economia. 

Em vez disso, a medida ocasionaria desperdício de trabalho e claros prejuízos para empresários, contadores e advogados – justamente aqueles que aparentemente tem comemorado a medida. 

Atribuo a novidade ao que tenho chamado de “mentalidade de interruptor”. Quer dizer, o ressentimento com a má qualidade de alguns serviços públicos que tem levado cada vez mais cidadãos inteligentes a exigirem do Estado soluções fáceis e frequentemente açodadas para problemas importantes e geralmente complexos.  

Não se trata, aqui, de partir em defesa do Estado. Seria possível discutir, no limite, até mesmo a privatização do serviço, sem dizer de sua qualidade e preço. Porém, ninguém seria capaz de negar a necessidade de o serviço existir, como forma de garantir a segurança jurídica das transações empresariais. Trata-se, portanto, de discutir precisamente a qualidade do serviço. 

Noutra toada, não se nega que a legislação já prevê a possibilidade do “arquivamento automático” do documento. Ocorre quando a junta comercial não profere decisão no prazo legal. Havendo mora quanto ao prazo para o registro, o Presidente deve determinar o arquivamento do ato e sujeitá-lo a exame ulterior pela Procuradoria. É o que determina o art. 52 do Regulamento da Lei de Registro de Empresas – decreto 1.800/96. 

De tal feita, havendo mora por culpa da Administração, exsurge para o usuário o direito subjetivo ao arquivamento, que até então possuía direito meramente eventual. O instituto define a responsabilidade objetiva da junta comercial baseada na mora (ainda que por conduta omissiva) e cria uma espécie de condição resolutiva da validade do registro, cujo escopo, contraditoriamente, é dar segurança.  

Não é preciso dizer que a estranha figura era de raríssima aplicação, inclusive por faltar incentivo ao próprio usuário para requerê-lo, pois a sujeição do ato a exame posterior pela Procuradoria poderá ensejar o pagamento de novas taxas. 

Pois bem, o que a medida faz é tornar essa situação excepcionalíssima uma regra. 

Admitindo-se que a atividade das juntas comerciais é um “mal necessário”, a etapa seguinte é ponderar que a correção do exercício da função de polícia pela Administração exige maiores esforços de dedicação e inteligência.

 A função de polícia não pode ser concebida como um “interruptor”, que ou está ligado ou desligado, mas sim como um “termostato”, que pode e deve encontrar um equilíbrio adequado em cada situação. Não se resolve o problema da burocracia pela dicotomia simplificadora “liberdade versus burocracia”. É um equívoco de base. 

A incumbência do arquivamento empresarial é (i) recusar atos ilegais, (ii) não objetar atos legais e (iii) auxiliar a correção dos atos que possuam vícios sanáveis. Simples assim. Acabar com o exame de documentos dificilmente tornará o mercado melhor, ou, muito menos, seguro.  

Outrossim, a proposta de arquivamento com a correção posterior do vício também não é novidade. 

Servidores – pelo menos da decisão singular da Jucerja, posso afiançar – há muito ponderam que a correção de certos vícios sanáveis poderiam ser deixados – frise-se: a critério da autoridade administrativa – para depois do registro. Não me surpreenderia se fosse essa, inclusive, a “inspiração” da medida.  

O que sugeriam os servidores? Que os atos deveriam ser arquivados com a anotação da pendência no prontuário da sociedade, a fim de que, no futuro, o arquivamento de novos atos da mesma empresa fosse condicionado à correção do vício havido, por um lapso, no instrumento anterior. Coincidentemente, é exatamente isso o que diz a minuta do DREI na data em que o presente texto está sendo redigido.  

A diferença da medida para a sugestão dos servidores está em não permitir que a junta comercial possa decidir o que deve ser corrigido de início e o que poderá ser corrigido posteriormente.  

Uma alternativa interessante seria franquear aos usuários escolher uma opção previamente, já no momento da apresentação do processo, conforme for do melhor interesse de cada um.  

Assim, quando eventualmente se constatasse algum vício banal, por exemplo, na redação do nome empresarial no documento – “Padaira” em vez de “Padaria”, mas escrito “Padaria” corretamente no DBE – a Administração procederia conforme o gosto do freguês, alguns dos quais optariam pelo pragmatismo, seguindo com o negócio, outros por perder algum tempo para dar mais capricho à redação do seu instrumento. 

Há, ainda, outra experiência real de arquivamento automático que já está em curso: o registro de Microempreendedores Individuais – MEI.  

Novamente, no rasto do ganho de eficiência, segue a silenciosa assunção de riscos pela sociedade. 

Em muitos processos judiciais, a União Federal vem sendo condenada a pagar indenizações a pessoas – em geral em situação vulnerável – que tiveram um MEI registrado em seus nomes sem que o soubessem. Em um processo que certa vez passou pelas minhas mãos, o juiz chega a narrar na sentença que fez um teste no sítio eletrônico e se impressionou com a facilidade com que qualquer um, munido apenas de alguns dados, poderia abrir empresa em nome de terceiro, condenando a União ao pagamento de indenização em elevada monta.  

Decerto, inúmeras situações questionáveis relacionadas à abertura automática de empresas poderiam ser listadas aqui.  

Assim é que, o Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI tomou em boa hora a feliz decisão de abrir consulta pública sobre o tema (consulta pública 3/19) entre os dias 3 e 8 de abril de 2019.  

A consulta, todavia, refere-se apenas aos termos da Instrução Normativa a ser elaborada para regulamentar a medida provisória 876/19. Afinal, a competência do DREI é de natureza puramente suplementar, não podendo avaliar a adoção, ou não, do deferimento automático, eis que isso já fora determinado pela medida provisória. 

Mas assim questões como a da representação exemplificada acima permanecerão pendentes. O que decidirá a junta comercial diante de procuração inválida? Arquivará o instrumento e exigirá correção posterior? Ou caberá ao julgador formular exigência antes do deferimento, contrariando o escopo de celeridade da norma? 

Sim, porque se o normativo vier a ser interpretado de modo a assegurar que as juntas comerciais devam fazer exigências prévias, então a medida provisória estaria fazendo nada mais do que repetir o consabido status quo. 

Ilustremos com um derradeiro exemplo. Aldo e Bianca constituem a sociedade XPTO limitada. Em seguida, a Jucerja é oficiada pelo Judiciário sobre a indisponibilidade de bens de Aldo, o que inclui as cotas que Aldo possui na sociedade XPTO. Finalmente, Aldo requer o deferimento de registro de Eireli, cujo capital é integralizado com as cotas que subscrevera na XPTO.  

Se o registro for automatizado, uma decisão judicial será desobedecida. Se o deferimento automático continuar a depender do julgador, então não será automático, mas exatamente como é hoje, demostrando que o esforço de contingenciar todas as situações possíveis pode não ser inteiramente capaz de provocar o ganho de eficiência esperado. 

Por fim, se a automatização do registro for somada a outras medidas recentes de desburocratização, tais como a dispensa de autenticação de cópias de documentos e do reconhecimento de assinaturas, ver-se-á a dimensão do risco criado. 

Evito ser mal compreendido. A tentativa de desburocratização é ótima e merece alvíssaras. Mas, para que o Brasil evite correr o risco de se tornar uma espécie de destino mundial da fraude empresarial, é preciso que a sociedade reconheça a complexidade e a importância da questão, auxiliando do modo como possível os formuladores de políticas públicas na difícil tarefa de determinar precisamente as hipóteses admissíveis de registro automático de empresas.

__________

*Luiz Carlos Marques Filho é especialista em advocacia pública (UERJ) e em direito empresarial (FGV) e analista na Jucerja.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Regulação do uso de IA no Judiciário: O que vem pela frente?

10/12/2024

Devido processo legal na execução trabalhista: Possíveis desdobramentos do Tema 1232 da repercussão geral do STF

9/12/2024

O que os advogados podem ganhar ao antecipar o valor de condenação do cliente?

10/12/2024

Cláusula break-up fee: Definição, natureza jurídica e sua aplicação nas operações societárias

9/12/2024

Insegurança jurídica pela relativização da coisa julgada

10/12/2024